terça-feira, 5 de julho de 2016

Fada? Anjo? Deusa? Escrava

Fada? Anjo? Deusa? Escrava

Por:Maria Nazareth Soares Fonseca

Situando a estaria "nos primeiros anos do reinado de D. Pedro II" e tomando como assunto o drama de uma escrava aparentemente branca, educada e bela, Bernardo Guimarães pretendeu mostrar ao público da época, 1875, os "abomináveis e hediondos" crimes da escravidão e o aviltamento da pessoa humana pela distinção de classe.

Embora trate do grave problema social e humano, a escravidão negra no Brasil, o tema fundamental do romance é o amor, melhor dizendo, os sofrimentos do amor.   Amor da infeliz escrava impedida de amar livremente a quem escolhesse; amor egoísta do seu senhor, incapaz de admitir que, sendo dono da escrava, não era, necessariamente, o dono do seu coração.

No primeiro capítulo, o narrador se ocupa em apresentar-nos a heroína.    Os versos da triste canção que a moça. 'entoa, acompanhando-se ao piano,  reproduzem o seu sofrimento:


"Desd'o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
...........................................
Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, [nem meus olhos
Não podem de amor falar;" (p. 10)

Antes mesmo de apreciarmos a figura da escrava, somos levados a sentir o seu drama. Logo a seguir o narrador nos conduz até a sala de recepção da luxuosa fazenda a que pertence Isaura.   As linhas puras e suaves do perfil da escrava, a beleza dos seus cabelos que "despenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos", contrastam com a sua condição de cativa. São, como diz a escrava, "trastes de luxo colocados na senzala do africano".

No capítulo dois aparece Leôncio, o senhor de Isaura. A minuciosa descrição do seu passado visa a configurar o caráter da personagem: quando criança, "mau aluno e  criança incorrigível, turbulento e insubordinado"; adolescente, sangra "desapiedadamente a bolsa paterna" com suas aventuras até que encontra no casamento com a linda e encantadora Malvina "um meio mais suave e natural de adquirir fortuna".

Leviano,  devasso e insensível, Leôncio saíra ao pai, homem de "coração árido e frio" que, atraído pelos encantos da escrava Juliana, mãe de Isaura, e sendo por ela repelido, sujeitou-a a "tão rudes trabalhos e tão cruel tratamento", que em breve a pobre morreu.    Isaura repete, no presente, o drama de sua infeliz mãe.

No capítulo IX aparecerá outra personagem importante ao enredo.   Álvaro é o rico herdeiro de uma "distinta e opulenta" família,  abolicionista  exaltado e, como acentua o narrador, "tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais".   Conhece Isaura, agora Elvira para escapar às perseguições de Leôncio, e apaixona-se por ela.   Quando, tragicamente, Isaura é reconhecida no baile da mais fina sociedade recifense como a escrava fugida da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, Álvaro não a abandona e jura livrá-la do seu vil senhor e do  estigma do cativeiro.

Forma-se a tríade comum aos romances populares românticos: vilão, heroína, herói.

Sem escapar ao convencionalismo romântico e associando aos traços fisionômicos da personagem a sua conduta social, fácil será antever o final do romance. O bem sobrepondo-se ao mal conduzirá fatalmente a estaria ao fim que se espera: a união de Isaura e Álvaro.  Está claro que o obstáculo maior a ser vencido pelo "herói" está no fato de , Isaura ser escrava e legítima propriedade de Leôncio. Nem isso impede Álvaro de lutar. Parte para a corte à procura de Isaura, descobre a falência de Leôncio,   compra-lhe todos  os bens, inclusive os escravos, e desmascara o "vilão". Nada mais o separa de Isaura, a quem oferece a mão de esposo, desafiando todos os preconceitos da sociedade escravocrata de então.

Dada a ausência de profundidade com que são tratadas, as personagens do romance são planas,  estáticas, permanecendo com as mesmas virtudes e defeitos ao longo de toda a narrativa.   São  "sempre iguais a si próprias e jamais reservando surpresas ao leitor por suas características específicas, mas tão-somente por sua ação".

Isaura é, do princípio ao fim, a escrava submissa que sabe reconhecer o seu lugar.   Suporta resignada e dócil a perseguição de Leôncio, as propostas de Henrique, as desconfianças de Malvina, sem se rebelar, sem jamais deixar de ser emocionalmente escrava,  mesmo tendo sido educada como não o foram "muitas ricas e ilustres damas da sociedade":

"... procurava ser humilde como qualquer outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seu espírito, os fumos da vaidade não lhe entumesciam o coração, nem turvavam-lhe a luz de seu natural bom-senso." (p. 41)

Na senzala, em meio à escravaria, "sem se mostrar Contrariada nem humilhada com a Inova ocupação que lhe davam" suporta passivamente as provocações da escrava Rosa,  ferida com o desdém de Leôncio f que a preterira por Isaura.

No Recife, amada por Álvaro, tem escrúpulos de passar por branca livre,  traindo a confiança do seu amado:

"— Como posso eu, sem cometer a mais vil deslealdade, aparecer   apresentada   por   ele   como uma senhora livre em uma sala de baile?..." (p. 73)

E ainda, ao ser obrigada a se casar com o hediondo Belchior, resigna-se diante da  imposição de seus senhores:

"Já que assim o quer, sujeito-me humildemente ao meu destino." (p.119)

Também nas demais personagens o retraio fisionômico corresponde quase que inteiramente à sua conduta social. Como já foi dito,  as personagens não surpreendem o leitor em momento algum.   Suas atitudes estão  implícitas no retraio que o autor traça delas.

Quando afirma que Leôncio volta da Europa com "o cérebro vazio,   com a alma corrompida   e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem"; já nos insinua o seu comportamento com relação a Isaura e a Malvina, sua esposa.

Ao descrever Álvaro, ressalta 'sua "alma original cheia de grandes e generosas aspirações". Nobreza de caráter e coragem para lutar contra os valores a sociedade a que pertence serão sempre a tônica do seu comportamento.

Nas personagens secundárias o processo não se altera.

Miguel, pai de Isaura, é o feitor que foge ao conceito geral. Longe de ser "o mais detestado entre os escravos", é o amparo da infeliz Juliana e o pai extremoso de Isaura, por quem luta até o fim.

E no vil Martinho a identidade traços fisionâmicos-caráter procura ser perfeita: cabeça grande,  cara larga, feições grosseiras que revelam um espírito lerdo e acanhado.

E "o que mais o caracteriza é certo espírito de cobiça e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria".

Símbolo da estupidez submissa é Belchior, "monstrengo afetando formas humanas, cabeludo como um urso e feio como um mono".

E há ainda o Dr. Geraldo, amigo de Álvaro, advogado conceituado, espírito "prático e positivo como deve ser um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às insinuações e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade". Procura equilibrar em Álvaro as concepções humanas, mas irreais,  às vezes,  em relação ao ambiente em que vivem.

Quando Álvaro, inconformado com a situação de Isaura, afirma ser a escravidão "uma indignidade, uma úlcera hedionda na face da nação, que a tolera e protege" e se dispõe a unir-se a Isaura, mesmo sabendo ser uma afronta à sociedade, Geraldo lhe responde com lucidez:

"— És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência, para poderes satisfazer 'os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca." (p. 94)

Verdade que, consideremos, não se restringe apenas à sociedade escravocrata do século XIX.

As concessões feitas aos preconceitos da sociedade da época não invalidam a posição antiescravagista do autor.

Fica claro no romance que Isaura é escrava apenas quanto ao seu comportamento submisso e indisposto a lutas e reivindicações.   Fisicamente em nada difere das damas da sociedade da época.  Mas é escrava e tem de viver como os de sua classe: objeto útil nas mãos dos seus senhores.

A sociedade brasileira que, no século XIX, tanto se condoeu das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada.   Sendo branca e nada havendo nela que "denunciasse a abjeção do escravo" pôde demonstrar com seu sofrimento o quanto "é vã e ridícula toda a distinção que provém do nascimento e da riqueza".


---
Fonte:

A Escrava Isaura, por: Bernardo Guimarães. Editora Ática, 10ª Edição. São Paulo, 1981, págs. 5-8.

Nenhum comentário:

Postar um comentário