Fada? Anjo? Deusa? Escrava
Por:Maria Nazareth Soares Fonseca
Situando a estaria "nos
primeiros anos do reinado de D. Pedro II" e tomando como assunto o drama
de uma escrava aparentemente branca, educada e bela, Bernardo Guimarães
pretendeu mostrar ao público da época, 1875, os "abomináveis e
hediondos" crimes da escravidão e o aviltamento da pessoa humana pela
distinção de classe.
Embora trate do grave problema
social e humano, a escravidão negra no Brasil, o tema fundamental do romance é
o amor, melhor dizendo, os sofrimentos do amor. Amor da infeliz escrava impedida de amar
livremente a quem escolhesse; amor egoísta do seu senhor, incapaz de admitir
que, sendo dono da escrava, não era, necessariamente, o dono do seu coração.
No primeiro capítulo, o narrador
se ocupa em apresentar-nos a heroína.
Os versos da triste canção que a moça. 'entoa, acompanhando-se ao
piano, reproduzem o seu sofrimento:
"Desd'o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
...........................................
Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, [nem meus olhos
Não podem de amor falar;"
(p. 10)
Antes mesmo de apreciarmos a
figura da escrava, somos levados a sentir o seu drama. Logo a seguir o narrador
nos conduz até a sala de recepção da luxuosa fazenda a que pertence
Isaura. As linhas puras e suaves do
perfil da escrava, a beleza dos seus cabelos que "despenham caracolando pelos
ombros em espessos e luzidios rolos", contrastam com a sua condição de
cativa. São, como diz a escrava, "trastes de luxo colocados na senzala do
africano".
No capítulo dois aparece Leôncio,
o senhor de Isaura. A minuciosa descrição do seu passado visa a configurar o
caráter da personagem: quando criança, "mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado";
adolescente, sangra "desapiedadamente a bolsa paterna" com suas
aventuras até que encontra no casamento com a linda e encantadora Malvina
"um meio mais suave e natural de adquirir fortuna".
Leviano, devasso e insensível, Leôncio saíra ao pai, homem
de "coração árido e frio" que, atraído pelos encantos da escrava Juliana,
mãe de Isaura, e sendo por ela repelido, sujeitou-a a "tão rudes trabalhos
e tão cruel tratamento", que em breve a pobre morreu. Isaura repete, no presente, o drama de sua
infeliz mãe.
No capítulo IX aparecerá outra
personagem importante ao enredo. Álvaro
é o rico herdeiro de uma "distinta e opulenta" família, abolicionista
exaltado e, como acentua o narrador, "tinha ódio a todos os
privilégios e distinções sociais".
Conhece Isaura, agora Elvira para escapar às perseguições de Leôncio, e
apaixona-se por ela. Quando,
tragicamente, Isaura é reconhecida no baile da mais fina sociedade recifense
como a escrava fugida da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, Álvaro não a
abandona e jura livrá-la do seu vil senhor e do
estigma do cativeiro.
Forma-se a tríade comum aos
romances populares românticos: vilão, heroína, herói.
Sem escapar ao convencionalismo
romântico e associando aos traços fisionômicos da personagem a sua conduta
social, fácil será antever o final do romance. O bem sobrepondo-se ao mal
conduzirá fatalmente a estaria ao fim que se espera: a união de Isaura e Álvaro. Está claro que o obstáculo maior a ser
vencido pelo "herói" está no fato de , Isaura ser escrava e legítima propriedade
de Leôncio. Nem isso impede Álvaro de lutar. Parte para a corte à procura de
Isaura, descobre a falência de Leôncio,
compra-lhe todos os bens,
inclusive os escravos, e desmascara o "vilão". Nada mais o separa de
Isaura, a quem oferece a mão de esposo, desafiando todos os preconceitos da
sociedade escravocrata de então.
Dada a ausência de profundidade
com que são tratadas, as personagens do romance são planas, estáticas, permanecendo com as mesmas
virtudes e defeitos ao longo de toda a narrativa. São
"sempre iguais a si próprias e jamais reservando surpresas ao
leitor por suas características específicas, mas tão-somente por sua ação".
Isaura é, do princípio ao fim, a
escrava submissa que sabe reconhecer o seu lugar. Suporta resignada e dócil a perseguição de
Leôncio, as propostas de Henrique, as desconfianças de Malvina, sem se rebelar,
sem jamais deixar de ser emocionalmente escrava, mesmo tendo sido educada como não o foram
"muitas ricas e ilustres damas da sociedade":
"... procurava ser humilde
como qualquer outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes
de seu espírito, os fumos da vaidade não lhe entumesciam o coração, nem
turvavam-lhe a luz de seu natural bom-senso." (p. 41)
Na senzala, em meio à escravaria, "sem se mostrar Contrariada nem humilhada com a Inova ocupação que lhe davam" suporta passivamente as provocações da escrava Rosa, ferida com o desdém de Leôncio f que a preterira por Isaura.
No Recife, amada por Álvaro, tem
escrúpulos de passar por branca livre,
traindo a confiança do seu amado:
"— Como posso eu, sem cometer
a mais vil deslealdade, aparecer
apresentada por ele
como uma senhora livre em uma sala de baile?..." (p. 73)
E ainda, ao ser obrigada a se
casar com o hediondo Belchior, resigna-se diante da imposição de seus senhores:
"Já que assim o quer, sujeito-me
humildemente ao meu destino." (p.119)
Também nas demais personagens o
retraio fisionômico corresponde quase que inteiramente à sua conduta social.
Como já foi dito, as personagens não
surpreendem o leitor em momento algum.
Suas atitudes estão implícitas no
retraio que o autor traça delas.
Quando afirma que Leôncio volta
da Europa com "o cérebro vazio,
com a alma corrompida e o
coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem"; já nos
insinua o seu comportamento com relação a Isaura e a Malvina, sua esposa.
Ao descrever Álvaro, ressalta
'sua "alma original cheia de grandes e generosas aspirações". Nobreza
de caráter e coragem para lutar contra os valores a sociedade a que pertence
serão sempre a tônica do seu comportamento.
Nas personagens secundárias o
processo não se altera.
Miguel, pai de Isaura, é o feitor
que foge ao conceito geral. Longe de ser "o mais detestado entre os
escravos", é o amparo da infeliz Juliana e o pai extremoso de Isaura, por
quem luta até o fim.
E no vil Martinho a identidade
traços fisionâmicos-caráter procura ser perfeita: cabeça grande, cara larga, feições grosseiras que revelam um
espírito lerdo e acanhado.
E "o que mais o caracteriza
é certo espírito de cobiça e de sórdida ganância, que lhe transpira em todas as
palavras, em todos os atos, e principalmente no fundo de seus olhos pardos e
pequeninos, onde reluz constantemente um raio de velhacaria".
Símbolo da estupidez submissa é
Belchior, "monstrengo afetando formas humanas, cabeludo como um urso e
feio como um mono".
E há ainda o Dr. Geraldo, amigo
de Álvaro, advogado conceituado, espírito "prático e positivo como deve
ser um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às insinuações e
mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade". Procura
equilibrar em Álvaro as concepções humanas, mas irreais, às vezes,
em relação ao ambiente em que vivem.
Quando Álvaro, inconformado com a
situação de Isaura, afirma ser a escravidão "uma indignidade, uma úlcera
hedionda na face da nação, que a tolera e protege" e se dispõe a unir-se a
Isaura, mesmo sabendo ser uma afronta à sociedade, Geraldo lhe responde com
lucidez:
"— És rico, Álvaro, e a
riqueza te dá bastante independência, para poderes satisfazer 'os teus sonhos
filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca." (p. 94)
Verdade que, consideremos, não se
restringe apenas à sociedade escravocrata do século XIX.
As concessões feitas aos
preconceitos da sociedade da época não invalidam a posição antiescravagista do
autor.
Fica claro no romance que Isaura
é escrava apenas quanto ao seu comportamento submisso e indisposto a lutas e
reivindicações. Fisicamente em nada
difere das damas da sociedade da época.
Mas é escrava e tem de viver como os de sua classe: objeto útil nas mãos
dos seus senhores.
A sociedade brasileira que, no
século XIX, tanto se condoeu das desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela
era branca e educada. Sendo branca e
nada havendo nela que "denunciasse a abjeção do escravo" pôde
demonstrar com seu sofrimento o quanto "é vã e ridícula toda a distinção
que provém do nascimento e da riqueza".
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Fonte:
A Escrava Isaura, por: Bernardo Guimarães. Editora Ática, 10ª
Edição. São Paulo, 1981, págs. 5-8.
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