sábado, 16 de julho de 2016

Para uma Definição de Sociologia; Ordem Social, Desordem e Mudança

Para uma Definição de Sociologia; Ordem Social, Desordem e Mudança
Se quiséssemos exigir que o problema básico a que se dirige o sociólogo fosse descrito em uma única frase, responderíamos; procura explicar a natureza da ordem social e da desordem social.
A sociologia aceita, como todas as outras perspectivas fundamentalmente científicas, a suposição de que existe ordem na natureza, de que essa ordem pode ser descoberta, descrita e compreendida. Assim como as leis da física descrevem a ordem subjacente, que governa a relação dos objetos físicos, a astronomia a ordem do sistema planetário, a geologia a ordem subjacente à história e à estrutura atual da terra, também a sociologia procura descobrir, descrever e explicar a ordem que caracteriza a vida social do homem.
Quando falamos de ordem, queremos dizer que os acontecimentos ocorrem numa sequência ou padrão mais ou menos regulares, de forma que podemos fazer uma afirmação empiricamente verificável a respeito da relação entre dois acontecimentos, em determinados momentos de tempo, sob condições especificadas. A sociologia lida com muitas dessas formas de ordem, que variam grandemente em escala, mas onde cada uma tem, fundamentalmente, o mesmo caráter.
O problema talvez seja mais evidente no nível da maior unidade com que a sociologia geralmente lida, isto é, a nação-estado ou outra forma de sociedade em larga escala. Coletivamente, os membros de uma grande sociedade realizam milhões ou mesmo bilhões de atos sociais, durante um único dia. Apesar disso, o resultado não é tumulto, confusão total e caos, mas, ao contrário, uma razoável aproximação de ordem. Esta ordem permite que cada indivíduo siga seu caminho pessoal, sem interferir seriamente na busca que outros fazem de seus objetivos e intenções. Na realidade, essa ordem geralmente assegura que cada um possa efetivamente facilitar até certo ponto a realização, pelos outros, de seus objetivos. O objeto fundamental da sociologia é explicar como ocorre isso, como certo grau razoável de coordenação de ações de indivíduos tão diversos permite a corrente rotineira da vida social. Quando dizemos que existe um sistema social, referimo-nos à coordenação e à integração de atos sociais que permitem a sua ocorrência de forma a provocar ordem e não caos.
Como a nossa acentuação de ordem pode ser facilmente mal compreendida, apressamo-nos a acrescentar, logo e enfaticamente, que delinear a natureza da ordem social não é necessariamente aprová-la ou justificá-la. Um governo totalitário também desenvolve uma ordem social. Um sociólogo que a estuda pode explicar o papel do partido monolítico na monopolização do poder político. Pode mostrar como os meios de comunicação de massa são empregados para mobilizar a opinião pública e criar a aparência de acordo, ou expor o papel que o terror da polícia secreta desempenha para permitir que a elite consiga o controle social. Ao fazê-lo evidentemente não está justificando, desculpando, nem, na realidade, de qualquer forma julgando a ordem social de que trata. Certamente, o sociólogo pode ser estimulado, pelos seus valores, a estudar e acentuar um e não outro problema em tal sistema. Ao fazer o trabalho de análise, também dá, aos que não conhecem o sistema, uma base para formar seu julgamento moral e político. Mas tal julgamento não deve ser confundido com a tarefa separada de descrever a ordem básica, através da qual, bem ou mal, um sistema social específico se mantém em operação.
O interesse do sociólogo pelo problema da ordem não deve levar alguém a supor que ele não tem interesse ou responsabilidade pelo estudo das manifestações de desordem. Nenhum sistema social funciona impecavelmente, qualquer que seja a perspectiva para vê-lo. Certamente, nenhum sistema social é perfeito do ponto de vista de todos os seus membros. É endêmico na vida social que algumas normas não sejam obedecidas, alguns valores não sejam satisfeitos, alguns objetivos não sejam atingidos. Na realidade, em qualquer sociedade pode haver domínios importantes em que a maioria transgride o padrão social ou legalmente aceito, e frequentemente com grandes prejuízos de vida. Uma viagem em qualquer das estradas dos Estados Unidos, num fim de semana do Dia do Trabalho, será suficiente para esclarecer isso. Quase todas as sociedades conhecem períodos, às vezes longos, de perturbações, guerra civil, violência de multidões, terror, crime e desorganização geral. Cada uma dessas manifestações é um afastamento com relação a uma ordem social já estabelecida, ou, no caso de uma contrarrevolução, uma ordem que procura restabelecer-se. E mesmo a desordem não é necessariamente caos.
Tanto na vida individual quanto na vida coletiva existem forças "naturais" que favorecem a ordem e a estabilidade, e outras forças igualmente "naturais" que favorecem desordem, conflito e perturbação. O equilíbrio entre tais forças pode ser muito diferente em diversas épocas. É questão de preferência, de inclinação ou de orientação filosófica o fato de você preferir ver o mundo como um lugar intrinsecamente num estado de desordem, em luta para obter certa ordem, ou um lugar normalmente numa condição de ordem, mas sujeito a constante perturbação e ameaça de desordem. Pessoalmente, satisfaço-me com pensar que a suposição da ordem como a condição básica do homem é mais adequada para os fatos existentes e para a análise real. Essa suposição está muito longe de afastar a importância do estudo dos frequentes e importantes mergulhos do homem em um estado de relativa desordem. Acentuo "relativa", pois sem certa ordem, mesmo em condições de aparente desordem geral, o homem deixaria de sobreviver. Algumas sociedades persistentemente deixaram de resolver o problema da manutenção da ordem e se dissolveram, os seus membros se dispersaram,, absorvidos em outros lugares, ou desapareceram. Mas sempre tem havido outro sistema social em que predomina a ordem e os homens sobrevivem.
Uma sociologia que ignora completamente as manifestações de desordem na vida social é, evidentemente, uma sociologia inadequada e incompleta. Não se pode -dizer menos de quem nega os fatos básicos da ordem social e volta as costas para os mecanismos que a garantem, interessando-se apenas pelos problemas de desorganização social. É estéril o conflito entre os que sustentam uma "teoria de equilíbrio" e que os que nos solicitam a adoção de uma "teoria do conflito", pois uma sociologia completa precisa incluir o estudo da ordem e da desordem, bem como da mudança, organizada e desorganizada. Arnold Feldman e Wilbert Moore nos oferecem uma concepção mais dinâmica e ampla da sociedade como um "sistema de controle de tensão." "A 'ordem' característica de qualquer sistema social consiste,, portanto, em padrões regularizados de ação e em instituições que controlam, melhoram ou canalizam o conflito provocado por tensões persistentes. Uma sociedade contém conflito e a mudança a ele associada, bem como uma ordem social que abrange recursos e sistemas de prevenção e controle de tensão."
O delineamento do sistema social através da definição das relações subjacentes entre um complexo conjunto de atos sociais é talvez a responsabilidade principal do sociólogo, mas evidentemente é apenas um começo. Na realidade, alguns sociólogos sustentam que é menos importante do que outra tarefa, isto é, explicar a persistência dos sistemas sociais no tempo. A coordenação, num único momento do tempo, de milhares e mesmo milhões de atos individuais em um sistema mais ou menos estável de ação social, é talvez milagrosa. Todavia, essa ordem de curto prazo é apenas uma maravilha secundária, quando comparada ao grande milagre representado pela persistência, em períodos relativamente longos de tempo, de tais sistemas de ação. Grupos de animais — até de cães e elefantes — podem ser treinados para coordenar O seu comportamento em padrões muito complexos de ação. No entanto, sem o seu treinador, tais animais não têm meios para transmitir, a gerações seguintes, as proezas que aprenderam. A complexa coordenação de ação humana que todo sistema social representa é quase sempre prolongada no tempo, além das vidas de qualquer conjunto isolado de participantes. Tal continuidade é também encontrada em colônias de insetos sociais, mas no seu caso sabemos que o instinto assegura o resultado adequado. Como a regulação instintiva do comportamento não é igualmente importante no homem, a continuidade da ordem social precisa ser explicada através de outros mecanismos.
Portanto, a sociologia procura explicar a continuidade, no .tempo, dos sistemas sociais. Todavia, a continuidade precisa ser reconhecida como relativa. A sua ocorrência não pode ser considerada como assegurada, mas, ao contrário, deve ser reconhecida como problemática. Existe, razão para acreditar que algumas sociedades extraordinariamente estáveis continuaram imutáveis em todos os aspectos essenciais, frequentemente até as menores minúcias, geração após geração, talvez, por centenas de anos. Nossa impressão da natureza relativamente imutável de tais sociedades pode ser, principalmente, um artifício da inadequação do registro histórico. De qualquer modo, quase todas as sociedades que fazem parte da história mais recente do homem parecem, ter passado por um processo contínuo, difuso e às vezes muito acelerado de mudança. No entanto, no caso da mudança, tal como no caso da continuidade, o sociólogo supõe que a sequência de acontecimentos é intrinsecamente ordenada. O processo de mudança não é casual, embora às vezes pareça caótico, e frequentemente esteja fora do controle consciente de indivíduos e da sociedade como um todo. Portanto, a sociologia também descreve a mudança nos sistemas sociais, e procura descobrir os processos básicos através dos quais, sob condições especificadas, um estado do sistema leva a outro, incluindo-se, potencialmente, o estado de desorganização e dissolução.
Em resumo, portanto, podemos dizer que a sociologia é o estudo da ordem social, o que significa a regularidade subjacente do comportamento social humano. O conceito de ordem inclui os esforços para atingi-la, bem como os afastamentos com relação a ela. A sociologia procura definir as unidades de ação social humana e descobrir o padrão na relação de tais unidades — isto é, saber como se organizam em sistemas de ação. Ao trabalhar com tais sistemas de ação, a sociologia procura explicar a sua continuidade no tempo, bem como compreender como e por que tais unidades e suas relações mudam ou deixam de existir.


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Fonte:
O que é Sociologia?, por: Alex Inkles. Tradução de: Dante Moreira Leite. Pioneira Editora. São Paulo, 1971, págs. 46-51.

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