Notícia Biográfica
Marco Túlio
Cícero nasceu em Arpino, no ano 106 a. C. Sua mãe, Hélvia, pertencia a uma
família humilde, mas de boa reputação. Quanto a seu pai, divergem as opiniões dos biógrafos,
pretendendo uns que ele tenha nascido na loja de um pisoeiro que o educou, e outros
fazendo-o descender de Túlio Átio, que combatera valorosamente contra os
romanos.
O nome de
Cícero tem uma origem pitoresca: em latim cicer
significa "grão-de-bico", e assim fora apelidado um seu antepassado
em virtude de ter no nariz uma protuberância cuja forma lembrava a do gravanço.
A esse respeito, respondeu Cícero,
quando já homem público, aos amigos que o aconselharam a mudar de nome:
"Farei tudo para tornar o nome de Cícero célebre que o de Escauro e o de
Catulo". Com efeito, Scaurus e Catulus, nomes de oradores famosos, não
têm, em latim, significados menos jocosos: "pé torto" e "cachorrinho"...
Mais tarde, quando questor na Sicília, Cícero mandou gravar, num vaso de prata
que iria oferecer aos deuses, os seus dois primeiros nomes, Marcus Tullius, e,
no lugar do terceiro, um grão-de-bico.
Dotado de
excepcionais qualidades literárias e filosóficas, Cícero cultivou todos os gêneros
de atividade intelectual, inclusive a poesia, tendo composto, ainda criança, um
poema intitulado Pontius Glaucus, no qual descreve a aventura de um pescador da
Beócia que, depois de ter comido certa erva, se atirou ao mar transformando-se
em deus marinho. Aperfeiçoou de tal maneira a sua cultura e tão notável se
revelou a sua eloquência que chegou a ser considerado, não só como o melhor
orador, mas ainda como um dos melhores poetas do seu tempo; e note-se que, entre
os príncipes da poesia latina, fulguravam nomes como os de Catulo e de
Lucrécio.
O primeiro
professor de Cícero, logo que terminou os primeiros estudos, foi Filão, o acadêmico,
cuja eloquência e cujo caráter eram legítimo motivo de orgulho dos romanos. Ao
mesmo tempo, frequentava Cícero a casa de Mudo Cêvola, senador ilustre, em cujo
convívio adquiriu um profundo conhecimento das leis. Manteve, igualmente,
estreitas relações com os sábios gregos de sua época, com os quais pôde
aumentar e enriquecer o seu já precioso cabedal científico.
Depois da
morte de Sua, sob cujo governo o jovem Cícero já tinha alcançado um grande
renome, decidiu ele abraçar a carreira administrativa. Nomeado questor da
Sicília, acabou por merecer do povo tão grandes provas de gratidão como nenhum
outro magistrado romano recebera até então. Em toda a Itália, o seu nome se
tornou conhecido e venerado. Mas, a sua popularidade culminou quando ele,
insurgindo-se contra os desmandos de Verres, que fora pretor na Sicília,
produziu os formidáveis discursos que se imortalizaram sob o nome de Verrinas.
Admirado e
estimado, possuía amigos por toda parte, não havendo lugar na Itália em que não
fossem numerosos. Contudo, a sua vontade e, sobretudo, as frases irônicas e
mordazes de que frequentemente usava para ferir os que ousavam fazer-lhe
sombra, acarretaram-lhe uma reputação de malignidade. De espírito fino e de um
sarcasmo impiedoso, para tudo encontrava Cícero uma saída ou uma resposta.
Irritado com
Munácio, porque este, cuja absolvição ele conseguira, demandava contra Sabino,
um dos seus amigos, disse-lhe Cícero: - "Estás mesmo pensando, Munácio,
que foste absolvido graças à tua inocência, e não à minha eloquência, que
ofuscou a luz aos olhos dos juízes?" Como Marco Crasso lhe manifestasse sua
estranheza diante de uma censura, quando pouco tempo antes havia sido por ele
elogiado, Cícero respondeu-lhe: -"Sim, eu quis experimentar o meu talento
num motivo ingrato". Mas tarde, esse mesmo Crasso, querendo reconciliar-se
com Cícero, avisou-o de que iria cear com ele; e, algum tempo depois, como
alguém lhe comunicasse que Valtínio, com quem ele também brigara, desejava
fazer as pazes, disse Cícero: - "Valtínio também quer cear comigo?"
Ao verificar, um dia, que era falsa a notícia que correra da morte de Valtínio,
exclamou: -"Maldito quem mentiu tão inoportunamente!" A um rapaz que
o ameaçava de cobri-lo de injúrias e que, pouco antes, fora acusado de ter
envenenado o próprio pai com um bolo, disse Cícero: -"Prefiro tuas
injúrias ao teu bolo". A um certo Públio Cota, que se tinha na conta de
jurisconsulto, embora ignorante das leis e medíocre, retrucou Cícero, quando
aquele, interrogado como testemunha num processo, lhe respondeu que não sabia
nada: - "Julgas que te interrogo sobre o direito?!" Como Metelo
Nepote, numa discussão acalorada, perguntasse insistentemente a Cícero quem era
seu pai, teve esta resposta: "Graças à tua mãe, encontras mais
dificuldades do que eu para responder' a essa pergunta". Ao ouvir Marco
Ápino dizer, numa defesa, que o amigo que ele defendia lhe recomendara muita
exatidão, raciocínio e boa fé, interrompeu-o Cícero: -"E como tens coragem
de não fazer nada do que o teu amigo te pediu?" Tendo Verres, cujo filho
adolescente era tido como homossexual, chamado Cícero de efeminado, este
respondeu-lhe:
- "É
uma censura que deves fazer ao teu filho, com as portas fechadas".
Outras
vezes, suas frases eram cheias de humorismo, como quando perguntou a Domício,
ao cogitar este de dar a um homem pouco inclinado à guerra, cuja honestidade entretanto
admirava, um posto qualquer de que não o destinas para educar os teus filhos?"
Ou quando, na Espanha, onde combatia ao lado de Pompeu, retrucou a um certo Márcio,
que, recém-chegado da Itália, disseram que em Roma corria o boato de que Pompeu
estava sitiado: - "E embarcaste,
então, só para vives certificar disso com teus próprios olhos?"
Como Cônsul,
o maior triunfo político obtido por Cícero foi a repressão fulminante da
conspiração de Caulina, cujos partidários ele mandou prender ,. cm seguida, fez
executar em sua presença e na presença de todo o povo. As suas famosas Catilinárias, pronunciadas no senado
valeram-lhe o título de "Pai da Pátria". Cícero era, então, o homem
mais querido e de maior autoridade em Roma.
A sua
estrela, só principiou a empalidecer quando encontrou diante de si, enérgica e
impetuosa, a figura de César, futuro ditador. Tendo procedido ingratamente para
com Clódio, homem de grande influência a quem devia grande parte de sua força,
Cícero acabou perdendo totalmente o seu prestígio: duramente combatido pela
aliança de César com Clódio, humilhou-se e, depois de uma série de
perseguições, foi exilado. Mas, embora abandonado pelos grandes vultos romanos
e mesmo por muitos dos seus velhos amigos, não deixou Cícero de receber, no
exílio, testemunhos eloquentes de estima e admiração. Em Dirráquio onde esteve
de passagem, foi visitado por grande número de pessoas que, em nome das cidades
gregas, iam prestar-lhe homenagem. Por fim, como Clódio se incompatibilizasse
com o povo pelas arbitrariedades que praticara, Cícero foi de novo chamado à
Itália, tendo sido recebido com grandes manifestações de alegria, depois de ter
passado dezessete meses fora do país. Clódio, algum tempo mais tarde, morreu
assassinado, e Cícero foi o defensor do assassino, não tendo, porém, conseguido
a sua absolvição. Foi nessa ocasião que se indispôs, com Catão, por ter este
reprovado asperamente a sua atitude. Todavia, como governador da Cilícia, que
lhe coubera por sorte na partilha que fora feita das províncias, a sua
excelente administração e, sobretudo, uma vitória militar alcançada sobre os
bandidos que assolavam a montanha de Amano, nos limites com a Síria, puderam
reabilitá-lo e fazê-lo subir tão alto no conceito dos seus soldados
concidadãos, que lhe foi dado o título de imperator
e, em Roma, se fizeram preces publicas para agradecer aos deuses o seu
esplêndido triunfo.
De regresso
da Cilícia esteve Cícero em Rodes e em Atenas, onde visitou os vultos mais
eminentes da época e recebeu dos gregos grandes provas de veneração. Chegando a
Roma, Cícero encontrou uma situação extremamente grave, minada pelo dissídio
entre César e Pompeu. Cheio de ambição e sem saber que partido tomar para
satisfazê-la, colocou-se a princípio ao lado de Pompeu, para logo depois,
aconselhado por Catão, passar a fazer o jogo de César. Catão, no entanto, não
podia fazer o mesmo, por achar que não devia abandonar a causa que abraçara
desde o início de sua carreira política. Cícero fez, mais tarde, o elogio de
Catão, e César, na resposta que lhe deu, não deixou de louvar-lhe a eloquência
e os serviços prestados à pátria. O discurso de Cícero intitula-se Catão, e o
de César Anti-Catão.
Conta
Plutarco que, tendo Cícero se encarregado da defesa de Quinto Ligário, acusado
de ter pegado em armas contra César, disse este aos seus amigos: - "Que
impede que deixemos Cícero falar? Há muito tempo que o ouvimos. Quanto ao seu
cliente, é um homem mau e meu inimigo: está julgado". No entanto, a defesa
feita por Cícero foi tão brilhante que perturbou o próprio César, fazendo-o
tremer de emoção, e Ligário foi absolvido.
Instaurada a
autocracia de César, retirou-se Cícero da vida pública, passando a ensinar
filosofia no seu retiro de Túsculo e só raramente indo a Roma para prestar
homenagens ao ditador. Era seu projeto, igualmente, escrever uma história da
Itália, mas os múltiplos afazeres e as preocupações domésticas que se seguiram
ao seu divórcio, impediram-lhe a realização desse desejo. Separando-se de
Terência, sua mulher, casou-se em seguida com Publília, jovem cuja beleza e
fortuna o seduziram. Pouco tempo depois, desgostoso com a morte de sua filha
Túlia, acabou repudiando a nova mulher, sob o pretexto de que esta se alegrara
com o triste acontecimento.
Embora amigo
de Bruto, Cícero não participou da conspiração contra César. Morto o ditador,
António, que era cônsul, tratou logo de fortificar o seu poder e moveu contra
Cícero uma campanha terrível, sobretudo quando este, cheio de ambição,
principiou a conspirar com o jovem César Otávio para chegar ao governo. Foi,
porém, traído por Otávio, que acabou constituindo um triunvirato com António e
Lépido, e os três, de comum acordo, partilharam o império entre si.
Inteiramente
abandonado, Cícero e seu irmão Quinto deixaram Túsculo, onde se encontravam em
repouso, e partiram para Astira, com o fim de embarcarem, depois, para a
Macedônia e se colocarem ao lado de Bruto, cujas forças segundo corria, tinham
aumentado consideravelmente. Em meio da viagem, porém, desesperançados e sem
provisões, resolveram separar-se devendo Cícero continuar a viagem e Quinto
correr à sua casa em busca do necessário. Alguns dias mais tarde, Quinto,
pilhado por seus perseguidores, foi mono ao mesmo tempo que seu filho, depois
de uma discussão comovente entre ambos, cada qual desejando ser o primeiro a
morrer: os carrascos não esperaram que chegassem a um acordo e, separando-os,
os degolaram.
Em Ástira,
Cícero, encontrando um navio, embarcou e foi até Circeu, mas aí, mudando
totalmente de resolução, quis voltar a Roma, onde esperava contar com a
benevolência de Otávio. Caminhou a pé alguns quilômetros e, sempre hesitante,
tornou ao ponto de onde partira e regressou a Ástira, dirigindo-se, no dia
seguinte, para Caieta (hoje Gaeta), onde possuía um domínio. A sua aflição era
enorme e, para tirá-lo da situação penosa em que se achava, o seus criados
resolveram levá-lo numa liteira em direção ao mar. Foi quando, a meio caminho,
chegaram os seus assassinos, Herênio e Popílio, e o degolaram, tendo o próprio
Cícero estendido corajosamente a cabeça ao mesmo tempo que pronunciava estas
palavras: Moriar in patria saepe servata
("Morra eu na pátria que tantas vezes salvei").
Morreu no
ano 43 a.C., aos sessenta e três anos de idade. Entre as as principais obras
filosóficas, contam-se as seguintes: De
Re Publica, De Officiis, Cato Major, Loelius Seu De Amititia, De Finibus
Bonorum et Maloum, Pararadoxa Stoicorum, Tusculunarum Quoestionum, De Natura
Deorum, De Divinatione, etc. E entre os seus discursos: In Catilinam, Pro Q. Gallio, Pro A .
Cluentio Avito, Pro Lege Manilia, Pro À. Coecina, In Verrem, In Q. Coecilium, Pro
Scamandro, Pro C. Mustio, Pro P. Quinctio, Pro Q. Roscio, Pro Murena, Post
Reditum ad Quirites, Pro L. Cornelio Balbo, In L. Pisonem, Pro C. Rabirio
Posthumo, Pro Q. Ligario, Pro Rege Dejetaro, Pro T. Annio Milone, Pro M.
Marcello, Pro C. Planeio, De Provinciis Consularibus, Pro M. Coelio Rufo, Pro
Domo Sua, Ad Pontífices, Pro P. Sextio, etc.
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Fonte:
Mestres Pensadores: Cícero - Da República. Editora Escala. Tradução: Amador Cisneiros. São Paulo, s/d, págs. 9-13.
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