terça-feira, 26 de julho de 2016

Por trás da cortina de ferro (Religião)

Por trás da cortina de ferro
Interdição de templos preocupa igrejas cubanas após a visita do papa
Por:  Maurício Zágari
Quando o papa João Paulo II, líder da igreja católica, visitou Cuba, no início deste ano, muita gente alardeou que a ilha comunista estava promovendo uma abertura ao cristianismo. Afinal, o ditador do país, o ateu Fidel Castro, decretou feriado nacional, ordenou a distribuição de folhetos explicando quem é Jesus, permitiu que fossem pintados murais com a imagem tradicional que os católicos têm do filho de Deus. A questão é: seria essa abertura saudável à sã doutrina? Qual é o Cristo que foi divulgado em Cuba? Só para se ter uma ideia do risco que a visita do papa representa, basta observar outra medida tomada por Fidel Castro às vésperas da chegada do líder católico e que não teve divulgação na imprensa: o fechamento de igrejas evangélicas domésticas.
Poucas horas antes de o polonês Karol Wojtyla - o nome verdadeiro de João Paulo II - pisar em solo comunista, um grande número de igrejas domésticas na capital de Cuba, Havana, receberam ordem de interdição. Os documentos foram emitidos pelo Registro Nacional de Associações, órgão do governo que fiscaliza com rigidez o funcionamento de todos os núcleos religiosos no país. Curiosamente, o fechamento aconteceu no dia 20 de janeiro, um dia antes de o papa chegar ao país. A denúncia partiu de líderes da Convenção Batista de Cristo.
Ainda não foi possível avaliar a extensão do estrago. A quantidade de igrejas domésticas pressionadas para que encerrassem suas atividades foi classificada apenas como "numerosa". A repressão e o medo dificultam uma mensuração precisa, mas os batistas especulam que outras denominações foram igualmente afetadas pela proibição.

Pressão intensa
Um pastor cubano que pediu para não ter seu nome revelado, afirmou que agentes do governo chegaram às igrejas domésticas e pediram para falar com os proprietários. "Os oficiais solicitaram que eles assinassem um formulário em que se comprometiam a fecharas igrejas", disse. O pastor ressaltou ainda que nenhuma razão foi apresentada para as interdições. Sem explicar exatamente que tipo de retaliações sofreram os dirigentes dos núcleos evangélicos, um porta-voz da Convenção Batista disse apenas que "eles foram pressionados intensamente" para assinar o documento.
A quantidade de igrejas domésticas em Cuba sofreu um crescimento brutal após a dissolução da União Soviética, em 1989, ao mesmo tempo que a economia nacional passou por um grande declínio. Um problema sério no país é o racionamento de combustível provocado pelo embargo dos Estados Unidos. Afeita de gasolina e óleo diesel provocou uma estagnação no sistema de transportes e, com isso, os fiéis passaram a reunir-se em grupos menores. Em vez de percorrer grandes distâncias para chegar às igrejas estabelecidas, começaram a se agregar em pequenos núcleos, em casas de membros.
Essa tendência levou o governo a pressionar os pastores a encerrai" as atividades domésticas, ameaçando-os de prisão.
Clandestinamente, porém, milhares de igrejas continuam funcionando por toda a ilha. Dentro desse quadro, líderes evangélicos tinham a esperança de que a visita de João Paulo II fosse abrir muitas portas para os cristãos. A repressão do dia 20 foi um balde de água fria.

Dividir as igrejas
Numa carta enviada ao jornal americano Miami Herald em 22 de janeiro, o analista internacional Gerardo van Dalen, diretor da Fundação Pró-Mártires, afirmou que a Liga Evangélica de Cuba estava sofrendo pressões da polícia secreta de Fidel Castro no sentido de estagnar toda a atividade evangelística durante a visita do papa.
A Convenção Batista de Cuba Ocidental foi excluída da reunião ecumênica com João Paulo II realizada em 25 de janeiro. Para o presidente da convenção, Leoncio Veguilla, "o governo está jogando através do Conselho Cubano de Igrejas, para dividir e distrair as igrejas evangélicas".
Muitos pastores têm sentido na pele a dor da perseguição. Orson Vila, da Assembleia de Deus Cubana, foi condenado a 23 meses de prisão por se recusar a fechar 85 igrejas domésticas existentes no distrito de Comanguey. Já Miguel Angel Leon Cabrera, pastor da Igreja Batista de San Fernando de Camarones, está detido indefinidamente em regime de prisão domiciliar. Segundo a Agência de Imprensa Independente de Cuba -APIC - quatro pastores da província de Matanzas também foram obrigados a fechar suas igrejas domésticas. Sob a acusação de serem agentes da CIA, Benito Alfonso, Douglas Borges, Obdulio Mendez e Alberto Cruz foram levados à sede da polícia em Matanzas e ameaçados de prisão caso continuassem suas atividades religiosas. Líderes de diversas denominações têm recebido advertência para não abrir as portas a visitantes de outros países e a recusar qualquer ajuda financeira de organizações missionárias.
Apesar de todos esses problemas, as igrejas evangélicas em Cuba continuam em franca expansão. Segundo fontes da Assembleia de Deus no país, em 1990 havia apenas 86 templos e 15 missões na ilha. Hoje, são 320 igrejas e 700 núcleos domésticos, além de centenas de casas de oração. Algumas congregações, que recebiam de 50 a 100 pessoas na Escola Dominical atualmente contam com 700 e precisam realizar duas aulas aos domingos para comportar o número de frequentadores.

Razão da visita
Esse estouro das igrejas evangélicas no país foi um dos motivos que levou João Paulo II a visitar Cuba. O historiador Enrique Lopez estima que existam hoje no território mais de 800 pastores protestantes, 900 templos e mais de três mil igrejas domésticas.
"Os pastores trabalham nas bases das comunidades, atendendo às necessidades imediatas do povo, o que os padres católicos não fazem. Falam de valores espirituais, não de política. Meu pai era alcoólatra e foi o pastor que o convenceu a deixar o vício", conta um jovem que se identificou apenas como Oscar, de 22 anos, morador de Havana.
Mais da metade da população cubana pratica ritos afro-cubanos (chamados no país de santeria), uma mistura de catolicismo com crenças herdadas dos escravos africanos. Cerca de 40% dos habitantes do país se dizem católicos, mas apenas 150 mil vão à igreja. Cuba é o único país da América Latina onde o aborto é praticado sem qualquer tipo de restrição legal, em hospitais especializados. Estatísticas oficiais mostram que, em 1996, foram praticados 83.827 abortos na ilha. Lá, o divórcio é oficialmente reconhecido. Em 1997 houve 66.009 casamentos e 41.227 divórcios.
"Pertenço à Igreja Pentecostal porque ela me ajuda quando tenho problemas", explica outro morador de Havana, Araes Rondon, de 25 anos.
Ao pisar em solo cubano, João Paulo II declarou em cadeia de rádio e televisão que chegava ao país para "confirmar o povo de Cuba na fé, animá-lo na esperança e alentá-lo na caridade". Em seguida, defendeu mais espaço para o Vaticano. "Hoje, como sempre, a Igreja em Cuba deseja poder dispor do espaço necessário para continuar servindo a todos de acordo com a missão e os ensinamentos de Jesus Cristo", disse.
Nos cinco dias em que esteve na ilha de Fidel Castro, o papa adotou um forte discurso político. Ele criticou o bloqueio econômico que os Estados Unidos promovem há quase 40 anos contra o país, falou sobre direitos humanos e defendeu a liberdade de associação. Mencionou ainda os baixos salários pagos pelo governo e apontou a existência de "insatisfações por razões ideológicas". Isso dito numa missa cujo tema era a família e sob os olhos de 50 mil pessoas.

Perseguição surgiu com o comunismo
Cuba é atualmente o último reduto das américas com um regime de cunho comunista. Mas nem sempre a ilha seguiu essa linha ideológica. Para se entender como o país caminhou até chegar ao ponto em que se encontra, é preciso retroceder no tempo. Mais precisamente, ao século XV.
Em 1492, Cristóvão Colombo chegou à América, inaugurando um período de colonialismo. A Espanha fincou sua bandeira no Caribe e passou a explorar o continente para engordar seus cofres. Com o tempo, as colônias começaram a se rebelar contra a metrópole e, mediante sucessivas guerras, foram obtendo a autonomia. Cuba foi a última a proclamar independência da Espanha, após um longo e destrutivo conflito.
Naquela época, a ilha era rica, graças à produção de açúcar, mas a autonomia política nunca existiu. Devido a governos apoiados e financiados pelos Estados Unidos, grande parte da população vivia em miséria absoluta.
Essa estrutura exploratória e dependente estendeu-se ao longo dos séculos, até que, em 1959, surgiu um homem disposto a mudar o panorama. Seu instrumento para isso chamava-se revolução. Seu nome, Fidel Castro.
Lançando mão da revolta armada, Fidel e seu grupo de aliados conseguiram destituir o então líder do país, Fulgêncio Batista, um forte colaborador dos Estados Unidos. Uma vez no poder, o novo comandante procurou ajuda contra o imperialismo americano sob as asas da União Soviética. Nascia o comunismo em Cuba.
Segundo o especialista Shawn T. Malone, diretor do Projeto para o Caribe da Universidade de Georgetown, nos EUA, naquele momento as igrejas evangélicas buscaram estabelecer relações cordiais com o novo regime. Pela Internet, a SEARA teve acesso a seu estudo Conflito, coexistência e cooperação: relações Igreja-Estado em Cuba, uma análise aprofundada sobre as influências do governo de Fidel Castro na vida religiosa do país. "Identificando similaridades entre seus ideais de justiça social e os da revolução, muitas denominações protestantes buscaram rapidamente estabelecer relações cordiais com o regime, enquanto a mais conservadora igreja católica experimentou um elevado grau de conflito", explica Malone.
Nesse princípio do governo revolucionário, não se conhecia ainda o peso do comunismo na ideologia de Fidel. Somente a partir de 1961, quando Castro anunciou oficialmente a natureza marxista-leninista (e, implicitamente, ateísta) do regime, foi que os religiosos perceberam que a existência de cordialidade era uma utopia.
Em 1962, confrontos entre Igreja e Estado eram desnecessários para ambos. Católicos e evangélicos foram se enfraquecendo, perdendo a maioria de seus membros mais progressistas devido à lealdade ao regime e muitos de seus integrantes mais conservadores para o exílio. As igrejas foram sendo dizimadas. "Líderes de denominações metodistas, presbiterianas e episcopais foram os primeiros a aceitar o regime", afirma Malone. "As igrejas evangélicas menores e as pentecostais (...) tendiam a permanecer apolítícas, concentrando-se no lado espiritual em detrimento do social ou político. Embora essas igrejas cooperassem com o governo para poder sobreviver, seriam melhor descritas como neutras do que como pró-regi-me", ressalta o magistrado em seu estudo.
Malone relata que a discriminação religiosa era comum nesse período, mesmo com relação às igrejas mais cooperadoras. Obreiros eram perseguidos, serviços religiosos obstruídos, igrejas empasteladas, o acesso dos fiéis à educação e ao trabalho era restringido e pastores eram enviados a "campos de reeducação", junto com prostitutas, criminosos e outros "elementos antissociais".


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Fonte:
Revista Seara. Ano 41 - Nº 17 - Abril de 1998. CPAD. Rio de Janeiro, págs. 13-14.

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