Bahia Muçulmana: A Revolta dos Malês
Por: Josué
Giamarco
Sem dúvida,
uma das grandes manchas da história brasileira é a escravidão africana. Sua
história reserva detalhes que muitos desconhecem e que merecem ser mais bem
estudados. Um destes pontos históricos desconhecidos diz respeito às revoltas
de escravos, em especial a de escravos muçulmanos, ocorridas na Bahia ao longo
das primeiras quatro décadas do século passado.
A mais
importante delas, pela elaboração do plano e pela ousadia dos participantes,
entre eles tanto escravos como negros livres ou emancipados (como eram
denominados), foi a chamada "Revolta dos Males", nome possivelmente
vindo do ioruba imole (muçulmano). Apesar de ter sido rapidamente controlada,
colocou em polvorosa a província e, porque não dizer, todo o pais recém-criado.
A revolta,
planejada para ocorrer em 25 de janeiro de 1835, foi delatada horas antes por
uma escrava emancipada, por nome Guilhermina Rosa de Souza. Ela ouvira os
planos de que, no momento do toque de alvorada dos soldados, seriam ateados
vários focos de incêndio em Salvador, aproveitando que nesse mesmo horário os
escravos saíam para buscar água para abastecer a casa de seus senhores. Teria
início, assim, o levante que objetivava apoderar-se da cidade e matar todos os
brancos, bem como os negros que não aceitassem tomar parte no movimento,
deixando os mulatos vivos para servir como escravos.
Avisadas as
autoridades, o chefe de polícia ordenou a revista das casas dos africanos,
ocorrendo o encontro com os revoltosos. Durante a madrugada aconteceram
diversas escaramuças e, na manhã do dia 25, a revolta havia sido debelada.
Entretanto, o pequeno grupo de insurretos, cerca de sessenta, tinha conseguido,
em algumas horas, intimidar a guarda do palácio do governo, resistir ao
batalhão de infantaria, obrigar a polícia a fechar-se em sua caserna, somente
encontrando resistência e contra-ataque na caserna da cavalaria. No corpo do
primeiro revoltoso morto, juntamente com sua espada, foram encontrados muitos
papéis em língua árabe, contidos dentro de um saquinho.
A
investigação para definir as lideranças centrou-se nos africanos muçulmanos
letrados, por serem todos suspeitos de envolvimento. Eles estavam novamente na
mesma situação que na África, na qual membros de uma pequena comunidade
muçulmana, submetidos à autoridade de um soberano africano pagão, faziam parte
de uma minoria afogada em uma maioria de pagãos. O que mudava na Bahia era o
fato de estarem rodeados de cristãos que eram seus senhores. No espírito
muçulmano, tanto pagãos como cristãos podiam ser considerados, igualmente,
"cães infiéis". Tais mestres do Alcorão pertenciam, principalmente,
às nações ussá, tapa e nagô, e se
dedicavam a ensinar o árabe e os pilares da fé muçulmana aos escravos baianos.
Na casa onde
houve o primeiro choque entre os insurretos e a polícia, demonstrando a força
da reconstrução da cultura muçulmana na Bahia, entre os escravos, foram
encontrados túnicas e bonés brancos e uma dezena de tábuas e papéis cobertos de
escrita árabe. Isso mostra como os muçulmanos, ao chegarem ao Brasil,
procuraram reorganizar a sua fé e cultura, mesmo que de forma dissimulada.
No entanto,
muito mais que um meio de comunicação, apesar de seus caracteres serem
utilizados para escrever a língua ussá,
o árabe era utilizado para ler trechos do Alcorão, cujos exemplares também
chegavam via África até Salvador. Foram encontrados numerosos papéis e
brochuras descritos nos relatórios de polícia como sendo "escritos à
maneira dos hebreus", "brochuras hebraicas", cobertos de
caracteres "harabes", escritos "arabicamente", em
"hieroglíficos" ou em "caracteres estrangeiros".
No processo
de identificação dos culpados foram acusadas 286 pessoas, sendo 160 escravos e
126 emancipados e, apesar do todos os esforços, o líder principal - o imame, de
quem diziam ser o nome Mala Abubakar, não foi descoberto. Foram aplicadas penas
de morte, chicotadas e expulsão do país. Nos meses seguintes vários africanos
emancipados e seus filhos, dos quais muitos não eram muçulmanos, mas católicos,
retornaram à África por livre escolha ou penalizados com o desterro. A partir
de então, vê-se cair vertiginosamente o número de escravos oriundos de regiões
de cultura muçulmana para a Bahia, mudando o quadro cultural referencial da
população escrava.
Para se ter
uma ideia da força que o Islã representou, basta lermos uma entrevista de 1848,
treze anos após esse incidente, realizada por um pesquisador com um ancião fulani, habitante da Bahia:
"Esse ancião, Mohammad-Abdullad,
fulani, que está na Bahia há trinta anos, libertou-se da escravidão pelo seu
trabalho e segue hoje a profissão de carpinteiro. Tem instrução, e sabe não
somente ler e escrever em sua língua, mas ainda em português. E de resto muito
intolerante, muito fanático e procura por todos os meios converter-me; e, mesmo
que o tenha recebido o melhor possível, lhe tenha dado dinheiro, (...)
recusa-se a vir em minha casa, dizendo para um outro negro que não quer ir na
casa de um cão cristão. Pode ter 70 anos. Era marabu (eremita ou asceta que se
consagra à prática e ensino da vida religiosa) e fez a viagem para a Meca. É de
cor chocolate e tem os cabelos retos; zomba muito dos negros ussás que, diz,
amarram no queixo barbas de bode para dar-se aparência de homem. Nativo de
Kano, fora pego em Katchina pelos negros de Ussá, contra os quais os fulani
estavam em guerra. Veio para a costa pelo caminho de Eko...(Lagos)....
De resto, este ancião não tem senão uma
lembrança confusa daquela viagem, e retorna sem parar para a fé de Maomé, que
chama 'o fundamento' e que, de acordo com ele, é a única coisa deste mundo com
que valha a pena se ocupar. Os negros ussás que estão em minha casa parecem ter
muita veneração por este homem e, pelo seu exemplo, se põem a murmurar cantando
os versos do Alcorão. "
Ao nos
depararmos com esses detalhes da história em nosso país, ficamos a pensar, como
seria a configuração atual da massa religiosa brasileira, em especial da
população negra, caso a entrada de escravos muçulmanos não tivesse sido
reduzida, para não dizer abandonada, após esse evento. O Brasil poderia ter a
população negra, na sua maioria islâmica, ou pelo menos a Bahia, teria o quadro
religioso diferente do que vemos hoje.
BIBLIOGRAFIA
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX, pp. 339 - 351, SP, Corrupio, 1987.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX, pp. 339 - 351, SP, Corrupio, 1987.
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Fonte:
Revista Defesa da Fé. Ano 3 - Nº 18 - 18 de janeiro de 2000. Instituto Cristão de Pesquisa. São Paulo, págs. 14-15.
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