As várias "personalidades"das
palavras
Prepare-se.
Este texto vai dar trabalho. Será necessário abrir o coração e a alma para
admitir a existência de velhos vícios. Será preciso aceitar novidades e
surpresas. Também será preciso afiar o raciocínio lógico, sobretudo para a
primeira conversa.
Vamos lá. Um
cidadão é filho, neto e bisneto de estrangeiros. De alemães, por exemplo.
DIZ-SE, COM
TODA A NATURALIDADE, QUE ELE DESCENDE DE ALEMÃES, CERTO?
Certo.
Realmente, esse cidadão descende de "alemães". "Descender"
significa "provir por geração, originar-se".
Até aí,
nenhuma novidade. E se esse cidadão quiser fazer referência a seus
antepassados? O que deve dizer? Que sua descendência é alemã? Vamos pensar.
"Descendentes" são aqueles que "descendem", ou seja,
"os que provêm", "os que vêm depois", "os que se
originam". Não é o pai que descende do filho. É o filho que descende do
pai. Então os descendentes de uma pessoa são seus filhos, netos, bisnetos.
Obviamente, sua descendência está nos seus descendentes. Um cidadão só pode
dizer que tem descendência alemã se seus filhos, netos, bisnetos forem alemães.
"Ascender"
significa "subir, elevar". São ascendentes os que estão acima.
Obviamente, a ascendência de uma pessoa está nos seus ascendentes, nos que vêm
antes, ou seja, nos pais, nos avôs, nos bisavôs.
Moral da
história: se um cidadão descende de alemães, ou seja, se provém de alemães, sua
ascendência (e não sua descendência) é alemã, porque os que estão acima dele,
na hierarquia familiar, ou seja, seus ascendentes (pais etc.), são alemães.
Todos sabem
que no dia-a-dia as pessoas simplesmente ignoram a palavra
"ascendência". Referindo-se a sua origem, costumam dizer "minha
descendência". É o velho problema da contaminação pela semelhança.
O objetivo
deste texto não é apenas tentar ensinar a diferença entre "descender"
e "ascender", ou entre "ascendência" e
"descendência". Isso é só uma semente. A ideia é tentar fazer você
prestar atenção nas palavras e — é claro — no que elas significam.
Agora vamos
às surpresas.
COMEÇAMOS
COM A PALAVRA "FORMIDÁVEL". VOCÊ SABE O QUE ELA SIGNIFICA?
Procure-a
num bom dicionário. O primeiro significado que se dá é "pavoroso,
diabólico, horrendo, assustador". E não faltam exemplos. Clássicos. Mas
essa palavra passou a significar algo como "maravilhoso, excelente,
fantástico".
E
"BÁRBARO"?
Outra desse
time. Os gregos e os romanos denominavam "bárbaros" todos os
estrangeiros. "Bárbaro" também é um indivíduo dos bárbaros, povo do
norte da Europa, que, por sinal, invadiu parte do Império Romano. A palavra
também assumiu o significado de "rude, sem civilização, inculto,
selvagem". No Brasil, essa palavra possui ainda o sentido de "muito
bom, excelente". Muita gente de mais de quarenta anos continua usando essa
palavra com esse sentido, muito comum na época da Jovem Guarda.
AGORA
RESPONDA VOCÊ TEM DUVIDAS QUANTO AO SIGNIFICADO DE "SOFISTICADO"?
Essa
palavrinha é supersurpreendente. Usada largamente com o sentido de
"chique, muito chique, de extremo bom gosto, de alto nível", essa
palavra aparece nos dicionários como derivada de "sofisticar", sinônimo
de "sofismar", ou seja, "falsificar, adulterar, deturpar".
"Sofisticar" e "sofismar" são farinha do mesmo saco.
"Sofisma" nada mais é do que "argumento falso formulado de
propósito para induzir alguém a erro".
Uma que não
pode faltar é "relevar". É de cair o queixo.
O QUE VOCÊ
ENTENDE POR "RELEVAR UM FATO"?
Pode ser
"destacá-lo, dar-lhe importância, salientá-lo", ou "deixá-lo de
lado, ignorá-lo, atenuar sua importância". A palavra simplesmente tem
sentidos quase opostos. E mais um, que quase passa despercebido: "tornar a
levar, levar de novo".
Para
terminar, outra doida como "relevar": "percalço".
SABE O QUE É
"PERCALÇO"?
Constate
você mesmo. Procure "percalço" nos dicionários.
Significa
"problema, obstáculo, dificuldade", como é mais usada hoje. Mas
também pode significar "lucro, vantagem, provento, rendimento,
proveito".
Tudo isso
mostra que às vezes o mundo das palavras não é muito diferente do mundo das
pessoas. Várias "personalidades". Cuide-se!
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Fonte:
Ao Pé da Letra, por: Pasquale Cipro Neto. Editora EP&A. Rio de janeiro, 2001, págs. 126-128.
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