A ação da alma sobre o corpo
Por: José
Américo Motta Pessanha
Essa
concepção de homem provinha de Platão (428-348 a.C.) e foi conhecida por
Agostinho, pouco antes da conversão, através de Plotino. No diálogo Alcibíades,
Platão define o homem como uma alma que se serve de um corpo, e Agostinho
mantém permanentemente esse conceito com todas as consequências lógicas que ele
comporta, dentre as quais a principal é a ideia de transcendência hierárquica da
alma sobre o corpo. Presente em sua morada terrena, a alma teria funções ativas
em relação ao corpo: atenta a tudo o que se passa ao redor, nada deixa escapar
à sua ação. Os órgãos sensoriais sofreriam as ações dos objetos exteriores, mas
com a alma isso não poderia acontecer, pois o inferior não pode agir sobre o
superior. Ela, no entanto, não deixaria passar despercebidas as modificações do
corpo e, sem nada sofrer, tiraria de sua própria substância uma imagem
semelhante ao objeto. Essa imagem, que constituiria a sensação, não é,
portanto, paixão sofrida pela alma, mas ação.
Entre as
sensações, algumas referem-se às necessidades e estados do corpo, outras dizem
respeito a coisas exteriores. O caráter distintivo desses objetos é a
instabilidade: aparecem e desaparecem, estão aí e já não estão mais, sem que
seja possível apreendê-los de uma vez por todas. Com isso ficam inteiramente
excluídos de qualquer conhecimento verdadeiro, pois este exige necessariamente
estabilidade e permanência. O conhecimento não seria, portanto, apreensão de
objetos exteriores ao sujeito, tal como são dados à percepção. Seria, antes, a
descoberta de regras imutáveis, tais como "2 + 2 = 4", ou então o
princípio ético segundo o qual é necessário fazer o bem e evitar o mal. Tanto
num caso como no outro, refere-se a realidades não-sensíveis, cujo caráter
fundamental seria a necessidade, pois são o que são e não poderiam ser
diferentes. Da necessidade do conhecimento decorreria sua imutabilidade e,
desta, a sua eternidade.
Essa conclusão
coloca desde logo um problema, pois revela a existência de dois tipos
inteiramente diferentes de conhecimento. O primeiro, limitado aos sentidos e
referente aos objetos exteriores ou suas imagens, não é necessário, nem
imutável e nem eterno; o segundo, encontrado na matemática e nos princípios
fundamentais da sabedoria, constitui a verdade. Essa verificação permite que se
indague: será o próprio homem a fonte dos conhecimentos perfeitos? Contra a
resposta afirmativa depõe o fato de ser o homem tão mutável quanto as coisas
dadas à percepção, e justamente por isso ele se inclina reverente diante da
verdade que o domina. Assim, só haveria uma resposta possível: a aceitação de
que alguma coisa transcende a alma individual e dá fundamento à verdade. Seria
Deus.
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Fonte:
Os Pensadores: Santo Agostinho. Tradução: J. Oliveira Santos e Ambrósio de Pina. Nova Cultural. São Paulo, 1996, págs. 15-16.
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