Nero
Agripina
havia sido, certamente, mulher nefasta. Os últimos episódios de sua vida não
deixam, entretanto, de ser dignos de uma verdadeira matrona da Roma antiga. Não
hesitou em opor-se, resolutamente, ao filho, quando este lhe pediu
consentimento para devorciar-se de Otávia. Tácito disse que ela chegou até
mesmo a oferecer-se a ele.
Ainda que a
tivesse relegado numa vila, Nero continuava a temê-la. Contudo, também tinha
medo de Popéia, que continuava a recusar-se a ele e a ridicularizar-lhe o amor
pela mãe. Popéia achou por fazer Nero acreditar que Agripina conspirava contra
ele. Nero, não ousando matá-la, tentou, uma vez, fazê-la morrer envenenada; da
segunda vez, fê-la cair no Tibre. Agripina, porém, a tudo estava preparada
(talvez tivesse conservado no palácio um servidor de confiança). Na primeira
vez, um remédio transformou o envenenamento em simples cólica. Na segunda tentativa,
escapou à morte, a nado e, para agarrá-la do outro lado do rio, os guardas de
Nero também tiveram de nadar. Podemos inquirir quais teriam sido os pensamentos
e as ideias dessa mulher, ao ver-se perseguida pelos sicários de um filho a
quem sacrificara toda a vida. Nada demonstrou, contudo, quando a alcançaram.
Disse, simplesmente: Golpeai aqui!'', designando o ventre em que Nero fora
concebido. Quando lhe levaram o corpo nu da mãe morta, Nero contentou-se em
notar: "Vejam só! Jamais eu percebera que tinha uma mãe tão bela!''
Talvez, mesmo, a única coisa que lamentou foi de não aceitá-la, quando ela se
lhe havia oferecido.
Como já nos
aconteceu, a respeito de Calígula, para explicar semelhantes reações a única
hipótese é a loucura.
A História
nos garante que Sêneca nada teve a ver com esse crime espantoso. Permite-nos
verificar, entretanto, que ele o aceitou, pois permaneceu ao lado do imperador.
Teria esperança de detê-lo na ladeira da perdição? Se chegou alguma vez a
alimentar tal esperança, deve ter-se desiludido muito depressa. Nero não
somente repeliu os conselhos de Sêneca — quando, este se esforçou para fazê-lo
compreender que não convinha a um imperador entregar-se a competições no Circo,
como cocheiro, e exibir-se no teatro, como tenor — mas também — para bem
demonstrar a pouca consideração que, daí por diante, votava ao mestre — ordenou
aos senadores que com ele próprio se medissem em disputas de ginástica e em
recitais de música, declarando tratar-se da tradição grega e que esta valia
mais do que a romana.
Os
senadores, em conjunto, talvez não merecessem mais do que isso; alguns dentre
eles, contudo, ainda conservavam nina centelha de dignidade. Traséias Peto e
Helvídio Prisco falaram abertamente contra o imperador. Os espiões deste os
acusaram de conspirar. Nero, que depois do matricídio demonstrara certa
clemência, deixou-se arrastar a uma orgia de Mitigue. Como o tesouro — que
Cláudio deixara florescente — houvesse definhado com seus desregramentos,
obrigou os condenados a legar-lhe as fortunas. Sêneca criticou tais medidas;
porém, a verdadeira razão de vir a perder o seu posto foi n do ha,ver criticado
as poesias de seu senhor. Foi, talvez, com uru suspiro de alívio que se retirou
em sua vila, na Campânia, onde se aplicou, ativamente, a buscar, como escritor,
compensação à falência como preceptor. Burro havia morrido alguns meses antes e
fora substituído por um celerado: Tigelino.
Nero, sem
mais qualquer freio que o retivesse, se precipitava, rapidamente. Quanto ao
físico, o retrato que dele nos deixaram nô-lo mostra, aos vinte e cinco anos,
com a cabeleira de cabelos louros enrolados em pequenas tranças, olhar
embaciado, ventre adiposo sobre pequenas pernas raquíticas. Popéia, então sua
mulher, dele fazia o que queria. Não satisfeita de havê-lo obrigado a
divorciar-se de Otávia, compeliu-o a exilá-la. Como os romanos reprovassem tal
medida e cobrissem a estátua de Otávia de flores, Popéia decidiu fazer com que
ele a mandasse assassinar. Otávia não teve uma morte bastante bela: tinha medo,
implorava perdão. Não tinha vinte anos e nascera para ser a boa esposa de um
marido e não a heroína de uma tragédia.
Ainda dessa
vez, Nero não sentiu qualquer remorso porque, nesse ínterim, fizera com que o
consagrassem deus e os deuses não são obrigados a fazer exame de consciência.
Na ocasião, só tinha uma ideia: mandar construir um novo palácio de ouro, que
se tornaria seu próprio templo. Ora, como o projetasse com dimensões
gigantescas, não encontrava, no centro superpovoado de Roma, nenhum terreno
para construir que lhe conviesse. Já fazia algum tempo ele resmungava que a
cidade fora mal construída, que seria preciso refazê-la inteiramente, conforme
plano de urbanismo mais racional, quando irrompeu o famoso incêndio do mês de
julho do ano 64 da Era Cristã.
Teria sido
ele, em verdade, o autor? Talvez não. Nesse momento, encontrava-se em Âncio.
Voltou, imediatamente, e gastou, nos socorros, energia de que ninguém o creria
capaz. Mas o fato de que a voz do povo o tenha acusado, imediatamente,
demonstra que, ainda que não fosse o autor do incêndio, todos o consideravam
capaz de tanto. É extremamente estranho que, dessa vez, não tenha reagido às
acusações e, nem ao menos, perseguido os autores de panfletos e libelos.
Contudo, como verdadeiro chefe de um regime totalitário, diante de um desastre
pensou que, antes mesmo de remediá-lo, era mister procurar alguém a quem
acusar.
Foi assim,
disse Tácito, que pensou numa seita religiosa que se formara, recentemente, em
Roma e tomava emprestado o nome de um certo Cristo, judeu condenado à morte por
Pôncio Pilatos, no reinado de Tibério.
Nero nada
mais sabia a respeito, quando mandou prender todos os que pôde e, depois de processo
sumário, fê-los condenar à tortura. Uns foram lançados às feras, os outros se
viram crucificados, ainda outros foram embebidos em resina e transformados em
tochas. Roma jamais lhes havia dado muita atenção. Após esse martírio em massa,
começou a observá-los com certa curiosidade. O imperador, afinal, podia
construir uma Roma a seu gosto. Nessa tarefa, que o absorveu inteiramente,
demonstrou certa competência. Enquanto, porém, uma nova Roma se erigia, mais
bela do que a precedente, Popéia morreu de um mau sucesso. As más línguas
declararam, imediatamente, que fora seu esposo quem, no decorrer de uma
disputa, lhe dera um pontapé no ventre. É possível. De qualquer modo, foi um
golpe terrível para ele, que perdia, simultaneamente, a mulher amada e o herdeiro
que esperava. Enquanto, acabrunhado pela dor, perambulava pelas ruas, descobriu
um jovem, um certo- Esporo, cujo rosto lembrava estranhamente o da morta.
Conduziu-o ao palácio, mandou castrá-lo e o desposou. Os romanos comentaram: ''Ah! se o pai de Nero tivesse feito o mesmo!''
Enquanto
dirigia os trabalhos de construção de seu grande palácio, seus espiões
descobriram uma conspiração, destinada a pôr no trono Calpúrnio Pisão. Houve as
detenções habituais, as torturas habituais, as confissões habituais. No
decorrer dessas confissões, foram pronunciados os nomes de diversos
intelectuais, dentre os quais Sêneca e Lucano.
Lucano era
outro espanhol de Córdoba, primo distante de Sêneca. Chegando a Roma para
estudar Direito, cometera o imperdoável erro de ganhar um prêmio de poesia, num
concurso em que Nero igualmente se apresentara e fora derrotado. O imperador
proibiu que continuasse a escrever. Lucano lhe desobedeceu: escreveu um poema
sobre a batalha de Farsália, de retórica medíocre, mas de entonação nitidamente
republicana. Sem poder publicá-lo, leu-o, entretanto, em salões aristocráticos,
onde teve grande sucesso junto a pessoas que não mais tinham forca para opor-se
à tirania, mas aspiravam à liberdade. Teria realmente participado na
conspiração em que foi inscrito, ex-oficio,
entre os conjurados, por policiais que sabiam da antipatia de Nero por seu
rival? No decurso dos interrogatórios, admitiu a culpabilidade e denunciou seus
cúmplices, entre os quais, parece, sua mãe e seu primo Sêneca. Condenado,
convidou os amigos para uma grande festa, comeu e brindou com eles, abriu as
próprias veias e morreu a recitar alguns de seus versos contra o despotismo.
Tinha vinte e seis anos.
Foi, talvez,
por intermédio dos mensageiros do imperador, que seguiram para a Campânia a
fim. de comunicar-lhe a condenação à morte que soube Sêneca haver participado
da conjuração de Pisão. Escrevia, então, uma carta a seu amigo Lucílio, que
assim terminava: "No que me concerne, vivi o suficiente; tenho a impressão
de que recebi minha parte. De momento, espero pela morte." Porém, quando a
morte se lhe apresentou, sob os traços daquele mensageiro, objetou que não
havia a menor razão para que a mesma lhe fosse imposta, visto que, havia muito
tempo, não mais lidava com política e se ocupava, apenas, de cuidar da saúde,
da qual esperava brusca queda. Era o pretexto que tivera êxito com Calígula,
permitindo-lhe viver até perto dos setenta anos. O embaixador retornou a Roma,
mas Nero foi inflexível. Então, com muita calma, Sêneca abraçou sua mulher,
Paulina, ditou uma carta de adeus aos romanos, bebeu cicuta, abriu as veias e
morreu, de maneira melhor do que aquela pela qual vivera, de acordo com os
preceitos estoicos. Paulina tentou imitá-lo, mas o imperador mandou suturar-lhe
as veias. Os séculos apagaram as contradições de Bonifica, na qualidade de
homem, para não guardar senão as obras do escritor, que têm certa grandeza.
Demonstrou como se compõe uni ensaio e como um homem pode conciliar o ensino da
renúncia com a prática de todas as comodidades. Semelhante montra não poderia
deixar de ter discípulos.
Tendo criado
o vácuo a seu redor, Nero partiu para fazer uma excursão à Grécia, onde, dizia
ele, entendiam mais de arte do que em Roma. Tomou parte, como jóquei, nas carreiras
de Olímpia; levou uma queda, chegou por último, mas nem por isso deixou de ser
aclamado como vencedor pelos gregos. Como recompensa, isentou-os do tributo que
deviam pagar a Roma. Os gregos compreenderam, proclamaram-no o primeiro em
todas as outras competições, organizaram-lhe formidável "claque" nos
teatros em que cantava (proibição absoluta de sair durante o espetáculo: houve
mulheres que deram à luz no local) e, em troca, receberam a totalidade dos
direitos do cidadão romano
Voltando a
Roma, Nero outorgou-se a si mesmo um triunfo. Não podendo exibir qualquer presa
tomada ao inimigo, exibiu as taças que ganhara, como cantor e como auriga.
Tinha a boa fé de pretender que seus compatriotas o admirassem; acreditava,
realmente, que era admirado. Também, mais se espantou do que se inquietou
quando soube que Júlio Vindex convocava a Gália às firmas contra ele. Seu
primeiro cuidado, ao organizar o exército, foi o de prever grande número de
carros expressamente construídos para o transporte dos "déeors", que
permitissem montar um teatro, porque tinha lá a intenção de, entre uma o outra
batalha, continuar a representar como ator, músico, cantor e de fazer-se
aplaudir pelos soldados. No curso, porém, dos preparativos, chegou a notícia de
que Galba, governador da Espanha, se reunira a Vindex e, com ele, marchava
contra Roma.
O Senado, à
espreita de uma ocasião, havia muito tempo, começou por obter a neutralidade
benevolente dos pretorianos e proclamou imperador o procônsul rebelde. Nero,
então, bruscamente, percebeu que estava só. Um oficial da guarda, a quem pediu
que o acompanhasse na fuga, lhe respondeu com este verso de Virgílio: '' Será
tão difícil morrer?" Para ele, era. Procurou conseguir um pouco de veneno,
mas não teve coragem de engoli-lo. Teve a ideia de lançar-se ao Tibre, mas para
isso não teve forca. Foi esconder-se na vila de um amigo, na via Salária, a dez
quilômetros da cidade. Lá, soube que havia sido condenado a morrer "à
maneira antiga", isto é, por fustigação. Aterrorizado, apoderou-se de um
punhal, mas começou por experimentar a ponta e achou que "aquilo
machucava". Não se decidiu a golpear a garganta senão quando ouviu cascos
de cavalos por trás da porte. Sua mão tremeu; foi mister que seu secretário, Epafrodite,
a dirigisse para a carótida. "Ah! que artista morre comigo!" (Há
outra versão mais conhecida dessa frase: "Ah! que artista o mundo vai
perder!" N. do trad.), gemeu em estertor. Os guardas de Galba lhe
respeitaram o cadáver, que foi piedosamente inumado por sua velha ama-de-leite
e por sua primeira amante, Actéia. O mais estranho é que, por muito tempo, seu
túmulo sempre se cobriu de flores frescas e numerosas pessoas, em Roma,
continuaram a acreditar que não estava morto, mas iria voltar. Tais ideias, em
geral, apenas brotam em terreno fertilizado pelas saudades e pela esperança.
Talvez, mesmo,
Nero, em conjunto, tenha sido menos mau do que a História nô-lo descreveu.
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Fonte:
História de Roma, por: Indro Montanelli. Tradução: Luiz de Moura Barbosa. IBRASA. São Paulo, 1961, págs. 274-280.
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