Novos Mundos
Por: OSCAR LOPES
DESDE há
cinco anos que, no Júri do Prêmio Internacional de Literatura, e em todas as
fases do processo seletivo à que obtive acesso, me venho batendo pela sua
atribuição ao romance Grande Sertão:
Veredas, cujo prazo de candidatura, a manterem-se os regulamentos em vigor,
terminará neste ano de 1966. Foram já publicadas as razões com que milito a
favor dessa candidatura; mas é natural que aos leitores desta seção interesse
um juízo e interpretação de tal romance tendo em conta o conjunto da obra
publicada do seu autor. Eis ao que agora me abalanço de um modo necessariamente
sucinto, dentro do seguinte esquema artificial mas acessível: a riqueza inédita
da experiência humana mobilizada por essa obra; a robusta e original meditação
inerente às suas mais gerais estruturas; e os dons poéticos da sua linguagem.
A ação da
obra de Guimarães Rosa decorre nos Gerais do Sertão brasileiro, espécie de
terra de ninguém marginal à civilização moderna. Ê todo um mundo geográfico e
humano que nós desconhecemos, onde se tornam naturalmente possíveis certas
experiências extremas. Por exemplo, regressões a formas feudais, se não mesmo
gentílicas, de sociedade, e portanto aventuras à maneira das sagas nórdicas,
das canções de gesta e das epopeias antigas. Pelo meio, quadros de uma miséria
paleolítica; pequenos agregados sucumbindo à malária ou a doenças endêmicas;
leprosos isolados; místicos de uma nova Tebaida, cuja tipologia os entrosa
aliás com casos extremos de psicopatia individual ou coletiva, desdobrando as
mais diversas fases do sentimento religioso e (proteladas em negativo ou
positivo nessa tipologia) as deformações que as mais diversas formas de
interdependência social determinam nos homens. No romance até mesmo a
antropofagia inconsciente acontece.
É escusado
encarecer a exuberância do simples pitoresco paisagístico, vegetal, animal ou
etnográfico: o leitor encontra-o particularmente condensado em dois contos: num
deles, "S. Marcos", de Sagarana, o epos visual da paisagem contrasta com um túnel de cegueira
transitória; o outro, "Cara-de-Bronze", de Corpo de Baile e um misto de giuão para filme e de borrão
romanesco. O simples álbum da pecuária brasílica, com o seu pandemônio de
bovinos e equinos de todos os continentes e castas, com os seus integrais e
diferenciais de comportamento, cor, ritmo de galhos em marcha ou corrida
valeria já um museu animalista. Que dizer então de grandes conjuntos épicos
como a anábase de um bando de jagunços atravessando um deserto teoricamente
intransitável para colher de surpresa outro bando; a matança bruta, à metralha,
de cavalos que "não entendiam a dor também (cenas ambas do Grande Sertão); ou como o contraponto,
em "Buriti (Corpo de Baile), entre uma potente tensão sensual dentro de portas
de uma fazenda e, lá fora, a sinfonia de ruídos e vozes do Sertão noturno?
O que
importa mais é o seguinte: a percepção sensorial exala de formas, cores,
odores, reações instintivas, acontecimentos naturais e humanos tem sempre um
sentido inesgotável. Sentimo-nos num grupo de cavaleiros em silêncio, na
escuridão, e isso acorda-nos não sabemos que memórias vivas. Há descrições
geométricas ou fisiologicamente perfeitas e cujo rigor todavia nos faz sorrir,
com a ironia de um inefável plus ultra
Tudo é percorrido de um humor que desconhecíamos. E um humor assim tão
conseguido e surpreendente lembra como que um ângulo ou tonalidade de luz
revelando novos mundos no mundo. Mentimos o nosso próprio tempero pessoal nas
suas limitações de experiência- sentimos que muito nos falta compreender.
Nalguns contos de Sagarana vê-se bem
a importância de ter vivido nos Gerais e de, cumulativamente te' percorrido
vários outros povos, culturas, línguas, civilizações com olhos de ver. Mas no Grande Sertão: Veredas, cuja ação se
supõe contada por um simples geralista, ex-jagunço, a riqueza humoral do
escritor requinta-se: o dialeto regional (evidentemente apurado), umas
besuntadelas de estilo mestre-escola, de estilo clerical e de estilo político-tribunício
bastam para irisar a narrativa inteira de inesperados contrastes, onde o sério,
o jocoso e o patético nos surgem sob os pés, obrigando-nos a um pisar atento,
não fiquemos desconcertados.
Esta
versatilidade viva de humor corresponde a uma experiência profundamente
receptiva mas também oliva. Para por enquanto não sair do terreno psíquico,
lembremos que Guimarães Rosa pode pedir meças à melhor literatura psicologística
em matéria de sondagem a emoções ou paixões tão significativas como o medo e o
amor. No Grande Sertão diferencia-se
a "qualidade sempre nova do medo", discutem-se em flagrante as suas
pretensas causas, evidenciando a desproporção entre os seus estímulos e
reações, como se aqueles se limitassem a produzir a coalescência súbita de
muitas emoções dormentes sabe-se lá desde quando. E, por exemplo, num conto, há
uma criança com o pavor da morte por doença e que, rezando, "conseguia era
outro medo, diferente". Quanto ao amor, além da profunda meditação contida
no Grande Sertão, há duas novelas em Corpo de Baile que o desfibram com
extraordinária perspicácia: "Estória
de Lélio e Lina" e "Dão-Lalalão".
Na primeira novela citada seguimos a experiência de um vaqueiro jovem que se
apaixona logo de início por moça muito acima da sua condição, num amor que é
"um confim, uma saudade sem razão (...) o resumo de uma lembrança sem
paragens". Lá para o remate, quando perde definitivamente qualquer rasto
dela, é que se enche a seu respeito de uma imensa alegria. Assim perdida,
sente-a infinitamente perto. Mas esse vaqueiro tem o amor físico de duas
raparigas, cedido (a ele, como de resto a outros) com uma naturalidade e um
desinteresse tocantes. Sofre também de um amor adulterino, irresistível e acompanhado
de violento conflito moral. Passa por dois amores ligados a projetos de
casamento. E acaba por fugir com uma dona idosa que, incompreendidamente, adora
como mãe e que o ama como o Amado já extemporâneo e impossível. Em todos os
casos, "sempre que ia por novidade de mulher, ele esperava qualquer
maravilha, de quase milagre". Todos os amores se ligam a uma comum tensão,
afinal. Quem leia atentamente o Grande Sertão verá esta mesma tensão abranger
as fixações que antes de Freud se considerariam inomináveis, e isso com uma
subtileza e destreza de toque para as quais só me ocorrem semelhanças em Thomas
Mann. As citações liminares de uma vasta literatura mística e as próprias
reflexões das personagens sugerem toda uma filosofia religiosa do amor. Recordemos
apenas este pensamento: "homem se recomeça com mulher, força de fogo
tornando a reunir seus pedaços, o em-deus". É o amor concebido como um
entusiasmo, etimologicamente, um enthousiasmós,
um estar em deus. Mas o que no concreto da estrutura literária avulta é (como
veremos melhor adiante) o diálogo entre os objetos imediatos de desejo e um
constante e fugidio mais além que lhes é sempre inerente, sobretudo quando o
nosso objeto de desejo é, ele próprio, um sujeito humano, não menos inquieto e
movediço, de desejo, um tu, irredutível a coisa.
E isto
conduz-nos ao perturbante fervor de "Dão-Lalalão".
Trata-se da novela de um marido ciumento, que se confina com a sua mulher,
anteriormente venal, num recanto longe de todos os centros populacionais ou
caminhos importantes, não vá ela ser reconhecida. A novela ganha quase toda ela
corpo como um devaneio: devaneio de regresso a casa e antecipação ardorosa, e
também devaneio ciumento de exclusividade traída. "Só posso é gostar de
Você, nas miudezas da vida toda", confessa o protagonista zeloso. Mas as
miudezas da vida toda incluem a impregnação do seu desejo pelo de todas as
situações triangulares imagináveis. Eis a presença da participação social na
intimidade mais aparentemente exclusiva, a inevitabilidade do mediador entre
nós e aquilo que julgamos apetecer do modo mais imediato. A mística do ^ amor
complica-se, pois, em Guimarães Rosa, de uma riquíssima dialética de vivências
individuais e de convivências. Nisto, e em tudo o que isto implica, podem muito
bons incréus coincidir com a palpitante religiosidade de Guimarães Rosa.
A esta
riqueza inseparavelmente externa e interna, receptiva e ativa de vida
literariamente organizada corresponde uma técnica narrativa característica: a
ação aparentemente principal do romance, das novelas e até dos contos de
Guimarães Rosa está tão ligada a várias outras, que o leitor se vê compelido a
um ato de jerarquizaçao permanente. Daí a impressão viva de muito a dizer, de
um tempo maciçamente concreto e de relações inextrincáveis entre todos os
destinos. Assim, logo no primeiro conto de Sagarana,
vem a ser "O Burrinho Pedrês",
a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e
inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim,
orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos se afogam, carregando um
bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo; mas,
paralelamente, vemos mil e oitocentos bovinos de todas as raças e têmperas em
marcha da fazenda parti o comboio; sabemos pouco a pouco das intenções
homicidas de um vaqueiro, que os maiorais vão controlando; e, de longada, os
sertanejos contam-se a todo o propósito histórias que são outras tantas
variantes possíveis para vários episódios do acontecer real em processo. E tudo
isto ajuda a conhecer o burro, porque ele é inseparável do seu mundo e tudo
isto se sente como solidário e essencial.
Transitemos,
que já é tempo, a estruturas e intenções fundamentais. Com efeito, em todas as
narrativas de Guimarães Rosa se sente uma profunda e original meditação, tanto
mais impressionante quanto maior a simplicidade de dados a que recorre. Daí a
importância do uso do dialeto dos Gerais. O narrador é quase sempre,
virtualmente, um sertanejo dentro de cuja experiência e linguagem metaforizada
o autor faz caber uma ponderação de alcance universal sobre realidades e
destinos concretos. Pode tratar-se de um jagunço como Riobaldo Taturana, protagonista-tiarrador
do Grande Sertão: Veredas, de um
adolescente como Lélio, e até de uma criança como Miguilim.
Se nos
ativermos aos termos da própria reflexão dos narradores, essa filosofia é
incontestavelmente religiosa, o que condiz com numerosas citações preliminares
da Bíblia, dos Upanishads e
doutrinários budistas, de Platão, Platino, Dante e do venerável Ruysbroek,
mestre da mística flamenga trecentista e quatrocentista. Seria fácil mostrar
que as preocupações dominantes do romance, como a teoria platônica da
reminiscência pré-natal, percorrem também os contos, novelas e estórias.
Nomearei apenas a este respeito as reflexões de Lina, dentro da novela já
referida, e duas extraordinárias e perturbantíssimas das Primeiras Estórias, que são "Nenhum, Nenhuma" e "O
Espelho". Muito significativo de um ponto de vista teológico é a
ânsia, definida em dada novela ("Cara-de-Bronze"),
de achar "o quem das coisas", coisa evidentemente diversa de lhes
procurar o quê. Mas a chave principal está, de fato, no romance.
Aí o
ex-jagunço Riobaldo Taturana conta a sua vida aventurosa em vários bandos de
cangaceiros, todos mais ou menos ambiguamente bons e maus, mas de qualquer
modo, constituirão, ao tempo, a autoridade única dos Gerais. Um deles,
Hermógenes, parece particularmente perverso, e o protagonista pratica os
supersticiosos ritos de um pacto com o Diabo, a fim de o liquidar, como
realmente acontece num clímax final. Eis a obsessão central: a do pacto
demoníaco. O narrador empenha-se durante todo o romance em negar a validez de
um tal compromisso, e o compadre Quelemém, teólogo sertanejo, socorre-o com uma
doutrina que nega a personificação do mal, o Diabo, "O que não
existe", "O que não ê mas finge ser". O Diabo, pondera Quelemém,
"vige no homem", é a sua fidelidade absoluta e desmerecida a qualquer
pessoa, bando ou ideal; é, afinal, qualquer representação do divino no humano'
para além dos limites da sua validade dialética, num mundo como este, em que
males e bens reciprocamente se originam e condicionam. ,O drama humano consiste
em que, todavia, tem de a cada passo optar, tomar partido. "Todos estão
loucos, neste mundo? Porque a cabeça, da gente é uma só, e as coisas que há e
que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente
tem de necessitar de'-: aumentar cabeça, para o total". "Digo ao
senhor: tudo é pacto. Todo o caminho é resvaloso. Mas, também, cair não
prejudica demais — a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!" Todos
somos padarias, todos somos Faustos; mas "as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas (...), afinam ou desafinam". E o narrador
acaba por admirar em Hermógenes "a inocência daquela maldade", pois
"aquele homem não estava definitivo".
A construção
do romance em flash-back serve, como
a toda a melhor épica desde a Odisseia, para melhor ordenação rítmica do
recanto, num jogo de compensações; serve ainda para enlace dos temas
secundários (como as recorrências da "canção de Seruiz", com o tema
da saudade da terra natal; ou como o desdobramento da experiência erótica até à
fixação final, através, nomeadamente, dos complexos que a figura de Diadorim
representa); mas serve sobretudo para pôr forma aguda e concreta a dialética do
bem-e-mal, ou seja, do pacto. Riobaldo adere a sucessivos chefes de jagunços, e
acaba mesmo por ser um desses chefes, porque descobre que os cangaceiros têm a
sua ética. A ética, afinal, que a organização gentílica e, depois, feudal
idealizou com Aquiles, Ulisses, Rolando
ou o Cid. Ética dotada de
instituições, de uma ideologia e até de uma retórica — pois assistimos a coisas
como um julgamento em forma entre cangaceiros; a luta entre bandos emaranha-se
com lutas políticas estaduais ou federais, o que a alguns dá o sentimento de
levantamento revolucionário ou de exército regular oficializado; e há discursos
patrióticos, legalistas, com todos os Ingredientes demagógicos da retórica
política brasileira at its worst. O
status final do narrador, feito proprietário pacato, sugere que a luta entre
bandos se resolvera, pelo menos em grande parte, com o extermínio dos
Hermógenes. Mas foi o pacto que o permitiu, quer dizer: a dialética do bem e do
mal, como fins ou como meios. Recordemos a propósito a Orestia de Esquilo, em
que a moral gentílica da vingança, ou vendetta,
entre clãs, ou dentro dos clãs, se resolve absorvendo o último vingador, Orestes,
e instituindo o tribunal da Cidade, passando as Fúrias (deusas da vingança
antiga, retaliação meramente familiar) ao serviço de uma nova forma de
vingança, ou repressão, superior, institucionalizada pelo Estado. Simplesmente,
Guimarães Rosa, edificado por mais dois milênios e meio de experiência
histórica e pela evidência imediata do seu mundo, reabre o problema que Esquilo
julgara estar resolvido. Nenhumas ilusões maniqueístas sobre o dualismo
absoluto do bem e do mal. O homem contínua pactário. Ninguém chegou ainda à
destrinça inequívoca, e, como insinua a bela "estaria" "O Espelho", todos deveriam
estremecer à simples pergunta de "Você chegou a existir?" Hermógenes
não estava definitivo. Mas ainda ele não fora morto, e já nos Gerais havia um
homem como Habão que não sabe olhar para outro homem sem o ver na qualidade de
força trabalhadora anônima, reprodutora de investimento, tal como a Medusa, que
convertia, a um simples olhar, qualquer mortal em rochedo. O Taturana fez-se,
ele próprio, Habão, sem dar por isso. Todos continuamos Faustos, ou Orestes, e
mais inacabados são ainda os que o não sabem.
Terminemos
com algumas considerações sobre a prosa deste ficcionista. A sua leitura é
difícil para estrangeiros, para portugueses e até mesmo, ao que parece, para
brasileiros, embora o leitor informado possa vencer as principais dificuldades
iniciando-se por alguns contos reunidos em Sagarana
ou algumas das Primeiras Estórias,
abalançando-se depois às novelas de Corpo
de Baile, antes de tentar acesso à bela e densa epopeia que é Grande Sertão: Veredas. O que interessa
é sobretudo isto: o esforço vale a pena. Raras vezes um esforço de leitura terá
uma melhor compensação. De resto, a maior parte das dificuldades vem de duas
origens: o internamento num mundo para nós quase inédito de fauna, flora, utensilagem,
instituições; e a nossa própria deformação escolar por uma gramática e uma
retórica que ignoram muitas das possibilidades expressivas mais importantes da
linguagem oral. Claro que Guimarães Rosa não se limita a reproduzir com
filológica fidelidade o linguajar dos geralistas, tal como Aquilino não faz o
simples traslado de um dialeto beirão nos seus recantos de implantação
regional. A boa arte literária obtém mas ê a consumação de formas mais ou menos
latentes. E não se requereria grande engenho nem saber linguístico para mostrar
que as mais características "inovações" deste prosador caminham,
organicamente, no sentido da evolução mais espontaneamente criadora da língua
portuguesa, sobretudo na sua variante idiomática brasileira. Simples características
de virgulação como "gostava dela, muito", de ordem frásica como
"aquilo eu não fazia", de diminutivo verbal ou pronominal como
"arranjeizinho um bom emprego" ou "amor-meuzinho", a
plasticidade prefixai, sufixai ou aglutinante que, em dados contextos, tornam
perfeitamente natural uma "circuntristeza", um "madrugadamente"
ou uma "gritamulla" são criações integráveis no espírito do idioma e
que o vivificam. Quem tenha alguma cultura clássica, verificará que a grande
maioria das construções sintáticas muito elípticas de Guimarães Rosa, ou os
seus gerúndios ou particípios equivalentes a orações e até precedidos de
conjunção constituem uma tradição milenar e oralmente viva. E uma das maiores
qualidades desse estilo tão poético reside, a meu ver, na precisão que consiste
em dar por forma imprecisa um pensamento que, como dado imediato, é impreciso,
em vez de o mascarar de pseudoprecisão. Refiro-me a admiráveis anacolutos como
"as abelhinhas espanam as asas, íarefazinha" ou "no bebedouro pombas
bando", e ao uso impressionisticamente estenográfico de certos adjetivos
em -vel ou -im: "Noite, o azulável, na parte serena do céu", "um
regato fluifim que as pedras olham".
Guimarães
Rosa é talvez o autor vivo de língua portuguesa que melhor nos persuade de como
a linguagem é, em última análise, criação contínua, veredas singrando num
horizonte imprevisto; de como a linguagem ê tradutível, portanto convencional,
nas suas estruturas ossificadas, mas produtora do real humano na sua mais viva
linha de avanço. Quando se fala de "uma formiga preta a pernejar no
mármore preto", o verbo "pernejar", ainda por cima valorizado na
frase por efeitos de aliteração e paronímia, foca a imagem de pernas esguias e
negras em movimentos articulados, sobre outra imagem secundária respeitante aos
corpos dos insetos, que por seu turno se apagam no negrume polido do mármore:
não se reproduz uma realidade, faz-se, sim, uma análise e síntese do real
jerarquizado de uma dada maneira, sob a incidência de um humor humano muito
especial que nos leva a sorrir.
Ora, além
destas criações num plano de herança linguística que se poderia estender a um mare magnum de provérbios, anexins,
quadras e outras composições virtualmente populares; além de uma dose habilíssima
de non-sense vitalizador das significações
profundas cujo melhor espécime se encontrará no linguajar infantil de "Partida do Audaz Navegante" (Primeiras Estórias), Guimarães
oferta-nos sucessivas maravilhas no recurso ao mais elementar e importante de
todos os meios poéticos: a metáfora. As metáforas de Guimarães Rosa são tantas
e tão originais que produzem um efeito poético radical: o efeito de ressaca do
significado novo sobre o significado corrente. A gente lê, por exemplo, que
"o sabiá veio molhar o pio no poço, que é bom ressoador", e não fica
apenas com uma admirável evocação acústica; as palavras "molhar" e
"poço" descongelam-se, libertam-se da sua hibernação dicionarístíca
ou corrente, e perturbam como um reachado todavia surpreendente. O mundo parece
mitificar-se, mas o que de fato aconteceu é que as nossas relações com as
coisas se reanimaram: certas intenções humanas descobrem novas coisas, ou (o
que é mais evidente pelos imagens dos Gerais sertanejos) certas coisas ou suas
feições desconhecidas despertam em nós intenções ignoradas, sobre as quais nos
ficamos interrogando. E redescobrimos até que a vocação humana mais profunda é
a de realizar milagres, é a de aspirar ao que nem mesmo nos atrevemos a
dizer-nos. Isso faziam dantes os mitos. E quando um escritor volta hoje a
fazê-Io, é porque atingiu a altitude da epopeia.
O.L.
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Fonte:
Sagarana, por: João Guimarães Rosa. José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1976, págs. 13-19.
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