domingo, 17 de julho de 2016

Sagarana: Novos Mundos

Novos Mundos
Por: OSCAR LOPES
DESDE há cinco anos que, no Júri do Prêmio Internacional de Literatura, e em todas as fases do processo seletivo à que obtive acesso, me venho batendo pela sua atribuição ao romance Grande Sertão: Veredas, cujo prazo de candidatura, a manterem-se os regulamentos em vigor, terminará neste ano de 1966. Foram já publicadas as razões com que milito a favor dessa candidatura; mas é natural que aos leitores desta seção interesse um juízo e interpretação de tal romance tendo em conta o conjunto da obra publicada do seu autor. Eis ao que agora me abalanço de um modo necessariamente sucinto, dentro do seguinte esquema artificial mas acessível: a riqueza inédita da experiência humana mobilizada por essa obra; a robusta e original meditação inerente às suas mais gerais estruturas; e os dons poéticos da sua linguagem.
A ação da obra de Guimarães Rosa decorre nos Gerais do Sertão brasileiro, espécie de terra de ninguém marginal à civilização moderna. Ê todo um mundo geográfico e humano que nós desconhecemos, onde se tornam naturalmente possíveis certas experiências extremas. Por exemplo, regressões a formas feudais, se não mesmo gentílicas, de sociedade, e portanto aventuras à maneira das sagas nórdicas, das canções de gesta e das epopeias antigas. Pelo meio, quadros de uma miséria paleolítica; pequenos agregados sucumbindo à malária ou a doenças endêmicas; leprosos isolados; místicos de uma nova Tebaida, cuja tipologia os entrosa aliás com casos extremos de psicopatia individual ou coletiva, desdobrando as mais diversas fases do sentimento religioso e (proteladas em negativo ou positivo nessa tipologia) as deformações que as mais diversas formas de interdependência social determinam nos homens. No romance até mesmo a antropofagia inconsciente acontece.
É escusado encarecer a exuberância do simples pitoresco paisagístico, vegetal, animal ou etnográfico: o leitor encontra-o particularmente condensado em dois contos: num deles, "S. Marcos", de Sagarana, o epos visual da paisagem contrasta com um túnel de cegueira transitória; o outro, "Cara-de-Bronze", de Corpo de Baile e um misto de giuão para filme e de borrão romanesco. O simples álbum da pecuária brasílica, com o seu pandemônio de bovinos e equinos de todos os continentes e castas, com os seus integrais e diferenciais de comportamento, cor, ritmo de galhos em marcha ou corrida valeria já um museu animalista. Que dizer então de grandes conjuntos épicos como a anábase de um bando de jagunços atravessando um deserto teoricamente intransitável para colher de surpresa outro bando; a matança bruta, à metralha, de cavalos que "não entendiam a dor também (cenas ambas do Grande Sertão); ou como o contraponto, em "Buriti (Corpo de Baile), entre uma potente tensão sensual dentro de portas de uma fazenda e, lá fora, a sinfonia de ruídos e vozes do Sertão noturno?
O que importa mais é o seguinte: a percepção sensorial exala de formas, cores, odores, reações instintivas, acontecimentos naturais e humanos tem sempre um sentido inesgotável. Sentimo-nos num grupo de cavaleiros em silêncio, na escuridão, e isso acorda-nos não sabemos que memórias vivas. Há descrições geométricas ou fisiologicamente perfeitas e cujo rigor todavia nos faz sorrir, com a ironia de um inefável plus ultra Tudo é percorrido de um humor que desconhecíamos. E um humor assim tão conseguido e surpreendente lembra como que um ângulo ou tonalidade de luz revelando novos mundos no mundo. Mentimos o nosso próprio tempero pessoal nas suas limitações de experiência- sentimos que muito nos falta compreender. Nalguns contos de Sagarana vê-se bem a importância de ter vivido nos Gerais e de, cumulativamente te' percorrido vários outros povos, culturas, línguas, civilizações com olhos de ver. Mas no Grande Sertão: Veredas, cuja ação se supõe contada por um simples geralista, ex-jagunço, a riqueza humoral do escritor requinta-se: o dialeto regional (evidentemente apurado), umas besuntadelas de estilo mestre-escola, de estilo clerical e de estilo político-tribunício bastam para irisar a narrativa inteira de inesperados contrastes, onde o sério, o jocoso e o patético nos surgem sob os pés, obrigando-nos a um pisar atento, não fiquemos desconcertados.
Esta versatilidade viva de humor corresponde a uma experiência profundamente receptiva mas também oliva. Para por enquanto não sair do terreno psíquico, lembremos que Guimarães Rosa pode pedir meças à melhor literatura psicologística em matéria de sondagem a emoções ou paixões tão significativas como o medo e o amor. No Grande Sertão diferencia-se a "qualidade sempre nova do medo", discutem-se em flagrante as suas pretensas causas, evidenciando a desproporção entre os seus estímulos e reações, como se aqueles se limitassem a produzir a coalescência súbita de muitas emoções dormentes sabe-se lá desde quando. E, por exemplo, num conto, há uma criança com o pavor da morte por doença e que, rezando, "conseguia era outro medo, diferente". Quanto ao amor, além da profunda meditação contida no Grande Sertão, há duas novelas em Corpo de Baile que o desfibram com extraordinária perspicácia: "Estória de Lélio e Lina" e "Dão-Lalalão". Na primeira novela citada seguimos a experiência de um vaqueiro jovem que se apaixona logo de início por moça muito acima da sua condição, num amor que é "um confim, uma saudade sem razão (...) o resumo de uma lembrança sem paragens". Lá para o remate, quando perde definitivamente qualquer rasto dela, é que se enche a seu respeito de uma imensa alegria. Assim perdida, sente-a infinitamente perto. Mas esse vaqueiro tem o amor físico de duas raparigas, cedido (a ele, como de resto a outros) com uma naturalidade e um desinteresse tocantes. Sofre também de um amor adulterino, irresistível e acompanhado de violento conflito moral. Passa por dois amores ligados a projetos de casamento. E acaba por fugir com uma dona idosa que, incompreendidamente, adora como mãe e que o ama como o Amado já extemporâneo e impossível. Em todos os casos, "sempre que ia por novidade de mulher, ele esperava qualquer maravilha, de quase milagre". Todos os amores se ligam a uma comum tensão, afinal. Quem leia atentamente o Grande Sertão verá esta mesma tensão abranger as fixações que antes de Freud se considerariam inomináveis, e isso com uma subtileza e destreza de toque para as quais só me ocorrem semelhanças em Thomas Mann. As citações liminares de uma vasta literatura mística e as próprias reflexões das personagens sugerem toda uma filosofia religiosa do amor. Recordemos apenas este pensamento: "homem se recomeça com mulher, força de fogo tornando a reunir seus pedaços, o em-deus". É o amor concebido como um entusiasmo, etimologicamente, um enthousiasmós, um estar em deus. Mas o que no concreto da estrutura literária avulta é (como veremos melhor adiante) o diálogo entre os objetos imediatos de desejo e um constante e fugidio mais além que lhes é sempre inerente, sobretudo quando o nosso objeto de desejo é, ele próprio, um sujeito humano, não menos inquieto e movediço, de desejo, um tu, irredutível a coisa.
E isto conduz-nos ao perturbante fervor de "Dão-Lalalão". Trata-se da novela de um marido ciumento, que se confina com a sua mulher, anteriormente venal, num recanto longe de todos os centros populacionais ou caminhos importantes, não vá ela ser reconhecida. A novela ganha quase toda ela corpo como um devaneio: devaneio de regresso a casa e antecipação ardorosa, e também devaneio ciumento de exclusividade traída. "Só posso é gostar de Você, nas miudezas da vida toda", confessa o protagonista zeloso. Mas as miudezas da vida toda incluem a impregnação do seu desejo pelo de todas as situações triangulares imagináveis. Eis a presença da participação social na intimidade mais aparentemente exclusiva, a inevitabilidade do mediador entre nós e aquilo que julgamos apetecer do modo mais imediato. A mística do ^ amor complica-se, pois, em Guimarães Rosa, de uma riquíssima dialética de vivências individuais e de convivências. Nisto, e em tudo o que isto implica, podem muito bons incréus coincidir com a palpitante religiosidade de Guimarães Rosa.
A esta riqueza inseparavelmente externa e interna, receptiva e ativa de vida literariamente organizada corresponde uma técnica narrativa característica: a ação aparentemente principal do romance, das novelas e até dos contos de Guimarães Rosa está tão ligada a várias outras, que o leitor se vê compelido a um ato de jerarquizaçao permanente. Daí a impressão viva de muito a dizer, de um tempo maciçamente concreto e de relações inextrincáveis entre todos os destinos. Assim, logo no primeiro conto de Sagarana, vem a ser "O Burrinho Pedrês", a gente segue a esperteza mansa do bicho, a sua finura de instinto e inteligência que o faz poupar-se, furtar-se a choques e maus pisos e, por fim, orientar-se e salvar-se numa cheia onde os cavalos se afogam, carregando um bêbado às costas e ainda outro náufrago enclavinhado no rabo; mas, paralelamente, vemos mil e oitocentos bovinos de todas as raças e têmperas em marcha da fazenda parti o comboio; sabemos pouco a pouco das intenções homicidas de um vaqueiro, que os maiorais vão controlando; e, de longada, os sertanejos contam-se a todo o propósito histórias que são outras tantas variantes possíveis para vários episódios do acontecer real em processo. E tudo isto ajuda a conhecer o burro, porque ele é inseparável do seu mundo e tudo isto se sente como solidário e essencial.
Transitemos, que já é tempo, a estruturas e intenções fundamentais. Com efeito, em todas as narrativas de Guimarães Rosa se sente uma profunda e original meditação, tanto mais impressionante quanto maior a simplicidade de dados a que recorre. Daí a importância do uso do dialeto dos Gerais. O narrador é quase sempre, virtualmente, um sertanejo dentro de cuja experiência e linguagem metaforizada o autor faz caber uma ponderação de alcance universal sobre realidades e destinos concretos. Pode tratar-se de um jagunço como Riobaldo Taturana, protagonista-tiarrador do Grande Sertão: Veredas, de um adolescente como Lélio, e até de uma criança como Miguilim.
Se nos ativermos aos termos da própria reflexão dos narradores, essa filosofia é incontestavelmente religiosa, o que condiz com numerosas citações preliminares da Bíblia, dos Upanishads e doutrinários budistas, de Platão, Platino, Dante e do venerável Ruysbroek, mestre da mística flamenga trecentista e quatrocentista. Seria fácil mostrar que as preocupações dominantes do romance, como a teoria platônica da reminiscência pré-natal, percorrem também os contos, novelas e estórias. Nomearei apenas a este respeito as reflexões de Lina, dentro da novela já referida, e duas extraordinárias e perturbantíssimas das Primeiras Estórias, que são "Nenhum, Nenhuma" e "O Espelho". Muito significativo de um ponto de vista teológico é a ânsia, definida em dada novela ("Cara-de-Bronze"), de achar "o quem das coisas", coisa evidentemente diversa de lhes procurar o quê. Mas a chave principal está, de fato, no romance.
Aí o ex-jagunço Riobaldo Taturana conta a sua vida aventurosa em vários bandos de cangaceiros, todos mais ou menos ambiguamente bons e maus, mas de qualquer modo, constituirão, ao tempo, a autoridade única dos Gerais. Um deles, Hermógenes, parece particularmente perverso, e o protagonista pratica os supersticiosos ritos de um pacto com o Diabo, a fim de o liquidar, como realmente acontece num clímax final. Eis a obsessão central: a do pacto demoníaco. O narrador empenha-se durante todo o romance em negar a validez de um tal compromisso, e o compadre Quelemém, teólogo sertanejo, socorre-o com uma doutrina que nega a personificação do mal, o Diabo, "O que não existe", "O que não ê mas finge ser". O Diabo, pondera Quelemém, "vige no homem", é a sua fidelidade absoluta e desmerecida a qualquer pessoa, bando ou ideal; é, afinal, qualquer representação do divino no humano' para além dos limites da sua validade dialética, num mundo como este, em que males e bens reciprocamente se originam e condicionam. ,O drama humano consiste em que, todavia, tem de a cada passo optar, tomar partido. "Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça, da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de'-: aumentar cabeça, para o total". "Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo o caminho é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais — a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!" Todos somos padarias, todos somos Faustos; mas "as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas (...), afinam ou desafinam". E o narrador acaba por admirar em Hermógenes "a inocência daquela maldade", pois "aquele homem não estava definitivo".
A construção do romance em flash-back serve, como a toda a melhor épica desde a Odisseia, para melhor ordenação rítmica do recanto, num jogo de compensações; serve ainda para enlace dos temas secundários (como as recorrências da "canção de Seruiz", com o tema da saudade da terra natal; ou como o desdobramento da experiência erótica até à fixação final, através, nomeadamente, dos complexos que a figura de Diadorim representa); mas serve sobretudo para pôr forma aguda e concreta a dialética do bem-e-mal, ou seja, do pacto. Riobaldo adere a sucessivos chefes de jagunços, e acaba mesmo por ser um desses chefes, porque descobre que os cangaceiros têm a sua ética. A ética, afinal, que a organização gentílica e, depois, feudal idealizou com Aquiles, Ulisses, Rolando ou o Cid. Ética dotada de instituições, de uma ideologia e até de uma retórica — pois assistimos a coisas como um julgamento em forma entre cangaceiros; a luta entre bandos emaranha-se com lutas políticas estaduais ou federais, o que a alguns dá o sentimento de levantamento revolucionário ou de exército regular oficializado; e há discursos patrióticos, legalistas, com todos os Ingredientes demagógicos da retórica política brasileira at its worst. O status final do narrador, feito proprietário pacato, sugere que a luta entre bandos se resolvera, pelo menos em grande parte, com o extermínio dos Hermógenes. Mas foi o pacto que o permitiu, quer dizer: a dialética do bem e do mal, como fins ou como meios. Recordemos a propósito a Orestia de Esquilo, em que a moral gentílica da vingança, ou vendetta, entre clãs, ou dentro dos clãs, se resolve absorvendo o último vingador, Orestes, e instituindo o tribunal da Cidade, passando as Fúrias (deusas da vingança antiga, retaliação meramente familiar) ao serviço de uma nova forma de vingança, ou repressão, superior, institucionalizada pelo Estado. Simplesmente, Guimarães Rosa, edificado por mais dois milênios e meio de experiência histórica e pela evidência imediata do seu mundo, reabre o problema que Esquilo julgara estar resolvido. Nenhumas ilusões maniqueístas sobre o dualismo absoluto do bem e do mal. O homem contínua pactário. Ninguém chegou ainda à destrinça inequívoca, e, como insinua a bela "estaria" "O Espelho", todos deveriam estremecer à simples pergunta de "Você chegou a existir?" Hermógenes não estava definitivo. Mas ainda ele não fora morto, e já nos Gerais havia um homem como Habão que não sabe olhar para outro homem sem o ver na qualidade de força trabalhadora anônima, reprodutora de investimento, tal como a Medusa, que convertia, a um simples olhar, qualquer mortal em rochedo. O Taturana fez-se, ele próprio, Habão, sem dar por isso. Todos continuamos Faustos, ou Orestes, e mais inacabados são ainda os que o não sabem.
Terminemos com algumas considerações sobre a prosa deste ficcionista. A sua leitura é difícil para estrangeiros, para portugueses e até mesmo, ao que parece, para brasileiros, embora o leitor informado possa vencer as principais dificuldades iniciando-se por alguns contos reunidos em Sagarana ou algumas das Primeiras Estórias, abalançando-se depois às novelas de Corpo de Baile, antes de tentar acesso à bela e densa epopeia que é Grande Sertão: Veredas. O que interessa é sobretudo isto: o esforço vale a pena. Raras vezes um esforço de leitura terá uma melhor compensação. De resto, a maior parte das dificuldades vem de duas origens: o internamento num mundo para nós quase inédito de fauna, flora, utensilagem, instituições; e a nossa própria deformação escolar por uma gramática e uma retórica que ignoram muitas das possibilidades expressivas mais importantes da linguagem oral. Claro que Guimarães Rosa não se limita a reproduzir com filológica fidelidade o linguajar dos geralistas, tal como Aquilino não faz o simples traslado de um dialeto beirão nos seus recantos de implantação regional. A boa arte literária obtém mas ê a consumação de formas mais ou menos latentes. E não se requereria grande engenho nem saber linguístico para mostrar que as mais características "inovações" deste prosador caminham, organicamente, no sentido da evolução mais espontaneamente criadora da língua portuguesa, sobretudo na sua variante idiomática brasileira. Simples características de virgulação como "gostava dela, muito", de ordem frásica como "aquilo eu não fazia", de diminutivo verbal ou pronominal como "arranjeizinho um bom emprego" ou "amor-meuzinho", a plasticidade prefixai, sufixai ou aglutinante que, em dados contextos, tornam perfeitamente natural uma "circuntristeza", um "madrugadamente" ou uma "gritamulla" são criações integráveis no espírito do idioma e que o vivificam. Quem tenha alguma cultura clássica, verificará que a grande maioria das construções sintáticas muito elípticas de Guimarães Rosa, ou os seus gerúndios ou particípios equivalentes a orações e até precedidos de conjunção constituem uma tradição milenar e oralmente viva. E uma das maiores qualidades desse estilo tão poético reside, a meu ver, na precisão que consiste em dar por forma imprecisa um pensamento que, como dado imediato, é impreciso, em vez de o mascarar de pseudoprecisão. Refiro-me a admiráveis anacolutos como "as abelhinhas espanam as asas, íarefazinha" ou "no bebedouro pombas bando", e ao uso impressionisticamente estenográfico de certos adjetivos em -vel ou -im: "Noite, o azulável, na parte serena do céu", "um regato fluifim que as pedras olham".
Guimarães Rosa é talvez o autor vivo de língua portuguesa que melhor nos persuade de como a linguagem é, em última análise, criação contínua, veredas singrando num horizonte imprevisto; de como a linguagem ê tradutível, portanto convencional, nas suas estruturas ossificadas, mas produtora do real humano na sua mais viva linha de avanço. Quando se fala de "uma formiga preta a pernejar no mármore preto", o verbo "pernejar", ainda por cima valorizado na frase por efeitos de aliteração e paronímia, foca a imagem de pernas esguias e negras em movimentos articulados, sobre outra imagem secundária respeitante aos corpos dos insetos, que por seu turno se apagam no negrume polido do mármore: não se reproduz uma realidade, faz-se, sim, uma análise e síntese do real jerarquizado de uma dada maneira, sob a incidência de um humor humano muito especial que nos leva a sorrir.
Ora, além destas criações num plano de herança linguística que se poderia estender a um mare magnum de provérbios, anexins, quadras e outras composições virtualmente populares; além de uma dose habilíssima de non-sense vitalizador das significações profundas cujo melhor espécime se encontrará no linguajar infantil de "Partida do Audaz Navegante" (Primeiras Estórias), Guimarães oferta-nos sucessivas maravilhas no recurso ao mais elementar e importante de todos os meios poéticos: a metáfora. As metáforas de Guimarães Rosa são tantas e tão originais que produzem um efeito poético radical: o efeito de ressaca do significado novo sobre o significado corrente. A gente lê, por exemplo, que "o sabiá veio molhar o pio no poço, que é bom ressoador", e não fica apenas com uma admirável evocação acústica; as palavras "molhar" e "poço" descongelam-se, libertam-se da sua hibernação dicionarístíca ou corrente, e perturbam como um reachado todavia surpreendente. O mundo parece mitificar-se, mas o que de fato aconteceu é que as nossas relações com as coisas se reanimaram: certas intenções humanas descobrem novas coisas, ou (o que é mais evidente pelos imagens dos Gerais sertanejos) certas coisas ou suas feições desconhecidas despertam em nós intenções ignoradas, sobre as quais nos ficamos interrogando. E redescobrimos até que a vocação humana mais profunda é a de realizar milagres, é a de aspirar ao que nem mesmo nos atrevemos a dizer-nos. Isso faziam dantes os mitos. E quando um escritor volta hoje a fazê-Io, é porque atingiu a altitude da epopeia.
O.L.


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Fonte:
Sagarana, por: João Guimarães Rosa. José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1976, págs. 13-19.

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