Revolta de Beckman
1. Foi
seguramente o regime colonial um dos fatores preponderantes na formação do
nosso espírito de povo. Principalmente depois das guerras holandesas começa
esse espírito a manifestar-se com uma frequência e uma força que estavam
dizendo bem claro como tinha ele de orientar toda a nossa história.
A primeira
dessas manifestações é essa de que nos vamos ocupar, e que se dá no Maranhão
antes do fim do século XVII.
Desde antes
da intrusão flamenga, já se haviam os colonos acostumado a rebater agressões de
piratas. Aliás, por meados do primeiro século, tinham expelido da Guanabara
usurpadores franceses. Mais tarde ainda os tocaram do Maranhão.
Não houve
uma investida depredadora, uma ameaça de conquista, um ataque à soberania do
domínio, contra a qual não fossem as próprias populações as primeiras a
insurgir-se, e a levantar o seu protesto.
Depois de
haver defendido o litoral, começou o colono a invadir e ocupar o interior para
além da linha de Tordesilhas, arredando assim as raias do domínio, ampliando o
território, fazendo-o muito maior do que o tinham feito os tratados.
Nem seria
preciso mais nada para explicar como naturalmente se ia gerando na alma do povo
em formação um forte sentimento do seu valor, e logo uma nova consciência
jurídica, em contraste com as tradições da mãe-pátria.
E como para
fazer ainda mais intenso, profundo e poderoso esse sentimento que teria de
dominar toda a vida da sociedade nova que se constitui sobrevêm a circunstância
de se haver aqui, em dois séculos, criado a riqueza, tornando-se deste modo a colônia
em verdadeiro empório e socorro do velho reino depauperado. Sem o Brasil
opulento do século XVIII, Portugal não teria subsistido: o esforço que fizera
na construção da sua epopeia marítima tinha-lhe exaurido a vitalidade, ao ponto
de fazê-lo incapaz de por si mesmo resistir à competição em que teve de entrar
para manter o seu vasto domínio.
2. Estes
sucessos do Maranhão assinalam uma das crises em que, de agora por diante, se
vão condensar ímpetos que andavam latentes em toda a colônia, e nos quais,
melhor acentuado, se apanha o novo espírito que se vinha gerando.
Em São Luís
as desordens, as lutas e os escândalos, em que viveu a terra desde que se
expulsaram os franceses, foram tomando um caráter de violência crescente até as
vésperas deste que foi o motim de mais vulto entre os que vinham trazendo a
capitania em estado quase contínuo de sedições e tumultos.
Para mais
agravar a situação na capitania, tinham os governadores do Estado transferido
para Belém a sede do governo, ficando em São Luís apenas o capitão-mor como
autoridade superior.
Em 1680
publicava-se uma lei abolindo a escravidão do gentio, e confiando aos jesuítas
toda jurisdição espiritual e temporal nas aldeias. Estas medidas irritaram
profundamente os ânimos; e mais quando se viu como os executores cuidavam de
aquinhoar-se fartamente na distribuição dos tais índios "livres" e
assalariados.
Coincidindo
mais ou menos com estes vexames, concedera o governo a uma empresa de Lisboa o
"privilégio exclusivo do comércio de todo o Estado por espaço de vinte
anos". Por essa concessão, era o comércio "geral e absolutamente proibido a todos os vassalos". Em
relação aos índios, o caso tornava-se agora curioso: esquecida de que se
abolira a escravidão, autorizava a corte à tal empresa "empregar no seu
serviço os casais de que precisasse... e a fazer no sertão quantas entradas
quisesse"...
É ocioso
dizer que os monopolistas agravaram ainda o que tinha de mais odioso o
privilégio; e ao clamor geral que se foi levantando rebatia o Governador
(Francisco de Sá e Menezes) com atos de força e de escandalosa proteção à
empresa, mesmo porque era nela particularmente interessado.
Outras
causas concorrem ainda para fazer mais aflitivas as condições da vida,
principalmente em São Luís. Diz João Francisco Lisboa que "dois anos de
esterilidade e de fome precederam à sublevação".
Não tardou
que dos agravos e queixas se passasse a conspirar.
3. Os
conjurados contaram logo com o apoio dos frades carmelitas e franciscanos.
Segundo o mesmo Lisboa, celebravam até os seus "concilíabulos no convento
dos Capuchos"; e que "todos os dias amanheciam pasquins e trovas
pelas esquinas... convidando o povo à revolta; e do alto do púlpito, muitos
meses havia que os frades não faziam outra coisa nos seus sermões".
"Frade houve que chegou a bradar publicamente em uma praça — que lhe
dessem quatro homens resolutos que ele, em poucas horas, se obrigava a livrar o
Maranhão do cativeiro".
Entre os
chefes da conspiração, a figura mais notável era Manuel Beckman (ou Bequimão, como todos lhe chamavam, e ele
mesmo escrevia, aportuguesando o nome).
Tendo tudo
combinado, aprazaram os chefes a última conferência para a noite do dia 23 de
fevereiro de 1684. Deviam nessa noite começar às cerimônias de uma festividade,
religiosa que no dia seguinte se celebraria. Resolveram por isso os revoltosos
aproveitar o ensejo daquele concurso de povo para os tumultos preparados.
Efetuou-se a
reunião alta noite no mesmo convento de Santo António, naqueles tempos ainda
fora da cidade. Ali expôs Manuel Beckman os fins do ajuntamento, e os intuitos
da revolução. Ouvindo-lhe a palavra exaltada e segura, apresentaram alguns
certas ponderações sobre a gravidade do passo que se ia dar. "Assomado e
impetuoso de seu natural, e como surpreendido por uma oposição intempestiva,
rebateu Beckman aquelas objeções, cheio de sobrançaria e de despeito.
Retrucaram-lhe os outros no mesmo tom, e dentro em pouco estava travada uma
confusa e renhida disputa".
Ia
dissolver-se a reunião, quando um ilhéu desabrido (Manuel Serrão de Castro)
arranca a espada e grita furioso que não era mais possível recuar daquele
propósito, e que o traidor que se recusasse a avançar, ali mesmo, naquele
instante, acabaria.
Este gesto
decidiu de tudo. Em grande entusiasmo, deixam o convento e dirigem-se para a
cidade, pondo ali a população em alvoroço. Tomam logo o corpo da guarda, e vão
à casa do capitão-mor (Baltasar Fernandes) e declaram-no deposto. Dali marcham
para o Colégio dos Jesuítas, e intimam os padres da resolução que se tomara,
"declarando-os presos e incomunicáveis com guardas à vista".
Em seguida
apoderaram-se da casa e dos armazéns da Companhia do Comércio do Estado do
Maranhão.
"Ao
amanhecer estava concluído todo aquele trabalho com a maior fortuna; e raro era
o habitante que se não achasse em armas, a maior parte de boa vontade, bem
poucos constrangidos".
4. Era
preciso instalar logo a nova ordem. Convoca-se para isso uma Junta Geral. Essa
Junta aprova por aclamação o que se havia feito (deposição do capitão-mor, e
também do Governador, que se achava no Pará, abolição do estanco, e expulsão
definitiva dos padres). Ato contínuo, organiza-se um novo governo, que se
compôs dos oficiais da Câmara e três adjuntos, sob a superintendência suprema
de dois procuradores do povo.
Para estes
cargos foram aclamados Manuel Beckman e Eugênio Ribeiro Maranhão; e para o de
adjuntos, Tomás Beckman, João de Sousa Castro e Manuel Coutinho de Freitas.
Este governo
põe-se imediatamente em ação. Reforma a infantaria de linha, dando-lhe novos
capitães. Organiza uma guarda cívica. Estabelece postos de polícia, e guardas
em diversos sítios.
Substitui
funcionários que não inspiravam confiança. Manda confiscar os armazéns da
empresa abolida; e notifica os padres de que vão ser expulsos.
E acabou o
dia como sempre — com Te Deum solene
—, ao som de vivas, sinos e salvas de fuzilaria, "e no meio de
congratulações gerais, acreditando todos que tinham realmente assegurado para
sempre a felicidade da república e o bem de todos".
Reservara-se
Beckman o papel de guia e condutor do povo maranhense. Era uma espécie de
tribuno chefe, aconselhando, reprimindo, contendo pela palavra. Frequentemente
falava às turbas, e das próprias janelas do senado, provocando a sua eloquência
ruidosos aplausos. Pode-se dizer que ali a autoridade suprema era ele, sendo
simples executoras as outras.
Mas, dentro
logo dos primeiros dias, cuidou Beckman de estender a revolução não só na
capitania como em todo o Estado. E agora é que vai ele entrar na fase dos
desenganos. Em toda parte aplaudia-se a abolição do estanco e mesmo a expulsão
dos padres; mas ninguém queria comprometer-se... O próprio Beckman voltou da
vizinha Tapuitapera (hoje Alcântara) sem nada haver conseguido. A Câmara de
Belém "estranhou as demasias a que se arrojara o povo de São Luís"...
Conquanto gostasse muito do que se estava ali fazendo, aproveitou o ensejo de
renovar protestos de fidelidade ao Governador... deixando assim uma porta
aberta para entrar na revolução se a mesma vingasse...
O estilo era
mesmo esse: todo mundo queria; mas dizer alto que se quer é mais sério, e não
se faz sem muita ponderação.
5. De volta
de Tapuitapera, vinha Beckman encontrar em São Luís uns sintomas que lhe deram
a medida dos perigos a que se expunha a nova ordem de coisas se ali
permanecessem os jesuítas encarcerados e deliberou embarcar imediatamente. Fez
logo correr um bando ordenando que "todo os moradores estivessem
presentes" no dia do embarque.
E com
efeito, no dia 26 de março (domingo de Ramos), depois de ouvirem missa no
Colégio saíram os padres (eram 26 ou 27) em préstito para a praia, e ali
embarcaram em dois navios com destino à Bahia. Dizem as crônicas que a multidão
chegou a comover-se, e que a cidade ficou mesmo consternada do espetáculo. A
viagem dos padres foi muito acidentada e penosa; e alguns voltaram indo
desembarcar no Pará. Os outros foram bem recebidos na Bahia, e ali ainda
tiveram a fortuna de encontrar o grande velho António Vieira, que muito os
confortou daquela desgraça, que ele próprio já havia também sofrido.
Com a
partida dos padres dir-se-ia que São Luís caíra num súbito esmorecimento. Não
era decerto a falta dos deportados o que se sentia: era a desilusão do sonho passado.
Começa-se a pensar nas consequências de tudo aquilo. Acabado o entusiasmo dos
primeiros dias, as almas estão fatigadas. Ninguém sabe agora que rumo se há de
dar dali em diante ao que se fizera. O próprio Beckman afeta coragem; mas todos
veem que ele procura inspirar aos outros "uma confiança" que ele
mesmo já vai perdendo.
De dia para
dia a situação se agrava. Já não se disfarçam em São Luís os moderados e
prudentes, e logo nem mesmo os arrependidos.
O Governador
do Estado, lá mesmo de Belém, tenta, por bons modos, fazer voltar à ordem legal
a gente do Maranhão. Expediu para São Luís alguns emissários; tentou mesmo
subornar ao chefe da revolução. Tudo, porém, inutilmente.
Já se estava
por meados de outubro (com cerca de oito meses, portanto, de domínio
revolucionário) quando se lembraram os chefes de mandar Tomás Beckman à corte
como procurador do povo do Maranhão. Era uma prova formal de que se anseia já
por entrar na ordem, saindo das incertezas da situação criada. O que se quer,
com a embaixada à corte, é evitar escarmentos.
6. Tomás
Beckman vai suscitar grandes sustos em Lisboa; pois lá se exageravam muito as
proporções do que se dava em São Luís. Quando se soube, porém, que o motim já
estava em declínio, reergueu-se nos seus melindres a majestade intangível, e
todo mundo engrossou a voz outra vez. Foi logo preso o emissário, com o qual se
estava até aí em arranjos, e devolvido às justiças do Maranhão; e como única
providência, nomeou-se Gomes Freire de Andrada para restabelecer a ordem e
castigar os rebeldes. ,
Enquanto
isso, cresciam em São Luís as dificuldades com que luta o governo
revolucionário. O próprio Manuel Beckman fica indeciso no meio do geral
desânimo e das defecções que lhe fazem em torno um vazio de terror. Entregou-se
o comando da guarnição ao velho sargento-mor Miguel Belo e desde então pode-se
dizer que Beckman não foi mais o chefe supremo na capitania rebelada.
No dia 15 de
maio (1685) fundeava junto à barra o navio que trazia Gomes Freire. Foram logo
à terra dois sujeitos a sondar os ânimos. Teve então, o general, certeza de que
na cidade se anseia pela ordem; e o navio entrou no porto.
O próprio
Beckman, falando na salvação de todos, consegue que a Câmara mande a bordo uma
deputação a apresentar as boas vindas ao Governador, e a pedir-lhe que
retardasse o seu desembarque até que se lhe preparasse uma recepção condigna.
Soube, no
entanto, Gomes Freire que "traçavam negar-lhe a posse caso não viesse
munido do perdão geral"; e deliberou saltar imediatamente. Foi recebido
com as devidas honras, e até com sinais de alegria e entusiasmo.
Os
comprometidos na rebelião cuidaram de fugir. Só Manuel Beckman não saiu da
cidade, e até "continuou por muitos dias a andar livremente em
público".
Parece, com
efeito, que Gomes Freire viera com o propósito de tudo esquecer se a sua
autoridade não encontrasse resistência.
Mas aquela
atitude ostentosa do antigo chefe da revolta ainda agravada peia temeridade com
que tentou libertar o irmão, que chegara preso da Europa, forçou o Governador a
mudar de disposições. Ordenou a prisão dos chefes, e principalmente de Beckman,
pondo-lhe a prêmio a pessoa.
7.
"Obrigado a sair da cidade, vagou desde então, errante e fugitivo, pela
ilha, repelido de uns, esquivado de outros, e mal recebido por toda parte; até
que uma viúva, condoída da sua desgraça, lhe forneceu uma canoa bem remada, da
qual se transportou ao seu engenho do Mearim" (a umas 60 léguas de São
Luís).
Naquele
asilo, tentado dos prêmios oferecidos pelo Governador, vai surpreendê-lo e
traí-lo um Lázaro de Melo, que, segundo uns, era afilhado e pupilo de Beckman.
Em todo caso, era seu íntimo amigo, recebido sempre por ele como pessoa da
família.
Ali, enquanto
Lázaro se entretinha amistosamente com o seu antigo benfeitor, os da escolta o
subjugavam. Meteram-no depressa na canoa e carregaram-no de grilhões, levando-o
para São Luís.
O processo
foi sumaríssimo. Dizem que Gomes Freire assinou a sentença muito compungido.
Chegou o dia
da lúgubre cerimônia (2 de novembro de 1685). "Levantou-se a forca na
praia chamada então do Armazém, hoje da Trindade; e ali, pela manhã foram
executados Jorge de Sampaio e Manuel Beckman".
No momento
supremo, como alma cristã, pediu, do alto do patíbulo, perdão a todos e
declarou que pelo povo do Maranhão morria contente. "Grito derradeiro e
sublime — diz Lisboa — de um coração altivo e generoso, admirável sobretudo
naqueles tempos, em que as revoluções, simples fato material, não constituíam
doutrina nem direito, e em que os condenados, ordinariamente humilhados diante
da justiça, morriam protestando seu arrependimento, e beijando a mão que os
punia".
Acaba assim
(com este grande lance de alma, que deu à história colonial um dos seus mais
nobres vultos) aquela que foi a primeira manifestação formal e violenta do
espírito da terra contra os processos da metrópole.
E no
entanto, o próprio Governador, com as câmaras de Belém e de São Luís, em Junta
Geral, declaravam abolido o estanco. Era mais uma prova de que, "mesmo
quando vencidas, as revoluções, por dolorosas que sejam, fazem o bem que
visaram, se foram inspiradas na razão".
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Fonte:
História do Brasil, por: Rocha Pombo. Editora Melhoramentos, 14ª Edição. São Paulo, 1967, págs. 186-191.
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