(1922-1945)
SUMÁRIO: Introdução. A Semana de Arte Moderna e os
movimentos literários do decênio de 1920. Perspectiva da literatura modernista:
poesia, romance e conto.
INTRODUÇÃO
A revolução
realizada pela geração realista, de 1868, alterou-nos profundamente a
conjuntura política e social (basta considerar a Abolição e a República),
dando--nos à vida e ao espírito uma feição muito diferente da que caracterizara
a época do Romantismo. E a nova ordem política, social e espiritual imposta pelos
realistas triunfou, definitivamente, como vimos, nos acontecimentos de 1888,
1889 e 1891. Ao nos aproximarmos, entretanto, do século XX, cada dia se
acentuou mais a discordância entre essa ordem (traduzida em instituições
políticas, jurídicas e sociais) e o espírito de uma geração nova, a geração da
época do Simbolismo, intransigentemente antirrealista, antimaterialista,
antipositivista. Mas se a última década do século XIX e as duas primeiras deste
século se caracterizaram por manifestações várias, e em vários setores de nossa
vida, de um "mal-estar e de uma insatisfação crescentes" ante a
inadequação do conteúdo da vida nacional ao seu continente político, é preciso
ver que a época do Simbolismo não chegou a realizar a revolução que idealizou,
ou melhor, não chegou a realizar uma revolução tão profunda quanto exigia a
vida brasileira. Tal revolução, profunda e prementemente exigida para a solução
dos novos problemas político-sociais, impostos pela nossa evolução cultural,
realizou-a, finalmente, a geração da época do Modernismo.
Se bem
virmos, os anos que decorrem dê 1910 a 1920, enquadram, "a latere" do
Simbolismo (espiritualista, aristocrático, esteticista, paradoxalmente
afrancesado e nacionalista), a gênese do Modernismo: então, acontecimentos de
vária ordem, como o movimento geral das ideias na Europa e a 1ª Grande Guerra
(com suas desilusões políticas, sociais e morais) vão-nos impondo um espírito,
uma mentalidade e um sentido ativo, completamente novos perante os problemas
gerais da cultura e os problemas imediatos da vida brasileira. Uma nova
geração, integrada não apenas por jovens, aqui e ali a se insinuarem na vida
mental do País, mas também por homens, já então da velha guarda, mas abertos ao
progresso das ideias, vai-se definindo e acaba por se impor, revolucionariamente,
depois de 1920.
A década
1920-1930 é a mais dramática de nossa história contemporânea. Os movimentos
armados de 1922, 1924 e 1930 acabam por destruir a conjuntura política,
administrativa e social da Primeira República e por negar totalmente a
Constituição de 1891. Os novos figurinos políticos europeus e as necessidades
nacionais, impostos à consciência de jovens "líderes" políticos,
definem, ao lado do partido revolucionário democrático, anti-oligárquico (a
Aliança Liberal), os partidos de Esquerda, com seu "Cavaleiro da Esperança",
e de Direita, com o seu "Esperado". No setor econômico, a crise do
café (1929) é o ponto de chegada da diluição da política econômica e financeira
da Primeira República. No setor espiritual e artístico, a negação, por vezes
violenta, irreverente e anárquica, do ideário e da estética até então
dominante; e, a par da aceitação das aliciantes sugestões do Modernismo
europeu, temos ainda a busca ansiosa e confiante da realidade nacional, com
vistas na autenticidade e na originalidade do espírito e da arte brasileira.
A década de
20 é, assim, a fase explosiva do que se pode denominar a nossa revolução
moderna. De 1930 a 1940 (para nos fixarmos em limites extremos), entra a
revolução no processo de equilíbrio; de um lado definem-se várias atitudes
políticas: o Constitucionalismo paulista, afirmado na revolução de 1932, com
seu efêmero triunfo, quando é verdade que só por poucos anos logra reconduzir o
País à legalidade parlamentar e constitucional; o Integralismo, cujas raízes
nacionais estão no movimento Verde-amarelo (1924), chefiado por Plínio Salgado
e fortemente sugestionado pelos figurinos italiano e alemão, lança seu
manifesto em 1933; o Comunismo, em formação desde a revolução russa, chefiado
por Luís Carlos Prestes, tem, para o desenvolvimento de sua força política e
revolucionária, um ambiente social propício, pois que o triunfo da revolução de
1930 criara em todos sincero anseio de salvar da miséria e do abandono o
proletariado e as populações rurais; seu assalto ao poder, em 1935, embora
malogrado, define-lhe a força revolucionária. Finalmente, nesse conjunto de
forças políticas, morais e espirituais, vivamente expressas pela produção
literária da época, sobretudo pelo romance e pelo teatro, as circunstâncias dão
prevalência aos homens que mais diretamente atuaram na Revolução de 1930.
Postos no poder desde 10 de outubro, aproveitando habilmente sugestões de todas
as tendências, entre si em conflitos irreconciliáveis, e talvez mais próximos
das aspirações e das necessidades gerais — acabam por impor, em 1937, apesar da
oposição dos constitucionalistas de 32, dos integralistas e dos comunistas, seu
ideário político, consubstanciado no Estado Novo, com sua respectiva Carta
Constitucional, dominante até 1945, quando se reimplanta o regime da legalidade
democrática.
No que
respeita à cultura espiritual e particularmente à literatura, observa-se
semelhante processo de evolução de sua linha revolucionária: a partir da Semana
de Arte Moderna, de 1922, franca e inquietamente se afirmam tendências novas: de
um lado o Modernismo, de influência europeia, com sua insatisfação espiritual e
estética traduzida em muitos "ismos"; de outro lado, o nacionalismo,
xenófobo, intransigente diante das influências estrangeiras inevitáveis com a
importação da doutrina modernista; um nacionalismo que busca, por um lado, os
elementos culturais criados pela "penetração", pela "marcha para
o Oeste" (Movimento Verde-amarelo, 1924, de que nasceram os movimentos
Integralista e da Bandeira); por outro lado, um nacionalismo que busca a
essência da realidade "brasileira" na cultura provinciana da faixa
litoreana, com suas tradições coloniais (Movimento do Pau-brasil, 1924) ;
finalmente, um nacionalismo mais exigente de pureza nativa, anti-europeu, anti-lusista
e anticolonialista, que busca seus temas no Brasil pré-cabralino, no Brasil da
"civilização" indígena (Movimento Antropofágico, 1928).
Passada a
fase das buscas inquietas de uma direção espiritual e literária moderna, na
década de 30 o Modernismo à europeia, embora repelido pela xenofobia, incorpora
à nossa arte e à nossa literatura suas conquistas positivas; as soluções
nacionalistas se confundem numa ideia predominante: realizar uma cultura, uma
arte e uma literatura que expressem a realidade brasileira. São assim da década
de 30 as principais realizações de nossa geração convencionalmente denominada
modernista.
Pouco depois
de 1940, essa geração, que incontestavelmente levou a efeito uma profunda
revolução política, mental e artística, aproxima-se do termo de sua atuação
direta e exclusiva nos acontecimentos; chega à fase recordatória, à consciência
de uma obra acabada ou já definida, e assiste, em geral complacente e
cordialmente, à chegada de uma nova geração (1945), que vem diligenciando por
negar exageros do passado imediato, definir-lhe os autênticos valores e
representar seu papel na evolução da cultura brasileira.
A SEMANA DE ARTE MODERNA E OS MOVIMENTOS LITERÁRIOS DO DECÊNIO DE 1920
De alguns
anos para cá generalizou-se a ideia de que o ponto de partida de nossa
literatura contemporânea é a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, de
13 a 17 de fevereiro de 1922. Mas se a ideia se generalizou, nem por isso tem
sido unanimemente aceita: para uns, a célebre eclosão modernista, nacionalista
e o seu tanto anárquica, não passou de movimento local, de curto raio de
influência; para outros, a Semana Modernista,, entre o muito que agitou de
ideias e o que logrou realizar, deixou saldo negativo superior ao positivo ; e
esse positivo é inferior ao que no romance, no conto, na poesia, no teatro, no
ensaísmo crítico e na historiografia realizou-se, nestes trinta anos, fora do
grupo paulista de 22.
É certo que
as quizílias, inevitáveis entre grupos literários em conflitos de espírito
regional ou de idade, têm colocado mal o problema do significado histórico da
Semana de Arte Moderna. De passagem diga-se que os mais diretos colaboradores
da explosão modernista têm sido os mais serenos apreciadores das proporções e
do alcance do movimento. A rigor a Semana de Arte Moderna não foi, nem poderia
ser, o fator de toda a evolução e de todas as tendências de nossa literatura
contemporânea; mas foi, inegavelmente, dentre as primeiras, a mais expressiva e
impressiva manifestação pública de nosso Modernismo; ou, se assim não quiserem,
porque a palavra Modernismo envolve uma definida atitude estética e moral, de
nossa contemporaneidade literária e cultural. Basta ver, em abono desta tese, a
obra posteriormente realizada pelos elementos da ruidosa Semana; e ainda o
poder sugestivo da ideia central do movimento, ideia que em alguns anos teve o
poder de galvanizar, noutros centros de cultura, grandes e pequenos, aspirações
semelhantes de revolução cultural e espiritual; e ainda, e principalmente, em
abono do significado histórico da célebre Semana, considere-se que o mais
importante de seus anseios e de suas realizações, vistos hoje em perspectiva
serena, constituíram uma legítima revolução — legítima pela oportunidade e pelos
impulsos, muito mais profundos e tradicionais do que possam parecer à primeira
vista.
Superada, há
muito, a fase caótica dessa inquieta revolução (1922-1928), relegada a plano
inferior seu anarquismo anedótico, definidas as atitudes e as participações
pessoais, pode-se chegar a esta síntese de seu sentido evolutivo:
De 1912 a
1915 (neste passo me apoio no excelente estudo de Mário da Silva Brito, citado
na Bibliografia), Oswald de Andrade, em São Paulo, procura criar, através da imprensa
e com sua ação pessoal, a consciência da renovação modernista europeia; em
1913, Lasar Segall realiza em São Paulo a primeira exposição, de pintura
expressionista, não logrando ainda influir na opinião pública; em 1914, o mesmo
ocorre com a primeira exposição, também em São Paulo, de Anita Malfatti,
influenciada pelo impressionismo alemão; em 1914, O Estado de São Paulo
publica, no Brasil, b primeiro artigo sobre o Futurismo, do Prof. Ernesto
Bertarelli, As Lições do Futurismo; em 1915, no Bio, Luís de Montalvor,
português, e Ronald de Carvalho, idealizam a revista Orfeu, revista
luso-brasileira, de espírito nitidamente modernista; em 1916, Alberto de
Oliveira, na Academia Brasileira de Letras, afirma a consciência das novas
tendências do espírito e da arte, inclusive do Futurismo; em dezembro de 1917,
Anita Malfatti, recém-chegada dos Estados-Uni-dos, realiza sua segunda
exposição, em São Paulo; agora já francamente modernista, Anita ó injusta e
severamente criticada por Monteiro Lobato (Paranoia ou Mistificação?), que
representa o conservadorismo; nessa altura só Oswald de Andrade e Mário de
Andrade defendem e apoiam o espírito renovador da jovem pintora; ainda em 1917
vários poetas novos começam a impor-se: Mário de Andrade, Há Uma Gota de Sangue
em Cada Poema; Manuel Bandeira, A Cinza das Horas; Menotti Del Picchia, Moisés,
Jucá Mulato; Guilherme de Almeida, Nós; Murilo Araújo, Carrilhões; ainda em
1917, as primeiras manifestações das influências da revolução russa: greve
operária em São Paulo; pronunciamentos de simpatia pela nova ideologia e início
de sua propaganda; em 1918, no Rio, Andrade Murici, no ensaio crítico Alguns
Poetas Novos, chama a atenção do público para a renovação que se operava na
poesia brasileira; em 1920, em São Paulo, "descobre-se" o sentido
renovador da obra que Brecheret iniciava; em fins de 1921 realiza-se na
Livraria de Jacinto Silva, onde se reunia habitualmente um grupo de jovens
escritores e artistas, (Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti)
uma exposição de quadros de Di Cavalcanti. Nessa mostra de arte assentou--se a
ideia da Semana de Arte Moderna.
Em fevereiro
de 1922 realiza-se a célebre Semana. Tem de pronto o apoio moral, muito
significativo, de duas expressivas figuras da aristocracia paulista: D. Olívia
Guedes Penteado e Paulo Prado. Tem a colaboração direta de Graça Aranha, que
com o prestígio de uma obra literária de valor, de membro da Academia
Brasileira de Letras e de sua cultura europeia, vem do Rio emprestar aos moços
um apoio também muito significativo. Tem, finalmente, a Semana, de Arte
Moderna, a colaboração direta e entusiástica da gente nova, idealista e
revolucionária: Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Cândido Mota Filho, Plínio Salgado, Ronald
de Carvalho, Ribeiro Couto, Renato de Almeida, Manuel Bandeira, Rubens Borba de
Morais, João Fernando de Almeida Prado, René Tholier (escritores); Vila-Lobos,
Ernâni Braga e Guiomar Novais (musicistas); Anita Malfatti, Di Cavalcanti,
Brecheret (artistas plásticos).
Em 13 de
fevereiro abre-se o Teatro Municipal para a esperada Semana: três recitais, 13
— 15 — 17, com conferências, concerto, declamação, coreografia e exposição de
artes plásticas e de arquitetura. No que respeita ao público, a Semana tem,
como se sabe, muito mais a virtude de escandalizar e irritar, que de sugerir
ideias e consciencializar a necessidade de uma revolução, nos quadros da
cultura espiritual brasileira, condizente com o sentido novo da vida e da
cultura na Europa. No que respeita a escritores, críticos e artistas novos,
muitos ainda em potência, a Semana tem a inegável virtude de os encorajar para
uma revolução renovadora da cultura brasileira.
Os germes
revolucionários da Semana Modernista de São Paulo, dado o clima moral e
espiritual dominante, sugerem, nos anos seguintes, até 1928, quando começam a
perder a vitalidade, movimentos semelhantes, ainda em São Paulo, e noutros
Estados, cada um, evidentemente, com seus determinantes próprios e com seu
peculiar significado histórico.
Como em
todos os movimentos culturais, e particularmente estéticos, neste, a
-"ânsia de criação" ó bem superior à capacidade de realização: os
primeiros anos do decênio de 20 são mesmo caracterizados pelo desequilíbrio
entre o desejo de inovar e a capacidade de renovar. E como em todas as
revoluções há nesta, de pronto, a obsessão de negar o passado imediato, e em
certos aspectos todo o nosso passado literário e cultural; mas também, como em
todas as revoluções, não é possível negar e anular o que estava integrado, o
que era substancial, no patrimônio moral, espiritual e histórico. Por isso é
fácil ver, num balanço, entre o que se pretende na década revolucionária de 20
e o que se realiza, então e nas décadas seguintes, — que o saldo expressa mais
uma evolução, é verdade que acelerada em seu processo, que propriamente uma
revolução, anti-histórica, em divórcio com o passado.
Até o ponto
em que nos é possível ver os elementos de um fato histórico, sempre
infinitamente complexo, podemos apontar, nos movimentos modernistas de 1922 a
1928, os seguintes ingredientes morais, espirituais e estéticos: anarquismo, modernismo,
nacionalismo e regionalismo.
ANARQUISMO —
Vem da eclosão do Futurismo europeu, em 1909, a convicção de que o anarquismo,
como negação absoluta e intransigente do passado, como destruição do
"statu quo", como afirmação corajosa de novidades, como escândalo
irritante e revoltante — é a mola mestra na propulsão e projeção de todas as
revoluções. Em nenhuma revolução cultural essa convicção se arraigou tanto nos
espíritos como na revolução futurista de 1909. E esse anarquismo dominou os
espíritos, e marcou expressivamente a atitude dos revolucionários da Semana de Arte
Moderna, de 1922. Pondo-se de lado o aspecto anedótico desse anarquismo, já
bastante explorado e suficientemente confessado pelos autores, o que importa é
encontrar-lhe a justificativa ética e cultural e — por que não dizer? — suas
eficazes consequências.
No
anarquismo dos moços de 22 estão implícitos, e por vezes explícitos, juízos de
valor sobre a realidade cultural brasileira presente e passada: é geral a ideia
de que nossa literatura estava eivada de influências estrangeiras, sobretudo
francesas; resultava da obsessão do acabamento estilístico, e, com raras
exceções, estava alheia aos sentidos mais profundos da vida nacional; ideia
geral era também que nossa estrutura social e política, resultava, outro tanto,
de imitação, sendo, por isso, contrária às mais vivas e prementes necessidades
nacionais; e o mesmo poder-se-ia dizer de nossos conceitos de valor estético e
de valor humano, sem atualidade e sem raízes profundas na cultura nacional.
Contra esse "status quo", e contra um indiferentismo cômodo, era
necessário lutar; não, em princípio, com as armas ideológicas de uma revolução
— porque as ideias não venceriam a massa inerte do indiferentismo cômodo e do
comodismo indiferente, e naturalmente reacionário — mas lutar com as armas do
anarquismo chocante, revoltante.
Dos
componentes da geração de 22 nem todos, entretanto, apoiam a atitude anárquica
(expressa em obras e em atos de histrionismo, de palhaçada, de cinismo, de
"blague") em convicções estéticas, espirituais e morais capazes de
realizações autênticas (e esses trinta e sete anos já evidenciaram de sobejo os
legítimos e os falsos valores de 22) — mas todos são unânimes em sentir que a
explosão revolucionária só se daria com o estopim do anarquismo. E o anarquismo
dos moços de 22 pouco a pouco domina o espírito da gente nova de outros Estados
e vai assim definindo, ostensivamente, uma revolução que "realizaria"
e "revelaria" o Brasil. Até mesmo sobre os reacionários esse alegre e
pitoresco anarquismo exerce virtuosa ação: chama-lhes pouco a pouco o espírito
à realidade presente e à participação na discussão dos problemas atuais da
nacionalidade.
MODERNISMO —
Não é este o lugar de recordar as origens europeias da revolução modernista, já
nos dois últimos decênios do século passado, nos quadros do Simbolismo, quando
se evidenciou franca oposição ao espírito realista, positivista e materialista.
O que importa é lembrar que o Modernismo., definido ruidosamente em 1909, em
torno de Marinetti, acabou por penetrar em todas as culturas americanas e se
acomodar às suas realidades. No Brasil, entre 1910-1920, como disse, espíritos
isolados, uns, recém-vindos do estrangeiro, como Anita Malfatti e Lasar Segall,
outros daqui, ávidos de novidades espirituais e estéticas (como Oswald de
Andrade, Ronald de Carvalho) — vão corajosamente afirmando a consciência do
movimento geral das ideias na Europa. Em 1922, temos a aludida Semana de Arte
Moderna., tradução brasileira, até certo ponto, do movimento futurista europeu,
de 1909.
Reduzindo-se
o Modernismo à sua essência espiritual e ética, parece que podemos chegar a
estes elementos: a) ânsia de consciência da realidade presente, que é
existência, que é vida que se vive dramaticamente; mas ânsia de consciência
dessa realidade presente, na totalidade de seus elementos essenciais, sobretudo
no que diz respeito às necessidades, aos anseios mais profundos e dramáticos da
vida, às intuições adivinhadoras; b) prejuízos contra o passadismo reacionário,
que, ao exagero, deforma a compreensão da realidade presente, determina uma
atitude de cômodo formalismo, de cômoda aplicação de velhas e consagradas
fórmulas à solução de todos os problemas da vida, e mais do que isto, arrasta
com lentidão o espírito na penetração da realidade vivida, contrariando ou
mesmo anulando o desejo de conhecer e solucionar os problemas da existência.
Nos países
novos da América, e é bem o caso do Brasil, países que há um século constroem
sua nacionalidade, e dramaticamente diligenciam por tomar e expressar uma
consciência nacional, Modernismo e nacionalismo se confundem; Modernismo e
busca de raízes históricas e culturais que explicassem a vida presente e
norteassem a futura, se conciliam naturalmente.
Deste modo,
relegados a plano secundário os exageros do Modernismo iconoclasta, o
Modernismo do asfalto, da máquina, das chaminés das fábricas, do jazz-band, do cimento-armado, exageros
naturais na fase anárquica do movimento, convenhamos em que é o Modernismo que
acorda na intelectualidade brasileira a consciência viva, portanto mais nítida
e profunda, da realidade nacional, com seus prementes problemas, inexistentes
para os espíritos do século XIX e ainda para os tradicionalistas dos primeiros decênios
deste século. E é assim que, pelo Modernismo, uma consciência mais viva e
dramática, e porque não dizer revolucionária, de nós mesmos, acaba por invadir
a literatura de ficção e de pensamento.
NACIONALISMO
— É evidente, em nossa literatura contemporânea, como ademais em toda nossa
arte contemporânea, a conciliação entre Modernismo e nacionalismo. Mas o
nacionalismo não é, em nosso caso, uma atitude nova: domina-nos o espírito, a
arte, a política, desde o Romantismo. Chega a ser uma constante na evolução
histórica dos povos americanos, e para nós uma constante tão evidente que já se
tornou lugar-comum referi-la. Compreendamos, entretanto, que o espírito
nacionalista e até mesmo a obsessão nacionalista têm evoluído e se tem alterado
bastante do Romantismo a nossos dias: no Romantismo o sentimento nacionalista,
apesar de legítimo e oportuno como atitude política, apesar de sincero em suas
raízes afetivas, conduziu-nos a errados prejuízos antilusistas e a uma
valorização do índio e da paisagem com muitos exageros sentimentais. Ficou-lhe
de positivo o ter iniciado o processo de consciencialização da realidade
nacional. No Realismo, o sentimento antilusista desapareceu, porque típico da
época das lutas pela independência política e cultural, e, contrariamente, o
que se sentiu e o que se procurou definir foi o patrimônio comum de cultura das
duas civilizações lusíadas. Os realistas puseram sentimento nacionalista 110
empenho de uma revolução social e política em favor do progresso material do
Brasil e em favor de sua elevação à categoria dos países civilizados. E mais: no
Realismo, a partir de 1868, mais amadurecida a realidade cultural brasileira,
avincados alguns de seus traços, já nos foi possível, com os recursos de novas
ciências humanas, definição mais compreensiva da realidade brasileira e mais
clara consciência nacional. É fácil verificar este progresso nos móveis morais
de nossas reformas políticas e sociais do fim do século (Abolição e República),
bem como no conteúdo da produção intelectual e artística da mesma época.
Mas o Realismo,
em que pese ao que proporcionou de fatos à consciência da realidade nacional,
ainda enfermou, como o Romantismo, do "pecado original", isto é, da
sua marca estrangeira: é o que se sente, na época do Simbolismo e com
intransigência se denuncia e se combate a partir da Semana de Arte Moderna. É o
que leva os moços de 22 a gritarem: "Nacionalizar a, nação; abrasileirar o
Brasil". Nacionalizar a nação na sua ordem política, social e moral;
abrasileirar o Brasilna sua expressão artística. E outra coisa não se procura
fazer, a partir dos anos de 1920 e 1930, não apenas no campo da cultura
espiritual e artística, mas também em política e em reformas sociais. E ainda
hoje é convicção de muitos brasileiros, que o regime político que vigorou de
1930 a 1945, escoimado de aderências ocasionais de pormenores de figurinos
políticos estrangeiros, procurou ser autêntica expressão das necessidades e das
aspirações políticas nacionais.
Na época do
Modernismo, nacionalismo veio a ser busca da realidade nacional, mas realidade
nacional como expressão brasileira do patrimônio cultural lusíada evoluindo num
meio étnico e ecológico "sui-generis"; veio a ser reconhecimento e
valorização das peculiaridades dos centros regionais, como veremos adiante; consequentemente,
conciliação dos dois elementos fundamentais de nossa história cultural:
"região" e "tradição"; busca de mitos capazes de operar a
unidade moral da nacionalidade: o bandeirismo e a marcha para o Oeste; a
cultura luso-brasileira; o brasileiro, homem cordial; Brasil, país do futuro; o
verde-amarelismo; o pau-brasil; o Brasil antropofágico.
Hoje estamos
convencidos de que o "brasileirismo" dos anos de 20 a 30 praticou
exageros na valorização de temas locais de insignificante expressão nacional,
humana e estética; praticou exageros inoculados de anarquismo, que conduziram a
experiências estéticas, já na década de 30 reconhecidas como extravagâncias.
Descontados esses exageros, ainda muita significação resta ao nosso
nacionalismo moderno: a ele ficamos a dever um espírito, uma literatura, uma
arte plástica e uma música cujo conteúdo e a expressão se mostram como conquistas
positivas, mesmo para um exigente critério de valor.
REGIONALISMO
— O Brasil "país de passado pequeno e de território desmesuradamente
grande", como acertadamente disse Fidelino de Figueiredo, foi ocupado e
colonizado por processo que lhe garantiu, em meio a todas as vicissitudes
históricas, milagrosa unidade político-administrativa, mas processo que também
lhe deu um mapa cultural de caráter acentuadamente ganglionar : desde o século
XVI se definem e se acentuam, em caracteres diferenciadores, nossos centros
regionais de cultura: o Amazonas, o Norte, o Nordeste açucareiro, a Bahia,
Minas, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul. Todos os fatores de ordem
material (geográficos, étnicos, econômicos) contribuíram para a formação de
tais gânglios; indefiníveis forças raciais e morais, a língua e uma constante
política unificadora conseguiram, em quatro séculos, dar à nação, em que pese
às suas acentuadas diferenciações regionais, uma inegável estrutura orgânica.
Tão peculiar
configuração geo-cultural explica suficientemente a razão por que no Brasil,
nacionalismo se traduz em regionalismo. Assim o foi no Romantismo,
principalmente, com os romances de Alencar, de Bernardo Guimarães, de Franklin Távora;
no Realismo, com o romance carioca de Machado de Assis; com o romance do Norte,
de Aluísio Azevedo, Domingos Olímpio, Inglês de Sousa, Assim o foi no
Simbolismo, com os chamados romancistas regionalistas. E finalmente assim tem
sido desde a eclosão modernista de 22. Mas aqui há uma diferença a estabelecer:
nunca, como modernamente, o regionalismo tem sido tão valorizado. É que a par
da consciência que se firma, com o Modernismo, de que só as legítimas
peculiaridades de nossa realidade paisagística e cultural lograriam produzir
uma literatura brasileira original, — chegamos à conclusão (acertada ou não;
isto agora não importa) de que esse autêntico nacional estava nos meios
regionais, sobretudo naqueles meios em que se vinha formando, há séculos, um
complexo cultural genuinamente luso--brasileiro.
O movimento
modernista, na sua primeira fase, isto é, de 1922 a 1928, insuflou, aqui e ali,
movimentos de cultura regional, e destes saiu o mais original e o mais vivo de
nossa literatura desta época.
PERSPECTIVA DA LITERATURA MODERNISTA
Desde a
década de 30 que se vem tentando uma visão histórica da literatura realizada
pela geração do Modernismo. Hoje, quando os principais escritores, que direta
ou indiretamente participaram da revolução modernista, já realizaram uma obra
definida, e quando alguns trabalhos parcelares já estão publicados, (ver
Bibliografia) é possível uma visão perspectiva dos 20 ou 25 anos da época do
Modernismo, e um julgamento de seus escritores.
POESIA
Na medida em
que é possível reduzir a individualidade literária de nossos poetas modernos e
atitudes e tendências gerais, não é difícil ver, nesta época, três direções
poéticas: aventura revolucionária, nacionalismo e aspiração dos valores
universais da, arte.
Aventura revolucionária
Alguns dos
jovens revolucionários da Semana Modernista de 22, Ronald de Carvalho,
Guilherme de Almeida, Mário de Andrade, Ribeiro Couto, Menotti Del Picchia,
Manuel Bandeira, eram, quando da eclosão do movimento, poetas iniciados
confiadamente na estética simbolista, ou mais precisamente, na poética
aliciante de Olavo Bilac, de Alberto de Oliveira, de Guerra Junqueiro, de
António Nobre, de Eugênio de Castro e de Júlio Dantas. Contudo, a revolução
modernista vem a ser para todos um credo estético e uma atitude espiritual a
aceitar e a impor apaixonadamente. E assim o fazem, logrando influência sobre
gerações mais novas, até pelo menos 1945, quando, ao magistério dos mestres da
Semana Modernista, reagem intransigentemente os chamados Novíssimos: (Péricles
Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Ledo Ivo, etc.). O que se
deseja, a partir de 22, dentro desta tendência revolucionária, é libertar a
inspiração poética de todo e qualquer constrangimento, de ordem linguística,
poemática, e até mesmo de ordem estética e moral; alcançar a máxima fidelidade
da forma à emoção, alcançar um simultaneísmo entre o estado lírico e a
expressão; achar formas expressivas realmente novas, capazes de dar novo rumo à
poesia, à poética e à língua; finalmente, encontrar o homem moderno, nas
relações do mais íntimo de sua emoção e de seu espírito com a realidade da vida
contemporânea; (Mário de Andrade, Pauliceia Desvairada, 1922; Oswald de
Andrade, Primeiro Caderno do Aluno de Poesias Oswald de Andrade, 1927; Manuel
Bandeira, Poesias, 1929 e Libertinagem, 1930). Nesta tendência nada de novo em
face da estética do Modernismo europeu. O novo, o diferente, está na solução
pessoal que dá, cada um, à moderna estética e aos temas que a realidade da vida
brasileira lhes sugeria. Se de um lado, nesta tendência, são inevitáveis
extravagâncias e mesmo mistificações, é inegável que a aventura e as
experiências poéticas deste grupo logram alterar profundamente, na forma e no
conteúdo, a poesia brasileira. Incontestável mérito, que já se vai apurando
cuidadosamente.
Mas não é só:
esta tendência chega a produzir autênticos valores. Deixando de lado poetas
como Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Ribeiro Couto, Cassiano
Ricardo, Jorge de Lima, que se definiram melhor noutras tendências, e Mário de
Andrade, um dos mentores do movimento e sem dúvida dos melhores valores da
cultura moderna, com o tempo atraído pela investigação folclórica e pela
crítica de arte, — definem-se como altos valores dentro desta tendência, Manuel
Bandeira (Poesias Completas, 1948), e Carlos Drummond de Andrade (Poesia Até
Agora, 1947), poetas cuja poesia nos revela achados expressivos de autêntico
valor estético. O mundo destes poetas é o cotidiano, aparentemente apoético, e
ainda as idiossincrasias perante a vida moderna, reminiscências da infância, a
realidade do subconsciente, e a fugacidade da expressão lírica das coisas.
Nacionalismo
A obsessão
nacionalista e o culto do regionalismo levam muitos poetas, praticamente todos
que direta ou indiretamente aderiram ao ideário da Semana Modernista, à
dignificação literária do folclore nacional e à definição de nossos mitos
históricos: Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, Cassiano
Ricardo, Menotti Del Picchia, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Jorge de
Lima, Ascenso Ferreira. Raul Bopp, Augusto Meyer, etc.
O que se
deseja, dentro desta tendência, sobretudo a partir de 1924, ano em que em São
Paulo Oswald de Andrade lança o Manifesto do Pau-brasil e Menotti Del Picchia, o
Manifesto Verde-amarelo, é encontrar um ternário poético (ou, mais
ambiciosamente, um ternário artístico) exclusivamente brasileiro; ternário (era
a suposição unânime, contra a opinião de Graça Aranha) que só se encontraria no
processo da formação étnica e histórica do Brasil e nas suas tradições
populares. E mais: deseja-se encontrar uma expressão poética que pela língua e
pela contextura poemática, de caráter popular e tradicional, reagisse contra o
esteticismo aristocrático dos parnasianos, contra o esoterismo dos simbolistas
e dos modernistas influenciados pelas modas vindas da Europa, e assim pudesse
ter, a moderna poesia brasileira, ressonância no grande público, na alma
popular, pois que esse grande público, esse povo, é que constituía, na opinião
do grupo, a força moral do País, não uma minoria aristocrática, europeizada e
fora da realidade profunda da vida nacional.
Das
tendências de nossa moderna poesia é, durante muitos anos, a de maior força
sugestiva sobre os poetas e sobre o público. Verdade é que os entusiasmos por
esta tendência passaram, e muitos dos seus principais cultores, como Guilherme
de Almeida, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Menotti Del Picchia, Cassiano
Ricardo, Jorge de Lima, acabam por realizar uma poesia inspirada nos eternos
temas líricos. Fiéis quase que exclusivamente a esta tendência foram Raul Bopp,
Ascenso Ferreira e Augusto Meyer.
Passados,
depois de 1940, os entusiasmos pelo pitoresco nacionalista e folclórico, que
tem seu paralelo na música, nas artes plásticas e na arquitetura, não podemos
deixar de reconhecer, a par de alguns de seus defeitos, como seja a valorização
de temas locais ou particulares de limitado significado humano e estético,
alguns de seus méritos: acordou a consciência da unidade histórica e cultural
da pátria nova; avivou na consciência nacional muitos mitos históricos e
culturais (o indianismo, a tradição lusíada, o caldeamento étnico, o
bandeirismo, a luta do homem com as forças telúricas, o caboclismo, a cultura
afro-brasileira, etc.) ; e pôs em evidência valores estéticos da "terra e
gente do Brasil". É o que se pode ver em Meu (1925) e Raça (1925), de
Guilherme de Almeida; Martim Gererê (1928), de Cassiano Ricardo; em República
dos Estados Unidos do Brasil (1928), de Menotti Del Picchia; em Noroeste e
Outros Poemas do Brasil (1933), de Ribeiro Couto; em Cobra Norato (1931), de
Raul Bopp; Clã de Jabuti, (1927) e Remate de Males (1930), de Mário de Andrade.
Aspiração dos valores universais da arte
Em 1928,
quando chegava a seu fim o período de mais aguda agitação modernista,
levantam-se no Rio as vozes da reação contra duas das principais tendências do
ideário estético e espiritual da Semana de Arte Moderna: Augusto Frederico
Schmidt, com O Canto do Brasileiro... (1928) afirma decididamente: "Não
quero mais o Brasil, não quero mais geografia, nem pitoresco"; e,
circunstancialmente em torno da revista Festa, um grupo, que se declara
projeção do Simbolismo, claramente defende uma orientação espiritualista; seu
intérprete é Tasso da Silveira (Definição do Modernismo Brasileiro, 1931).
Contra a
poesia inspirada no progresso técnico do mundo moderno, no "prosaico"
cotidiano, e contra a poesia "verde-amarelista", do
"pau-brasil" ou "antropofágica", suscetíveis de perder de
pronto o significado, pelo que podiam exagerar de inspiração no circunstancial,
o que deseja esta reação é uma poesia também moderna, mas moderna como voz
lírica do homem de hoje; moderna, no conteúdo e na forma, mas como evolução
natural de séculos de poesia. Uma poesia moderna que encontre nos dramas
profundos do homem atual, mesmo na realidade brasileira, um perene humano, e
portanto um perene artístico.
Exclusivamente
dentro desta tendência as mais altas altitudes foram alcançadas por Augusto Frederico
Schmidt (Rio, 1906. Canto do Brasileiro..., 1928; Canto do Liberto..., 1929;
Navio Perdido, 1929; Pássaro Cego, 1930; Poesias Escolhidas, 1946; O Galo
Branco, 1948) — poeta comovido pelas angústias do homem moderno, personagem da
tragédia da vida, e inquieto, ansioso, dominado de presságios diante do
mistério da realidade transcendente. Murilo Mendes (Minas, 1901. Poemas, 1930;
A Poesia em Pânico, 1938; O Visionário, 1941; As Metamorfoses, 1944; Mundo
Enigma, 1945; Poesia Liberdade, 1947) — complexo, denso, procura na realidade o
essencial, o intemporal e o inespacial, e no transcendente católico e no
espiritualismo amoroso encontra a solução de seu anseio do eterno. Cecília
Meireles (Rio, 1901. Nunca Mais e Poema dos Poemas, 1923; Viagem, 1939; Vaga Música,
1942; Mar Absoluto, 1945; Retraio Natural, 1949) — sem favor a melhor de nossas
modernas poetisas, quer pelos recursos expressivos, em constante busca da
perfeição, quer sobretudo pela emoção impressionantemente comunicativa. O amor
e a natureza são os acentos mais -vivos de sua poesia.
Sem se
filiarem ao grupo espiritualista, alguns dos melhores poetas da Semana
Modernista, como Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo (O Sangue das Horas,
1943; Um Dia Depois do Outro, 1947) e Ribeiro Couto (Cancioneiro do Ausente,
1943), passada a fase dos manifestos modernistas e nacionalistas (1922-1928)
pouco a pouco se libertam do circunstancial efêmero, e buscam uma poesia mais
fiel às suas individualidades líricas e de mais ampla e duradoura ressonância. Guilherme
de Almeida (Poesia Vária, 1947) veio a ser entre estes, e dentro de nossa
literatura contemporânea, uma das mais completas organizações líricas,
sobretudo como poeta lírico-amoroso e dos grandes momentos de vibração da alma
nacional.
ROMANCE E CONTO
Foram os gêneros
que mais ampla e profundamente penetraram na realidade nacional. Já por volta
de 1915 Monteiro Lobato, espírito moderno, mais tarde irreconciliável com os
modernistas de 22, com experiência pessoal da miséria do homem rural paulista,
impõe, com chocante sinceridade, uma concepção da terra e do homem a ela
vinculado (Urupês, 1918) muito diferente da que nos oferecera o idealismo e o
esteticismo dos escritores sertanistas do século XIX e ainda do começo do século
XX. O Jeca Tatu, com sua esperteza de rato, a viver na miséria de sua
"tapera", resistente a toda sorte de progresso — chama-nos para uma
trágica realidade rural, realidade cada dia mais viva em nosso espírito, nestas
últimas décadas, porque tema dominante da literatura, das artes plásticas e do
ensaísmo sociológico.
Com a eclosão
modernista de 22, decididamente caminha-se para um romance e um conto modernos;
modernos pela técnica, pela expressão e pela temática : em São Paulo, os moços modernistas
ensaiam os motivos da vida presente, no grande centro urbano paulista,
"sui-generis" pelo espírito nobiliárquico de uma pequena aristocracia
dominante, pela mistura racial e pelo acentuado dinamismo econômico então já
evidente (Oswald de Andrade, Os Condenados, 1922; Memórias Sentimentais de João
Miramar, 1924; Mário de Andrade, Primeiro Andar, (contos) 1926; Amar, Verbo
Intransitivo, 1927; Menotti Del Picchia, A Mulher que Pecou, 1922; António de
Alcântara Machado, Brás, Bexiga e Barra Funda, 1927; Laranja da China, 1928;
Plínio Salgado, O Estrangeiro, 1926).
No Nordeste
renova-se completamente o tradicional romance regional (José Américo, A
Bagaceira, 1928; Raquel de Queirós, O Quinze, 1930), e a renovação surpreende e
choca pela originalidade, e ao mesmo tempo pela crueza dos temas sociais e
humanos, levantados como franco apelo a uma necessária revolução social,
política e econômica que salvasse da miséria e do abandono nosso homem rural. Mais
do que o romance da vida urbana, teve este romance regionalista moderno, pela
entusiástica aceitação que logrou, o condão de determinar ou iniciar fecunda
corrente romancística, ainda hoje dominante.
Iniciada a
necessária renovação, já no decênio de 30, o romance e o conto modernos
afirmam-se na opinião pública nacional e mesmo estrangeira, por algumas
características de inegável valor histórico e estético.
Não é
possível, evidentemente, estabelecer fronteira rígida entre a prosa de ficção,
das primeiras décadas do século (onde há valores inegáveis, como Coelho Neto,
Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Lima Barreto, Afrânio Peixoto) e o que
denominamos a moderna prosa de ficção: o clima revolucionário da década de 20,
(com suas expressões espirituais, literárias e políticas) acaba
incontestavelmente por determinar uma renovação formal e temática do romance e
do conto; mas não se pode negar que alguns aspectos dessa renovação já vinham
sendo ensaiados desde o começo do século, quando acordava a consciência de que
não havíamos ainda realizado uma literatura propriamente brasileira (V. o
inquérito promovido por João do Rio ou Paulo Barreto, O Momento Literário
(1910). Não pensemos, portanto, numa fronteira rígida, o que, ademais, não
existe em história literária; pensemos em pontos extremos e contrastes
marcantes, e de pronto se nos definem nas características essenciais do romance
e do conto modernos, que têm seu início entre 1920-1930.
Penetração
cada dia mais corajosa e profunda na realidade brasileira, mas penetração em
forma de simpatia, de comparticipação com a vida, e não em atitude crítica,
como ocorreu no Realismo. O que se deseja, e se consegue, é viver e expressar
natural e sinceramente essa realidade.
Penetrando
na realidade cultural brasileira pomos em evidência duas áreas dessa realidade:
a regional, com sua vida rural e provinciana, e a urbana; daí dois tipos
dominantes de romance, nesta época: o romance regional e provinciano, com José
Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Érico Veríssimo
(do Tempo e o Vento), para só falar dos principais; e o romance urbano, com sua
fauna burguesa e operária: Otávio de Faria, Érico Veríssimo com a série de
romances sobre Porto Alegre, José Geraldo Vieira, Marques Rebelo, Ciro dos
Anjos, para falar também só dos principais.
Se o alcance
da penetração não tem sido o mesmo em todos os escritores modernos, por motivos
particulares a cada um, a verdade é que essa penetração tem ido muito mais a
fundo que no romance passado; e de modo geral alcança já uma realidade que
transcende a complexidade do mundo estritamente psicológico dos indivíduos —
refiro-me à realidade cultural, è atmosfera existencial. Os realistas descobriram
o meio ecológico, mas perseguiram um protagonista, que é, quase sempre, o tema
de seus romances e contos. Agora começa-se a descobrir uma realidade fugidia,
complexa e mais dramática que o homem em si — a cultura e sua evolução material
e humana: tema predileto dos romancistas e do público brasileiro modernos. É o
caso da obra de Lins do Rego, figura das mais significativas desta época (Paraíba,
1901 — Rio, 1957 — Ciclo da cana-de-açúcar: Menino de Engenho, 1932; Doidinho,
1933; Banguê, 1934; Moleque Ricardo, 1935; A Usina, 1936; Pureza,, 1937; Os
Cangaceiros, 1952-53) ; de Jorge Amado (Bahia, 1912 — Ciclo do cacau: Pais do
Carnaval, 1932; Cacau, 1933; Suor, 1934; Jubiabá, 1935; Mar Morto, 1936; Capitães
da Areia, 1937; 'Terras do Sem Fim,, 1942; São Jorge dos Ilhéus, 1944 ; Seara,
vermelha, 1946); de Érico Veríssimo (Rio Grande do Sul, 1905 — Clarissa, 1933; Caminhos
Cruzados, 1935; Música ao Longe, 1935; Olhai os Lírios do Campo, 1938; O Resto
é Silêncio, 1943; O Tempo e o Vento: I — O Continente, 1951; II — O Retrato,
1952). Lins do Rego com o romance das transformações econômicas e sociais do
Nordeste canavieiro; Jorge Amado, com o romance da Bahia, sobretudo do negro e
do mestiço, a sofrerem as transformações e a modernização da vida numa cidade
enraizada em velhas tradições, e a sofrerem a ganância capitalista nas
plantações de fumo e de cacau; Érico Veríssimo, com o romance do Rio Grande do
Sul, que culmina com o Tempo e o Vento. É ainda o caso de obras de menor
repercussão na grande massa de leitores, mas de idêntico valor: Otávio de Faria
(Tragédia Burguesa), Oswald de Andrade (Marco Zero), Graciliano Ramos (o
romance da vida provinciana de Alagoas), Raquel de Queirós (o romance da vida
rural cearense). Este romance moderno é muito mais um romance existencial que
individual; não tem um único protagonista: todas as personagens são
protagonistas. As forças determinantes do drama coletivo (e há em todos mais
drama coletivo que individual) são as forças profundas, dificilmente
definíveis, da etnia em gênese, da história política, econômica e social em
evolução, convulsa e independente da vontade dos indivíduos. Por vezes, nesse
"Gestalt" dinâmico, algumas forças se sobrepõem, individualizando um
drama humano regional, estigmatizando uma área cultural: a seca e o cangaço no
Nordeste; a crise da velha economia canavieira, empírica, patriarcal e
latifundiária, em Pernambuco e na Paraíba; a aventura do cacau no sul da Bahia;
o traumatismo da vida moderna, nos grandes centros urbanos, Rio e São Paulo; as
lutas de fronteiras e a vida estancieira no Rio Grande do Sul. Sente-se,
constantemente, na moderna prosa de ficção, que o homem, ao invés de conduzir
sua vida, de impor sua vontade, é a vítima das forças surdas do destino de sua
história e de seu meio ecológico e social — e como vítima sofre toda a tragédia
da vida. Deste modo o principal do romance e do conto modernos se desenvolve
num clima de determinismos catastróficos, de que as personagens por vezes têm
vaga consciência, e que os leva a um abandono conformado, profundamente
depressivo para o leitor (é o caso de Lins do Rego, Jorge Amado e Graciliano Ramos),
ou a uma luta desesperada e inglória, por vozes intensamente emocionante (é o
caso de O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo). O drama mais intenso da moderna
prosa de ficção não é assim o que se trava pelos conflitos de caracteres (como
no Romantismo) ou no mundo da consciência (como no Realismo) — o palco desse
drama é bem mais vasto, e a sua mecânica, bem mais complexa. A penetração,
profunda e em simpatia, no complexo da cultura brasileira, sobre enriquecer o
conteúdo do " romance e do conto modernos, traz-lhes consequências muito
importantes do ponto de vista literário e histórico: a) o achado de uma
expressão linguística mais brasileira, mais fiel à oralidade natural; verdade é
que algumas vezes essa expressão traz o exagero desse tom popular, vivo,
pitoresco, mas de limitados recursos estéticos; e outras vezes o exagero do
hermetismo regionalista; mas. não pensando nos exageros, reconhecemos que é
essa expressão viva, natural, "ingênua", que dá, à moderna prosa de ficção,
força comunicativa com um grande público, e sobretudo originalidade;
originalidade e novidade que têm atraído muito leitores estrangeiros e chegou a
influenciar alguns escritores portugueses; b) o achado de uma técnica nova, ou
melhor, de processos romancísticos muito diversos dos que dominaram até o
começo do século XX; mas compreendamos que esses novos processos não foram
determinados por um preceituário de "escola", senão impostos
naturalmente pela concepção nova da realidade: Érico Veríssimo, para pôr em
evidência a unidade da complexa e longa história da civilização gaúcha (O Tempo
e o Vento) teve de montar três planos romancísticos, em princípio
surpreendentes pela novidade, mas muito naturais; Jorge Amado, José Lins do
Rego, e o mesmo Érico Veríssimo, vendo mais o conjunto dos acontecimentos que
os protagonistas, acompanham a duração vital desse conjunto que arrasta umas
personagens, e deixa outras definitivamente para trás, chocando o leitor
desprevenido, habituado ao romance oitocentista, onde um grupo dramático, intencionalmente
reunido, marcha em linhas convergentes para o desenlace. Mais preocupados com a
lógica da vida, que com a lógica do espírito imposta tradicionalmente aos
dramas, os modernos ficcionistas deixam ter relevo o que natural e realmente
tem, e daí um romance e um conto aparentemente desequilibrados em sua orgânica,
sobretudo para quem pensa na técnica narrativa do século XIX, sobretudo do
Realismo.
Finalmente,
considere-se o interesse de nossos modernos romancistas e contistas em atuar
vivamente nas consciências, no sentido de as levar à compreensão dos problemas
da realidade brasileira. Tal intenção, que faz de todos os modernos, escritores
de ação, contamina a moderna prosa de ficção de ideologias políticas e
revolucionárias, como é o caso dos romances integralistas de Plínio Salgado (O
Esperado, O Cavaleiro de Itararé), os romances de ação católica, de Otávio de
Faria (Mundos Mortos, O Lodo das Ruas), dos romances de esquerda de Jorge Amado
(Seara Vermelha...) e de tantos outros. Por vezes o espírito revolucionário e
político emana espontaneamente do drama, como se verifica nos romances de Érico
Veríssimo, de Lins do Rego, de Otávio de Faria e de alguns de Jorge Amado;
outras vezes o proselitismo político se impõe e prejudica flagrantemente a
obra, enquanto obra de arte.
A par de um
romance dominante no gosto do público e no interesse do leitor estrangeiro; que
é o romance que penetrou cada dia mais na realidade cultural brasileira,
desenvolveu-se, na época do Modernismo, o romance e o conto de intenções
exclusivamente psicológicas (Lúcio Cardoso, A Luz no Subsolo, 1936; Mãos
Vazias, 1938; Anfiteatro, 1946) e de motivos humanos universais (José Geraldo
Vieira, A Mulher que Fugiu de Sodoma, 1931; Território Humano, 1936; A Quadragésima
Porta, 1944; A Túnica e os Dados, 1947). É inegável o valor dessa ficção
introspectiva e universalista, pelo que nos conduz adentro de um homem
traumatizado pelo que convencionamos chamar a civilização moderna; mas a
verdade é que os arbítrios da moda ou do gosto ainda preferem o romance e o
conto mais tipicamente brasileiros.
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Fonte:
História da Literatura Brasileira: Séculos XVI-XX, por: Antônio Soares Amora. Editora Saraiva, 3ª Edição. São Paulo, 1960, págs. 179-208.
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