sábado, 30 de julho de 2016

"Que imortal, posto que é chama"

"Que   imortal, posto que é chama"
Por: Pasquale Cipro Neto
Na prova de português da primeira fase da Fuvest 2000, a banca elaborou uma questão baseada neste trecho de Memórias póstumas de Eras Cubas:
"Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo".
O enunciado da questão pedia aos candidatos que apontassem a ideia expressa pelo "particípio suposto". Seguiam-se cinco alternativas, entre as quais "concessão", dada como correia. Se se permite que alguém fume em um lugar em que habitualmente não se pode fumar, por exemplo, faz-se uma concessão e, consequentemente, gera-se contraste entre o fruto da concessão (permitir o fumo) e a norma (não fumar). Por trás da concessão, está, pois, o contraste, a oposição, o choque, a quebra da expectativa.
Que há ideia de concessão em "Suposto o uso vulgar seja..." é indiscutível. Como o próprio texto de Machado de Assis diz, a norma é começar pelo nascimento. O narrador, no entanto, quebra essa norma e começa pela morte, o que caracteriza o contraste, a oposição, base para a existência da concessão.
A questão da Fuvest esbarra, porém, num problema de nomenclatura (sempre ela, a nomenclatura!). "Suposto" não é particípio propriamente dito, como o chamou a banca. Se o fora, teríamos a chamada oração reduzida (aquela em que normalmente não há conectivo e o verbo aparece numa das formas nominais — gerúndio, infinitivo ou particípio). A tese do particípio e da oração reduzida é inviabilizada pela presença da forma "seja", do presente do subjuntivo do verbo "ser", e pela possibilidade da pura e simples substituição de "suposto" pela conjunção concessiva "embora": "Embora o uso vulgar seja começar pelo nascimento...". Nunca se soube de um particípio que equivalesse à conjunção "embora".
O fato é que, no texto de Machado, "suposto" realmente não é particípio; é conjunção que introduz oração de valor adverbial. A "surpresa" é confirmada pêlos dicionários, que dão a "suposto", "suposto que", "posto" e "posto que" valor concessivo. Essas conjunções ("suposto" e "posto") e locuções conjuntivas ("suposto que" e "posto que"), abundantes na obra de Machado, aparecem nela e nos dicionários como equivalentes a "embora", "ainda que", "se bem que".
O Aurélio dá dois exemplos de Ressurreição, do próprio Machado: "Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe"; "Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem deixar de ser cortês e graciosa, parecia um pouco reservada e preocupada". (É de notar o emprego da forma verbal "parecia", do imperfeito do indicativo, no lugar da mais provável "parecesse", do imperfeito do subjuntivo. Como já vimos em artigo anterior, Machado trabalha como mestre a questão dos tempos e modos verbais.) Aulete dá dois exemplos de Herculano: "Um simples cavaleiro, posto que ilustre"; "E, posto que a luta fosse longa e encarniçada, venceram".
Em "Um boi vê os homens", Drummond também faz uso de "posto" com valor concessivo: "Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes não sei que atributo pessoal, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, até sinistros".
Já Vinicius, em seu popularíssimo "Soneto de fidelidade" ("De tudo, ao meu amor serei atento antes..."), deu a "posto que" valor de causa ou explicação, que os dicionários não "legitimam": "Que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure". O fato é que, legítimo ou ilegítimo, o valor explicativo ou causal de "posto que" parece sacramentado, talvez justamente pela popularidade de Vinicius, de seu texto e de seu uso "espúrio".
Até a próxima. Um forte abraço.

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Fonte:
Revista Cult. Ano IV  - Nº 38 - Setembro de 2000. Lemos Editorial & Gráficos. São Paulo, pág.14.

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