"Que imortal,
posto que é chama"
Por: Pasquale
Cipro Neto
Na prova de
português da primeira fase da Fuvest 2000, a banca elaborou uma questão baseada
neste trecho de Memórias póstumas de Eras
Cubas:
"Algum
tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é,
se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso
vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar
diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto,
mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o
escrito ficaria assim mais galante e mais novo".
O enunciado
da questão pedia aos candidatos que apontassem a ideia expressa pelo
"particípio suposto".
Seguiam-se cinco alternativas, entre as quais "concessão", dada como
correia. Se se permite que alguém fume em um lugar em que habitualmente não se
pode fumar, por exemplo, faz-se uma concessão e, consequentemente, gera-se
contraste entre o fruto da concessão (permitir o fumo) e a norma (não fumar).
Por trás da concessão, está, pois, o contraste, a oposição, o choque, a quebra
da expectativa.
Que há ideia
de concessão em "Suposto o uso vulgar seja..." é indiscutível. Como o
próprio texto de Machado de Assis diz, a norma é começar pelo nascimento. O
narrador, no entanto, quebra essa norma e começa pela morte, o que caracteriza
o contraste, a oposição, base para a existência da concessão.
A questão da
Fuvest esbarra, porém, num problema de nomenclatura (sempre ela, a
nomenclatura!). "Suposto" não é particípio propriamente dito, como o
chamou a banca. Se o fora, teríamos a chamada oração reduzida (aquela em que
normalmente não há conectivo e o verbo aparece numa das formas nominais —
gerúndio, infinitivo ou particípio). A tese do particípio e da oração reduzida
é inviabilizada pela presença da forma "seja", do presente do
subjuntivo do verbo "ser", e pela possibilidade da pura e simples
substituição de "suposto" pela conjunção concessiva
"embora": "Embora o uso vulgar seja começar pelo
nascimento...". Nunca se soube de um particípio que equivalesse à conjunção
"embora".
O fato é
que, no texto de Machado, "suposto" realmente não é particípio; é
conjunção que introduz oração de valor adverbial. A "surpresa" é
confirmada pêlos dicionários, que dão a "suposto", "suposto
que", "posto" e "posto que" valor concessivo. Essas
conjunções ("suposto" e "posto") e locuções conjuntivas
("suposto que" e "posto que"), abundantes na obra de
Machado, aparecem nela e nos dicionários como equivalentes a
"embora", "ainda que", "se bem que".
O Aurélio dá dois exemplos de Ressurreição, do próprio Machado:
"Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto
fossem de mãe"; "Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem
deixar de ser cortês e graciosa, parecia um pouco reservada e preocupada".
(É de notar o emprego da forma verbal "parecia", do imperfeito do
indicativo, no lugar da mais provável "parecesse", do imperfeito do
subjuntivo. Como já vimos em artigo anterior, Machado trabalha como mestre a
questão dos tempos e modos verbais.) Aulete dá dois exemplos de Herculano:
"Um simples cavaleiro, posto que ilustre"; "E, posto que a luta
fosse longa e encarniçada, venceram".
Em "Um
boi vê os homens", Drummond também faz uso de "posto" com valor
concessivo: "Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um
para outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente, falta-lhes não
sei que atributo pessoal, posto se apresentem nobres e graves, por vezes. Ah,
espantosamente graves, até sinistros".
Já Vinicius,
em seu popularíssimo "Soneto de fidelidade" ("De tudo, ao meu
amor serei atento antes..."), deu a "posto que" valor de causa
ou explicação, que os dicionários não "legitimam": "Que não seja
imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure". O fato é
que, legítimo ou ilegítimo, o valor explicativo ou causal de "posto
que" parece sacramentado, talvez justamente pela popularidade de Vinicius,
de seu texto e de seu uso "espúrio".
Até a
próxima. Um forte abraço.
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Fonte:
Revista Cult. Ano IV - Nº 38 - Setembro de 2000. Lemos Editorial & Gráficos. São Paulo, pág.14.
Fonte:
Revista Cult. Ano IV - Nº 38 - Setembro de 2000. Lemos Editorial & Gráficos. São Paulo, pág.14.
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