Entrevista com Ricardo Gondim
Por: Ornar
de Souza
"O legalismo impede o avanço da
igreja"
O pastor da Assembleia de Deus Betesda
lança livro em que questiona a ditadura dos costumes
Não é
somente por causa de sua pregação magnética e ungida que o pastor Ricardo
Gondim é frequentemente solicitado a dirigir cultos, vários deles diante de
grandes plateias, e ministrar palestras em congressos e seminários. O líder da
Assembleia de Deus Betesda, em São Paulo, também é reconhecido em todo o país
por um equilíbrio teológico que o distingue de parte significativa dos colegas
de ministério. É pentecostal, mas tem horror ao legalismo. Possui formação
teológica à altura dos maiores intelectuais das igrejas históricas, mas
discerne nos movimentos carismáticos maior capacidade de adaptar-se aos
contornos culturais. Defende uma igreja de princípios sólidos, mas não receia a
comunicação com a sociedade.
Por estes e
outros motivos, cada livro que escreve é garantia de sucesso. O mais novo, É
proibido, não foge à regra. Lançada pela editora Mundo Cristão em dezembro do
ano passado, a obra já está na terceira edição. Nela, Gondim traz para
discussão o arbítrio eclesiástico - ou, numa linguagem mais simples, a ditadura
pastoral - em questões relativas à conduta do crente, como a proibição do uso
de calças compridas pelas mulheres, de ir ao cinema ou à praia, de assistir à
televisão ou mesmo de bater palmas durante o culto.
Com a
autoridade de quem dedicou-se durante muitos anos à observação e à pesquisa dos
movimentos espirituais, sociais e políticos (no sentido mais amplo do termo) da
Igreja Evangélica brasileira, o pastor Ricardo Gondim falou, em entrevista a
VINDE, sobre o pentecostalismo crescente no país, os riscos do legalismo, a
ascensão de lideranças quase ditatoriais e a necessidade de questionamentos
para que ocorra o verdadeiro crescimento espiritual.
Como o senhor vê o movimento pentecostal no
Brasil?
Eu diria que
o pentecostalismo tem duas frentes: o pentecostalismo clássico e o chamado
neopentecostalismo. Este último tende a ser mais identificado com o que se
denomina movimento carismático. O movimento pentecostal clássico é aquele
encabeçado pela Assembleia de Deus.
Por que o movimento neopentecostal tem
crescido tanto nos últimos anos?
O movimento
carismático tem uma agressividade muito grande na mídia. Portanto, tem maior
facilidade de adaptar-se aos anseios culturais e falar muito mais próximo da
cultura que aí está. Não há nenhum demérito nisto, é apenas uma característica.
Existem, sim, perigos potenciais nesse diálogo. Há o perigo da conformação como
o presente século. Além disso, corre-se o risco de a cultura acabar
influenciando mais a igreja do que ela consegue influenciar a cultura.
Como o senhor analisa o relacionamento
entre os crentes chamados históricos e os pentecostais no Brasil?
Este
relacionamento está cada vez mais amigável. As fronteiras entre históricos e
pentecostais estão sendo alargadas, e a tendência é que haja cada vez menos
tensões entre os dois segmentos. Tenho visto que o trânsito entre pastores
pentecostais e tradicionais tem sido facilitado. A cada dia, os rótulos
denominacionais têm sido menos respeitados, e, neste sentido, esta é uma tendência
muito positiva. Aliás, as diferenças entre as liturgias pentecostal e histórica
têm sido quase imperceptíveis. Nós estamos muito mais próximos de uma liturgia
brasileira, diferente da americana ou da europeia.
O senhor diria que a expansão do pentecostalismo
é um caminho sem retorno, que vai acabar atingindo as chamadas igrejas
tradicionais, ou existe a possibilidade de, num determinado tempo, ele se
desacelerar?
Eu acredito
que a tendência pentecostalizante da Igreja Evangélica brasileira é irreversível.
As igrejas tradicionais, conhecidas como denominações históricas, de alguma
maneira já têm sido influenciadas por esse avanço fortíssimo do movimento
pentecostal. Esta influência é muito mais sentida na liturgia, embora na
própria parte teológica e doutrinária das igrejas tradicionais esteja havendo
também uma forte influência. Não há hoje, eu diria, nenhuma igreja, por mais
que se diga conservadora, histórica ou denominacional, que não tenha dentro do
seu círculo pessoas com forte tendência pentecostal.
Qual seria o impacto disso no comportamento
dos crentes?
A Igreja tem
passado por uma verdadeira revolução litúrgica nos últimos 30 anos. E essa
revolução é predominantemente de influência pentecostal, carismática. Eu acho
que houve também, embora com menos força e velocidade, uma mudança teológica,
haja visto a dificuldade que a Igreja brasileira teve, nestes últimos dez anos,
de trabalhar questões como a teologia da prosperidade e a teologia da guerra
espiritual, que foram trazidas no bojo do movimento neopentecostal e forçaram
as igrejas denominacionais e as pentecostais clássicas a reelaborarem a sua
teologia com respeito a anjos, a demônios, a dons espirituais. Hoje, a Igreja
Evangélica do Terceiro Mundo, não só no Brasil, como na África e na Ásia, tem
fortes tendências pentecostais, sem respeitar, por assim dizer, o rótulo
denominacional da porta da igreja.
Até que ponto, nesta nova situação, o
conservadorismo foi deixado de lado?
Embora
muitos avanços tenham acontecido, a Igreja Evangélica ainda é um bastião de
conservadorismo, de falta de diálogo cultural. O movimento pentecostal
brasileiro, e o evangélico de um modo geral, tem muita dificuldade em enxergar
a graça comum, a graça de Deus distribuída a todos os homens, e que os capacita
a fazer coisas boas - embora seja participante da natureza caída. Nós temos a
tendência de rotular pessoas, costumes e certas práticas, e de nos isolarmos do
diálogo. Ainda hoje, o evangélico brasileiro típico é conhecido como aquele que
pode ou que não pode fazer certas coisas.
O senhor acaba de lançar o livro É
proibido, em que questiona o legalismo. A Igreja brasileira ainda sofre com uma
espécie de ditadura de costumes?
Com certeza.
Nós ainda temos uma ditadura dos costumes, que vai desde ornamentos, desde a
indumentária, principalmente a feminina, até o diálogo cultural com as artes,
com a música, por exemplo. Nós ainda temos a famosa frase: "Evangélico não
ouve música do mundo", como se houvesse este tipo de departamentalização
nas Escrituras entre aquilo que pode ou não ser consumido por nós só porque foi
produzido por uma pessoa que não é evangélica. Eu já tive o desprazer de saber
que algumas igrejas evangélicas ainda proíbem instrumentos musicais como a
bateria, e outras que proíbem o ato de bater palmas.
Mas isso não acontece somente no interior?
Não,
acontece mesmo em capitais. Aqui em São Paulo fui convidado para fazer uma cerimônia
religiosa em determinada igreja, e foi-me dito que era proibido ter música que
não utilizasse instrumentos típicos da Reforma e da liturgia reformada. Era
proibido utilizar certos ritmos etc. Então a expressão "é proibido"
ainda é muito utilizada, literalmente. É completamente anacrônico, mas coisas
assim existem aqui em São Paulo.
O que está por trás disso? Uma concepção
legalista?
Sim. Essa
concepção advém da nossa incapacidade de ler a Bíblia como um livro cultural. A
Bíblia não é um código de doutrinas, não é um catecismo que foi codificado para
que nós a obedecêssemos como um regulamento religioso. A Bíblia é a história da
interação de Deus com a cultura humana. No meu livro É proibido fiz um esforço para mostrar às pessoas que a Bíblia não
é uma dogmatização teológica, mas uma saga humana onde existem coisas bonitas e
feias. Enfim, assim é a vida como um todo. O nosso comportamento como cristãos
não deve ser o de fazer um catálogo do que pode e o que não pode, mas conviver
com essa cultura e, no exercício da nossa maturidade, fazer aquilo que Paulo
nos ensina: examinar tudo e reter o que é bom. O que eu quero mostrar no livro
é que nós podemos olhar para a nossa cultura, para a convivência humana, e ver
que existem lampejos, réstias da grandeza de Deus na produção humana. Como
cristãos, devemos resgatar isso e ver ali sinais da graça comum de Deus para
todos.
Por outro lado, o legalismo não tem o
mérito de impedir que a Igreja se vulgarize?
Eu respondo
com a Palavra de Deus. O apóstolo Paulo disse que o legalismo não tem valor
nenhum contra a sensualidade. Este esforço de acrescentar à graça de Deus a lei
é fortemente repelido nos escritos paulinos, principalmente nas epístolas aos
Gaiatas e aos Colossenses. O legalismo não produz santidade nem amadurecimento.
O máximo que ele produz são pessoas que obedecem cegamente, mas que não estão
convencidas da verdade. E, voltando à sua pergunta, o legalismo impede
grandemente o avanço da Igreja. E por quê? Porque, embora crie comunidades de
pessoas obedientes, separa grandes
segmentos pensantes da sociedade. Resultado: o Evangelho acaba ganhando em
obediência, mas perdendo em reflexão. A Bíblia não quer uma obediência cega,
mas uma obediência lúcida. Por isso, Deus disse: "Vinde, e
arrazoemos." É o que Paulo chamou de culto racional.
O senhor acha que o legalismo atrapalha a
evangelização?
Sim, porque
nós crescemos em segmentos menos reflexivos da sociedade e nos afastamos dos
setores pensantes, dos formadores de opinião. Nós jamais conseguiremos mudar o
Brasil se não ganharmos os formadores de opinião, que têm uma reflexão e uma
análise crítica. A minha questão é que, no Brasil, nós estamos crescendo a passos
largos, principalmente em grandes centros como o Rio de Janeiro e São Paulo,
mas ainda nos mostramos incapazes de dialogar com aqueles que estão nos
segmentos mais pensantes da sociedade. Você pode ganhar uma pessoa pela
imposição dogmática do medo, mas perde aqueles que têm a capacidade de refletir
criticamente. O Evangelho alcançou o mundo porque conseguiu vencer a
resistência pensante dos romanos, e assim chegou à Europa, ao Ocidente.
Foi por isso
que o apóstolo Paulo teve tanto interesse em ir a Antioquia, que era uma cidade
universitária, à Grécia, que tinha sido o berço do saber na Antiguidade, e a
Roma, a imperatriz do mundo, porque ele sabia que, ganhando os romanos, estaria
ganhando o mundo.
Na sua opinião, por que têm surgido tantas
lideranças absolutistas no meio evangélico?
Politicamente,
a América Latina tem um histórico de caudilhismo, e esta infeliz vocação
proporciona ao meio evangélico um solo fértil para que essa mentalidade se
desenvolva na igreja. Um certo líder pentecostal gostava de dizer que, quanto
mais ele surrava os seus membros, mais obedientes e fiéis eles ficavam. Eu
creio que essa cultura brasileira ajuda a provocar isso. Eu diria também que
nós, no mundo evangélico, crescemos durante muitos anos sem uma leitura
interdisciplinar. Nós fomos ensinados a ler somente a Bíblia. No máximo, o que
se permitia era a leitura de livros que falassem de assuntos diretamente
ligados a ela. Esta falta de conhecimento do mundo, de horizontes mais largos,
favorece a mentalidade de gueto, da obediência cega e irrestrita ao líder. As
pessoas começam a acreditar naquela tese de que a verdade se restringe àquilo
que lhes é ensinado pela igreja-mãe. Elas ficam com medo de se aventurar além
dos horizontes que lhes são fornecidos. Tudo o que for além desses contornos é
apresentado como falso e perigoso.
O que a Igreja precisa fazer para manter
uma atitude ética e comprometida com valores bíblicos claros sem precisar deste
determinismo legalista?
Eu diria que
a Igreja precisa entender que, por trás da lei, existem princípios que a Bíblia
chama de espírito da lei. É preciso entender que Jesus fez uma clara distinção
entre a letra da lei e o espírito da lei. A letra mata, não produz vida. A
letra da lei é circunstancial, é geograficamente local, mas os princípios são
eternos, para todos. A Bíblia não deve ser vista como um livro de letras secas,
áridas, mas um livro de princípios eternos. É nesses princípios que devemos
buscar os fundamentos que vão alicerçar nossa vida espiritual. É um caminho
mais longo, mas é muito mais frutífero. A lei diz: "Não matarás." O
simples fato de eu não pegar uma arma e matar alguém já me satisfaz com a lei.
Mas o princípio do que Jesus disse sobre não matar é muito mais amplo do que o
que está escrito ali, e vai ajudar-me a não odiar ninguém, nem destruir com a
língua ou com sentimentos amargos outra pessoa que esteja comigo.
Falando em termos práticos, o que o crente
deve levar em consideração na hora de escolher o que lhe convém ou não fazer?
No livro, eu
digo que o que vai determinar o que convém não é só a consciência do cristão,
mas a cultura na qual ele está inserido. Para um índio do interior da Amazônia,
a nudez pode ser coberta apenas por uma tanga. Neste caso, o que convém são os
parâmetros culturais nos quais o indivíduo está inserido. Os mesmos princípios
se aplicam a nós. O que convém e o que não convém não pode ser legislado de
maneira alguma, e sim compreendido de acordo com os ditames culturais nos quais
estamos inseridos. Muitas vezes temos a tendência de legislar sobre a nossa
roupa apenas sob o aspecto da sensualidade. Há outros padrões que devem
delinear nosso comportamento. Muitas coisas consideradas extremamente
pecaminosas dentro de determinada cultura podem deixar de sê-lo em outro contexto
cultural. Na virada do século, por exemplo, a mulher mostrar o tornozelo era
considerado extremamente sensual. Houve uma evolução cultural e hoje não é mais
assim. O cristão deve entender a sua cultura, principalmente no caso dos
missionários, que não devem tentar impingir os seus valores culturais.
Igrejas que agem de maneira discricionária,
proibindo os membros de fazer determinadas coisas, ou de usar certas roupas,
têm futuro?
A tendência
é que tais igrejas mais e mais isolem-se em pequenos guetos. Perdem a
pertinência cultural e, portanto, têm cada vez menos espaço para falar à sua
geração.
Por que algumas igrejas neopentecostais são
tão radicais quanto aos usos e costumes e outras, que seguem a mesma linha
carismática, são extremamente liberais nessa questão?
Eu diria que
as igrejas neopentecostais em geral surgiram através de novos líderes, e não
têm muita continuidade. Essas lideranças não têm muito lastro, nem compromisso
institucional. São pessoas que começam a partir de suas próprias visões,
sonhos, têm muito ímpeto evangelístico e uma grande determinação de alcançar
sua cidade, seu país. Como essas pessoas não têm muitos elos institucionais,
são mais livres para traçar os próprios contornos.
Muitas dessas igrejas adotam teologias e
eclesiologias de fundamento bíblico questionável, como a teologia da
prosperidade. Qual o perigo disto?
As igrejas
neopentecostais têm sido fortemente influenciadas por uma teologia americana, a
teologia de confissão positiva, que reflete a preocupação com a ascensão
social, onde acredita-se que as pessoas, ao abraçarem o Evangelho,
necessariamente ascenderão socialmente. Mas não através do trabalho, da
frugalidade, da poupança, como diz a sociologia de [Max] Weber, e sim da
mágica, da oração forte, da bênção sobre a carteira. Esta teologia da ascensão
social rápida chegou no Brasil há uns 25 anos, e foi fortemente aceita devido à
nossa estrutura socioeconômica de privilégios. Aqui, ou a pessoa já nasce rica
ou a sorte a aquinhoa de maneira especial. Num país com índices alarmantes de
pobreza e desemprego, é difícil ascender através do trabalho, do próprio esforço.
Então, foi adequada uma nova linguagem à igreja: basta uma oração para ser
próspero, pode-se reivindicar de Deus a bênção sobre a sua vida. Esta teologia
que visa o bem-estar do ser humano, e não a glória de Deus, não tem nada a ver
com o Evangelho. O Evangelho não tem esta relação direta de bênção de Deus com
prosperidade. Isto é totalmente pernicioso.
Então o movimento neopentecostal seria o
responsável pela disseminação da teologia da prosperidade por aqui?
O movimento
neopentecostal não é propriamente o vilão dessa história. Ele é muito mais
vítima, já que ele foi influenciado por essa teologia. O neopentecostalismo
estava justamente querendo alcançar um segmento, a classe média, que tem grande
ambição de ascensão social. Nos EUA, por ser um país que possibilita a
mobilidade social, essa teologia tem uma plausibilidade muito grande. É por
isso que minha tese sempre foi a de que a teologia da prosperidade teria as
pernas muito curtas na América Latina porque logo esses grandes evangelistas
seriam confrontados com a dura realidade de que aqui as coisas não são bem
assim.
Voltando à questão das lideranças
absolutistas, o senhor acredita numa cartelização das igrejas?
Acho que não
usaria este termo, mas penso que uma das grandes ameaças para a Igreja Evangélica
é o mercado. É o perigo de enxergarmos a nossa missão sob o ponto de vista
mercadológico, através de lentes empresariais. Este é o grande perigo da Igreja
nesta virada de século. Se usarmos a lei da oferta e da procura, vamos
comprometer seriamente a nossa mensagem, adequá-la ao meio e cair no engodo da
mídia, em que o meio se torna mais importante do que a mensagem. O que está
acontecendo nas igrejas é que nós estamos segmentando o mercado. Um pastor
passa a ver no outro um concorrente, e não um cooperador na obra de Deus.
Começa a haver uma grande transferência de membros de uma igreja para outra, já
que as pessoas não têm mais fidelidade à marca, à instituição. Aliás, esta é
uma característica da própria modernidade. Aí, os pastores ficam em busca de
técnicas que mantenham o seu auditório, o seu nicho de mercado.
A Igreja precisa de polemicas e questionamentos
para evoluir?
E lógico. A
Igreja sempre conviveu com a tensão, desde o grupo interno dos apóstolos.
Depois, foi a igreja primitiva, com as questões judaizantes. Mais tarde,
tivemos a teologia agostiniana, a Reforma, o calvinismo, o armenianismo...
Querer esvaziar a Igreja de suas tensões internas é um desserviço que prestamos
contra nós mesmos. Precisamos de contestações internas, precisamos nos reformar
sempre. É aí que crescemos de verdade. Em última análise, nenhum de nós é o
dono da verdade, ninguém tem a última palavra. E através das tensões que vamos
crescer no conhecimento da Palavra de Deus.
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Fonte:
Revista Vinde. Ano IV - Nº 44 - Julho de 1999. Editora Vinde. Rio de Janeiro, págs. 9-12.
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