Jesus ou Yehoshuah?
Por: Carlos
R. Caldas Filho
Em meu
trabalho de pesquisa e pastoral, tenho me defrontado com uma versão hebraizante
do cristianismo: pessoas que defendem ser errado usar o nome "Jesus".
Para elas o certo seria sua forma hebraica Yehoshuah.
Há quem pense que incorrem em erro as seguintes tradições: ortodoxa,
calvinista, luterana, anglicana, presbiteriana, batista, metodista, adventista,
quadrangular, assembleiana e outras pentecostais (de igrejas como Deus é Amor,
O Brasil para Cristo, Congregação Cristã do Brasil e IURD). Todos estariam
servindo a um falso deus.
A
argumentação de quem pensa desta maneira pode ser assim resumida; a revelação
de Deus à humanidade foi dada na língua hebraica. A única transliteração
possível do nome do Messias é Yehoshuah,
e não Jesus, que seria uma deturpação greco-romana, pois na língua hebraica não
há correspondente para a letra "j". Portanto, o nome do Senhor, para
o grupo citado, não poderia em hipótese nenhuma ser transliterado com a letra
"j". O fato de a língua hebraica não possuir letra correspondente a
"j" não é nada demais. Há tempos, especialistas em hebraico são
unânimes em transliterar palavras que começam com a letra hebraica yod (a letra inicial de Yehoshuah), ora com ."i" (ou
"y"), no caso de substantivos comuns, ora com "j", no caso
de nomes próprios. Uma rápida consulta a qualquer léxico, analítico . ou
gramática de hebraico bíblico confirma esta afirmação.
O movimento
pretende restaurar o que considera ser uma verdade adormecida por 2.000 anos.
"O
falso Jesus"
Não leva em
consideração o fato atestado pelo Dr. Karl Heinrich Rengstorf, de que séculos
antes de Cristo o nome "Jesus" já era muito popular entre os judeus.
Há extensa documentação que comprova a afirmação do professor Rengstorf. É,
portanto, impossível que o nome "Jesus" fosse o nome de um falso
deus, como acredita o movimento que quer hebraizar o cristianismo. Se assim
fosse, judeus jamais colocariam este nome em seus filhos.
O que se
pode dizer com relação a este ensino? Antes de iniciar qualquer argumentação,
uma ressalva: para se comentar este assunto em detalhes, é preciso muito
espaço. Portanto, o que se segue é uma síntese.
DO ÓBVIO
ULULANTE À DESCOBERTA DA AMÉRICA
Nelson
Rodrigues, conhecido teatrólogo brasileiro, criou a expressão "óbvio
ululante". Parte da argumentação do grupo que defende o uso de Yehoshuah Hamashiah (em bom português,
Jesus Cristo) insere-se nesta categoria. Seus textos repetem à exaustão que o
nome do Salvador foi revelado em sua forma hebraica Yehoshuah. Isso é verdade. Tal declaração é um axioma, uma verdade
evidente por si mesma, que não necessita de comprovação. Em sua soberania, Deus
escolheu o antigo povo de Israel para ser o depositário da revelação (Dt 7.6-7;
Rm 9.4-5). É óbvio que Ele comunicou-se com o povo que escolheu na língua
hebraica. No entanto, não há nas Escrituras ordem para que a língua hebraica
seja mantida nem proibição à tradução e, ou, transliteração de nomes em
hebraico para qualquer outra língua. A língua hebraica não é sagrada. No Egito,
em meados do quarto século antes da era cristã, aconteceu a tradução da Bíblia
hebraica para a língua grega. Essa tradução é a famosa Septuaginta (LXX). As comunidades judaicas que não residiam em
Israel e não tinham o hebraico como língua materna sempre entenderam a Septuaginta como Palavra de Deus, mesmo
sabendo ser uma tradução, na qual os nomes próprios hebraicos foram
transliterados,.
Passados
tantos séculos, um grupo "descobre a América" e passa a acreditar na
forma Yehoshuah como sendo a única
correta, bem como a ensiná-la. É estranha essa tentativa de "reinvenção da
roda", por alguns motivos.
Primeiro, a
insistência na forma Yehoshuah é
exemplo do que especialistas em sociologia chamam de sequestro simbólico. Há um sequestro de um elemento da cultura
judaica, que é imposto como sendo o único correio.
Segundo,
voltando ao que foi dito há pouco, o cristianismo não reconhece nenhuma língua
como sagrada, de uso obrigatório. Uma das principais contribuições da Reforma
Protestante foi a tradução da Bíblia para diversas línguas, abolindo a
exclusividade do latim, até então a língua litúrgica da Europa Ocidental. A
imposição de uma língua é característica muçulmana, não cristã. Na tradição
islâmica o árabe é língua sagrada. Não há equivalente deste fato na tradição
cristã. Portanto, o Apocalipse de João, que fecha com chave de ouro a revelação
de Deus, fala sobre "grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas
as nações, tribos, povos e línguas,
em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com
palmas nas mãos; e clamavam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus que se
assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação" (Ap 7.9-10). Além
disso, é mais do que provável, conforme lembram eruditos como Joachim Jeremias,
que Jesus e seus contemporâneos tenham falado aramaico e, não, hebraico. Haja
vista o Talita cumi (Mc 5.41). O cego
à beira do caminho gritou para Jeshua
(com "j" mesmo) "Filho de Davi", e foi ouvido (Mc 10.47).
Terceiro,
nos Discursos de Despedida registrados no Evangelho segundo João, o Senhor
Jesus fala a respeito do Espírito Santo, que viria "a fim de que esteja para sempre convosco" (Jo 14.16). O
Espírito de Deus já veio. Ele é o Espírito da verdade (Jo 14.17). Se o
movimento que defende com tanta ênfase o uso da forma hebraica do nome de Jesus
tivesse razão, o Espírito Santo, logo no início da história da igreja, teria
levantado pessoas para trazerem os fiéis de volta à verdade. E no mínimo,
estranho, pensar que o Espírito da verdade esperasse 2.000 anos para atuar,
ainda mais em uma questão dessa natureza.
Quarto, o
movimento Yehoshuah Hamashiah é
típico representante da efervescência religiosa de fim de milênio.
Teóricos em
sociologia da religião lembram ser períodos assim propícios ao aparecimento das
mais variadas propostas de experiências religiosas. Não é coincidência que tal
movimento faça ouvir sua voz no fim do século XX.
Quinto, para
utilizar mais uma vez a contribuição das ciências sociais em sua abordagem do fenômeno
religioso: observa-se que o grupo que defende o uso de Yeoshuah é um grupo com características de seita, não de igreja.
Considera-se o único detentor da verdade, contra todas as demais tradições
cristãs. Utiliza linguagem por demais arrogante e ofensiva. Por meio do
conhecimento da língua hebraica, pratica uma manipulação do poder religioso,
Isto fica evidente pelo fato de o líder do movimento se autodenominar Haroeh ("Pastor", em
hebraico). Por que não utilizar a palavra designativa de sua função em
português? Essa tentativa de hebraização do cristianismo não é santa. Por trás
de uma aparente piedade, esconde-se um jogo de poder. Afinal, são pouquíssimos
os membros de igrejas que possuem algum conhecimento do -hebraico bíblico. Quando surge alguém que
conhece um pouco, dizendo que tudo que os outros aprenderam está errado, fica
fácil semear confusão e conquistar adeptos. Em sua linguagem empafiosa,
repetindo o tempo todo que é o único detentor da verdade, pois seria o único
que invoca verdadeiramente o nome do Senhor, o movimento Yeoshuah Hamashiah se esquece de textos como: "Nem todo o que
me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade
de meu Pai que está nos céus" (Mt 7.21).
Sexto, o
movimento comete grosseiro erro teológico quando cita passagens como Joel 2.32
e Romanos 10.13: "Todo aquele que invocar o nome do Senhor será
salvo". Para o grupo, só será salvo quem invocar o nome Yehoshuah. Deste modo, reduzem o dom da
salvação à invocação mecânica de um nome hebraico. De onde vem a salvação: da
graça de Deus, que nenhum de nós merece, ou da mera pronúncia de um nome
hebraico? Parece que a forma hebraica do nome do Senhor foi transformada em
palavra mágica. Outro problema não tratado pelo grupo é que, em Joel 2.32, o
Senhor é Javé. Em Romanos 10.13, citação do texto de Joel, a palavra Senhor (Javé, em hebraico) é traduzida por Kurios (literalmente Senhor,
em grego).
Como bom
judeu e bom conhecedor da língua hebraica, Paulo não se incomodou em traduzir Javé por Kurios. Então, quem será salvo: quem invocar o nome Javé ou quem invocar o nome Kurios? Assim, parece uma versão
"evangélica" das Testemunhas de Jeová.
A PESSOA E O
NOME
Finalmente,
o grupo hebraísta tem uma antropologia distorcida. Na antropologia bíblica, o
nome é como um sinônimo da própria pessoa. A pessoa é o que é, e não deixa de o
ser se seu nome for traduzido ou transliterado para outra língua. Saulo de
Tarso não mudou quando foi chamado de Paulo. Vale lembrar que Saulo é seu nome
hebraico (Shaul, transliterado Saul em português) e Paulo, seu nome
latino, Simão não deixou de ser o que era quando foi chamado por Jesus de
Pedro, Mateus e Levi eram nomes de urna mesma pessoa, e não de duas pessoas
distintas. Ainda, Silas e Silvano eram nomes de uma mesma pessoa, e não de duas
pessoas distintas. Ademais, o nome Josué (equivalente hebraico do nome Jesus —
o Novo Testamento grego não distingue entre Josué e Jesus) aparece como Ieshua cerca de 29 vezes nos livros de Crônicas,
Esdras e Neemias (incluindo Esdras 5.2 em aramaico), assim como Jehoshuah aparece cerca de doze vezes em
Ageu e Zacarias. Muitas vezes esses dois nomes se referem à mesma pessoa, o
filho de Jozadaque. Vale lembrar que o erudito F, Delitzch, profundo conhecedor
da língua hebraica, mantém a forma Jeshua
em sua tradução do Novo Testamento.
Alguns
brigam pela obrigatoriedade do uso da forma hebraica do nome de Jesus. Melhor é
abandonar uma postura aguerrida e obedecer ao Príncipe da Paz. que nos ordenou
testemunharmos dele a todos os povos, falantes de todas as línguas. Pois um
dia, na presença do que está assentado no trono e do Cordeiro, o nome de Jesus
será louvado não apenas em hebraico, mas em toda língua falada pela raça
humana,
Vem, Senhor
Jesus!
Dicionário
Internacional de Teologia do Novo Testamento, Volume II. Colin Brown (Ed.), São
Paulo: Vida Nova, 1982, pp. 484-485.
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Fonte:
Revista Ultimato. Ano XXXII - Nº 260 - Setembro/Outubro de 1999. Editora Ultimato. Viçosa - MG, págs. 40-41.
Fonte:
Revista Ultimato. Ano XXXII - Nº 260 - Setembro/Outubro de 1999. Editora Ultimato. Viçosa - MG, págs. 40-41.
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