segunda-feira, 18 de julho de 2016

Foucault e o biopoder

Foucault e o biopoder
Porfiando por fazer a biologia uma íntima da ideologia, muito antes de Lewontin, está Michel Foucault. Lecionou no Collège de France de janeiro de 1971 até morrer, em junho de 1984. Nesse interregno, proferiu uma série de palestras na cátedra que criou, intitulada História dos Sistemas de Pensamento. E a partir dessas aulas na cátedra que encontramos extratos prescientes da crítica ao nosso mundo biotecnológico. No curso de 1976, chamado Em Defesa da Sociedade, ele define duas formas de poder: o disciplinar, que se aplica ao corpo por meio das técnicas de vigilância e das instituições punitivas, e aquele que ele denomina de "biopoder" — exercido sobre a população, a vida e os vivos (algo, por sua vez, já tão previsto por Kant, como veremos à conclusão deste trabalho).
Na sua aula de 17 de março de 1976, sustenta:
"Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que poderia denominar de assunção da vida pelo poder, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização da biologia."
Não se interessa, refere, pelo "nível da teoria política", mas, antes, o nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. "Então, aí, topamos com coisas familiares: é que, nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a distribuição espacial dos corpos individuais, (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, de maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar de trabalho. Ela se instala já no final do século XVII e no decorrer do século XVIII."
Para Foucault, a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. No seu pensamento a nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela se forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. "Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo de individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamaria de uma "bio-política" da espécie humana."
Ele se pergunta:
"De que se trata nessa nova tecnologia de poder, nessa biopolítica, nesse biopoder se instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora há pouco: trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos, constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica."
Nas aulas, fica patente que outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um conjunto de fenômenos dos quais uns são universais e outros são acidentais, mas que, de uma parte, nunca são inteiramente compreensíveis, mesmo que sejam acidentais, e que acarretam também consequências análogas de incapacidade, de pôr indivíduos fora do circuito, de neutralização. "Será o problema muito importante, já no início do século XIX (na hora da industrialização), da velhice, do indivíduo que cai, em consequência, para fora do campo da capacidade, da atividade. E, na outra parte, os acidentes, as enfermidades, as anomalias diversas. E é em relação a estes fenômenos que essa biopolítica vai introduzir não somente instituições de assistência (que existem faz muito tempo), mas mecanismos muito mais sutis, economicamente muito mais racionais do que a grande assistência, a um só tempo maciça e lacunar, que era essencialmente vinculada à Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade, etc."
Em Foucault, alguns dos pontos dos quais se constituiu essa biopolítica, algumas de suas práticas e as primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao mesmo tempo: é da natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair e definir o campo de intervenção de seu poder. "Ora, em tudo isso, eu creio que há certo número de coisas que são importantes. A primeira seria esta: o aparecimento de um elemento - eu ia dizer de uma personagem — novo, que no fundo nem a teoria do direito nem a prática disciplinar conhecem. A teoria do direito, no fundo, só conhecia o indivíduo e a sociedade: o indivíduo contratante e o corpo social que fora constituído pelo contrato voluntário ou implícito dos indivíduos. As disciplinas lidavam praticamente com o indivíduo e com o seu corpo. Não é exatamente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder (ou, enfim, com o corpo social tal como definem os juristas); não é tampouco o indivíduo como corpo. E um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável. E a noção de "população". A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder, acho que aparece nesse momento."
Ele prossegue:
"Segundo, o que é importante também — afora o aparecimento desse elemento que é a população — é a natureza dos fenômenos que são levados em consideração. Vocês estão vendo que são fenômenos coletivos, que só aparecem com seus efeitos econômicos e políticos, que só se tornam pertinentes no nível da massa. São fenômenos aleatórios e imprevisíveis, se os tomarmos neles mesmos, individualmente, mas que apresentam, no plano coletivo, constantes que é fácil, ou em todo caso possível, de estabelecer. E, enfim, são fenômenos que se desenvolvem essencialmente na duração, que devem ser considerados num certo limite de tempo relativamente longo; são fenômenos de série. A biopolítica vai se dirigir, em suma aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração".
Nossa postulação sobre controle dos Isos, controle genético e demais previsões orwellianas são uma constante em Foucault: "A partir daí — terceira coisa, acho eu, importante —, essa tecnologia de poder, essa biopolítica, vai implantar mecanismos que têm certo número de funções muito diferentes das funções que eram as dos mecanismos disciplinares. Nos mecanismos implantados pela biopolítica, vai se tratar, sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar, igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de global. Vai ser preciso modificar, baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso estimular a natalidade . E trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase, assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos de previdência em torno desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de otimizar, se vocês preferirem, um estado de vida: mecanismos, como vocês veem, como os mecanismos disciplinares, destinados em suma a maximizar forças e a extraí-las, mas que passam por caminhos inteiramente diferentes".
Muito do que se discute hoje sob o nome geral de bioética está em Foucault "pois aí não se trata, diferentemente das disciplinas, de um treinamento individual realizado por um trabalho do próprio corpo. Não se trata absolutamente de ficar ligado a um corpo individual, como faz a disciplina. Não se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação. Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o poder da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, com essa tecnologia do poder sobre a "população" enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de "fazer viver". A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e deixar morrer."
A ideologia do DNA é mais bem antecipada no seguinte trecho:
"Ora, agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no"como" da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder... o poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado."
Em Foucault, estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou que se incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral, como o polo do corpo e o polo da população. "Biopoder, por conseguinte, do qual logo podemos localizar os paradoxos que aparecem no próprio limite de seu exercício. Paradoxos que aparecem de um lado com o poder atômico, que não é meramente o poder de matar, segundo os direitos que são concedidos a todo soberano, milhões e centenas de milhões de homens (afinal de contas, isso é tradicional)... Esse excesso de biopoder aparece quando a possibilidade é técnica e politicamente dada ao homem, não só de organizar a vida, mas de fazer proliferar a vida, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar — no limite — vírus iricontroláveis e universalmente destruidores. Extensão formidável do biopoder que, em contraste com o que eu dizia agora há pouco sobre o poder atômico, vai ultrapassar toda a soberania humana."
A nova eugenia dos genes perfeitos também é pontuada por Foucault já em 1976:
"E pode-se compreender também por que o racismo se desenvolve nessas sociedades modernas que funcionam / baseadas no modo do biopoder, compreende-se por que o racismo vai irromper em certo número de pontos privilegiados, que são precisamente os pontos em que o direito à morte é necessariamente requerido. O racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio colonizador. Quando for preciso matar pessoas, matar populações, matar civilizações, como se poderá fazê-lo, se se funcionar no modo do biopoder? Através dos temas do evolucionismo, mediante um racismo."
Ao que ele nomeia como racismo moderno:
"A especificidade do racismo moderno, o que faz a sua especificidade, não está ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras no poder. Está ligado à técnica do poder, à tecnologia do poder. Está ligado a isto que nos coloca, longe da guerra e das raças e dessa intelegilibilidade da história, num mecanismo que permite ao biopoder exercer-se. Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do racismo. E é aí, creio eu, que efetivamente ele se enraíza."
E finaliza o tema com uma questão:
"Como se pode fazer um biopoder funcionar e ao mesmo tempo exercer os direitos de guerra, os direitos de assassínio e da função da morte, senão passando pelo racismo? Era esse o problema, e eu acho que continua a ser esse o problema."


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Fonte:
A Falácia Genética: a ideologia do DNA, por: Cláudio Tognolli. Editora Escrituras. São Paulo, 2003, págs. 148-155.

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