Foucault e o biopoder
Porfiando
por fazer a biologia uma íntima da ideologia, muito antes de Lewontin, está
Michel Foucault. Lecionou no Collège de France de janeiro de 1971 até morrer,
em junho de 1984. Nesse interregno, proferiu uma série de palestras na cátedra
que criou, intitulada História dos Sistemas de Pensamento. E a partir dessas
aulas na cátedra que encontramos extratos prescientes da crítica ao nosso mundo
biotecnológico. No curso de 1976, chamado Em
Defesa da Sociedade, ele define duas formas de poder: o disciplinar, que se
aplica ao corpo por meio das técnicas de vigilância e das instituições
punitivas, e aquele que ele denomina de "biopoder" — exercido sobre a
população, a vida e os vivos (algo, por sua vez, já tão previsto por Kant, como
veremos à conclusão deste trabalho).
Na sua aula
de 17 de março de 1976, sustenta:
"Parece-me
que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o que poderia denominar
de assunção da vida pelo poder, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser
vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa
inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização da
biologia."
Não se
interessa, refere, pelo "nível da teoria política", mas, antes, o
nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. "Então, aí,
topamos com coisas familiares: é que, nos séculos XVII e XVIII, viram-se
aparecer técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo
individual. Eram todos aqueles procedimentos pelos quais se assegurava a
distribuição espacial dos corpos individuais, (sua separação, seu alinhamento,
sua colocação em série e em vigilância) e a organização, em torno desses corpos
individuais, de todo um campo de visibilidade. Eram também as técnicas pelas
quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através
do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e
de economia estrita de um poder que devia se exercer, de maneira menos onerosa
possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções,
de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de
tecnologia disciplinar de trabalho. Ela se instala já no final do século XVII e
no decorrer do século XVIII."
Para
Foucault, a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que
essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser
vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. No seu pensamento a
nova tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na
medida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em que ela se forma, ao
contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios
da vida, que são processos como nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.
"Logo, depois de uma primeira tomada de poder sobre o corpo que se fez
consoante o modo de individualização, temos uma segunda tomada de poder que,
por sua vez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem,
que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie. Depois da
anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrer do século XVIII, vemos
aparecer, no fim do mesmo século, algo que já não é uma anátomo-política do
corpo humano, mas que eu chamaria de uma "bio-política" da espécie
humana."
Ele se
pergunta:
"De que
se trata nessa nova tecnologia de poder, nessa biopolítica, nesse biopoder se
instalando? Eu lhes dizia em duas palavras agora há pouco: trata-se de um
conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de
reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de
natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do
século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos,
constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de
controle dessa biopolítica."
Nas aulas,
fica patente que outro campo de intervenção da biopolítica vai ser todo um
conjunto de fenômenos dos quais uns são universais e outros são acidentais, mas
que, de uma parte, nunca são inteiramente compreensíveis, mesmo que sejam
acidentais, e que acarretam também consequências análogas de incapacidade, de
pôr indivíduos fora do circuito, de neutralização. "Será o problema muito
importante, já no início do século XIX (na hora da industrialização), da
velhice, do indivíduo que cai, em consequência, para fora do campo da
capacidade, da atividade. E, na outra parte, os acidentes, as enfermidades, as
anomalias diversas. E é em relação a estes fenômenos que essa biopolítica vai
introduzir não somente instituições de assistência (que existem faz muito
tempo), mas mecanismos muito mais sutis, economicamente muito mais racionais do
que a grande assistência, a um só tempo maciça e lacunar, que era
essencialmente vinculada à Igreja. Vamos ter mecanismos mais sutis, mais
racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade,
etc."
Em Foucault,
alguns dos pontos dos quais se constituiu essa biopolítica, algumas de suas
práticas e as primeiras das suas áreas de intervenção, de saber e de poder ao
mesmo tempo: é da natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas
diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair e
definir o campo de intervenção de seu poder. "Ora, em tudo isso, eu creio
que há certo número de coisas que são importantes. A primeira seria esta: o
aparecimento de um elemento - eu ia dizer de uma personagem — novo, que no
fundo nem a teoria do direito nem a prática disciplinar conhecem. A teoria do
direito, no fundo, só conhecia o indivíduo e a sociedade: o indivíduo
contratante e o corpo social que fora constituído pelo contrato voluntário ou
implícito dos indivíduos. As disciplinas lidavam praticamente com o indivíduo e
com o seu corpo. Não é exatamente com a sociedade que se lida nessa nova
tecnologia de poder (ou, enfim, com o corpo social tal como definem os
juristas); não é tampouco o indivíduo como corpo. E um novo corpo: corpo
múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos
necessariamente numerável. E a noção de "população". A biopolítica
lida com a população, e a população como problema político, como problema a um
só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
poder, acho que aparece nesse momento."
Ele
prossegue:
"Segundo,
o que é importante também — afora o aparecimento desse elemento que é a
população — é a natureza dos fenômenos que são levados em consideração. Vocês
estão vendo que são fenômenos coletivos, que só aparecem com seus efeitos econômicos
e políticos, que só se tornam pertinentes no nível da massa. São fenômenos
aleatórios e imprevisíveis, se os tomarmos neles mesmos, individualmente, mas
que apresentam, no plano coletivo, constantes que é fácil, ou em todo caso
possível, de estabelecer. E, enfim, são fenômenos que se desenvolvem
essencialmente na duração, que devem ser considerados num certo limite de tempo
relativamente longo; são fenômenos de série. A biopolítica vai se dirigir, em
suma aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em
sua duração".
Nossa
postulação sobre controle dos Isos, controle genético e demais previsões
orwellianas são uma constante em Foucault: "A partir daí — terceira coisa,
acho eu, importante —, essa tecnologia de poder, essa biopolítica, vai
implantar mecanismos que têm certo número de funções muito diferentes das
funções que eram as dos mecanismos disciplinares. Nos mecanismos implantados
pela biopolítica, vai se tratar, sobretudo, é claro, de previsões, de
estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar, igualmente, não
de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal indivíduo, mas,
essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos
gerais, desses fenômenos no que eles têm de global. Vai ser preciso modificar,
baixar a morbidade; vai ser preciso encompridar a vida; vai ser preciso
estimular a natalidade . E trata-se sobretudo de estabelecer mecanismos
reguladores que, nessa população global com seu campo aleatório, vão poder
fixar um equilíbrio, manter uma média, estabelecer uma espécie de homeostase,
assegurar compensações; em suma, de instalar mecanismos de previdência em torno
desse aleatório que é inerente a uma população de seres vivos, de otimizar, se
vocês preferirem, um estado de vida: mecanismos, como vocês veem, como os
mecanismos disciplinares, destinados em suma a maximizar forças e a extraí-las,
mas que passam por caminhos inteiramente diferentes".
Muito do que
se discute hoje sob o nome geral de bioética está em Foucault "pois aí não
se trata, diferentemente das disciplinas, de um treinamento individual
realizado por um trabalho do próprio corpo. Não se trata absolutamente de ficar
ligado a um corpo individual, como faz a disciplina. Não se trata, por
conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe, mas,
pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se
obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em
conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e assegurar sobre eles
não uma disciplina, mas uma regulamentação. Aquém, portanto, do grande poder
absoluto, dramático, sombrio que era o poder da soberania, e que consistia em
poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, com
essa tecnologia do poder sobre a "população" enquanto tal, sobre o
homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de
"fazer viver". A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que
agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao
contrário, em fazer viver e deixar morrer."
A ideologia
do DNA é mais bem antecipada no seguinte trecho:
"Ora,
agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o
direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e
no"como" da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder
intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus
acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como
termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder... o
poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de
lado."
Em Foucault,
estamos num poder que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida, ou que se
incumbiu, se vocês preferirem, da vida em geral, como o polo do corpo e o polo
da população. "Biopoder, por conseguinte, do qual logo podemos localizar
os paradoxos que aparecem no próprio limite de seu exercício. Paradoxos que
aparecem de um lado com o poder atômico, que não é meramente o poder de matar,
segundo os direitos que são concedidos a todo soberano, milhões e centenas de
milhões de homens (afinal de contas, isso é tradicional)... Esse excesso de
biopoder aparece quando a possibilidade é técnica e politicamente dada ao homem,
não só de organizar a vida, mas de fazer proliferar a vida, de fabricar algo
vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar — no limite — vírus
iricontroláveis e universalmente destruidores. Extensão formidável do biopoder
que, em contraste com o que eu dizia agora há pouco sobre o poder atômico, vai
ultrapassar toda a soberania humana."
A nova
eugenia dos genes perfeitos também é pontuada por Foucault já em 1976:
"E
pode-se compreender também por que o racismo se desenvolve nessas sociedades
modernas que funcionam / baseadas no modo do biopoder, compreende-se por que o
racismo vai irromper em certo número de pontos privilegiados, que são
precisamente os pontos em que o direito à morte é necessariamente requerido. O
racismo vai se desenvolver primo com a colonização, ou seja, com o genocídio
colonizador. Quando for preciso matar pessoas, matar populações, matar
civilizações, como se poderá fazê-lo, se se funcionar no modo do biopoder?
Através dos temas do evolucionismo, mediante um racismo."
Ao que ele
nomeia como racismo moderno:
"A
especificidade do racismo moderno, o que faz a sua especificidade, não está
ligado a mentalidades, a ideologias, a mentiras no poder. Está ligado à técnica
do poder, à tecnologia do poder. Está ligado a isto que nos coloca, longe da
guerra e das raças e dessa intelegilibilidade da história, num mecanismo que
permite ao biopoder exercer-se. Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento
de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a
purificação da raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor,
o funcionamento, através do biopoder, do velho poder soberano do direito de
morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do racismo. E é aí,
creio eu, que efetivamente ele se enraíza."
E finaliza o
tema com uma questão:
"Como
se pode fazer um biopoder funcionar e ao mesmo tempo exercer os direitos de
guerra, os direitos de assassínio e da função da morte, senão passando pelo
racismo? Era esse o problema, e eu acho que continua a ser esse o
problema."
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Fonte:
A Falácia Genética: a ideologia do DNA, por: Cláudio Tognolli. Editora Escrituras. São Paulo, 2003, págs. 148-155.
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