O homem Lutero
A DESCOBERTA DA BÍBLIA
Quando e em que circunstâncias começou o
seu interesse pela Bíblia?
Fazia meu
curso universitário em Erfurt quando, com a idade de 20 anos, descobri um
exemplar da Bíblia, em latim, na biblioteca da escola. O primeiro trecho que li
foi a história de Ana e Samuel. Até então julgava que a Bíblia continha apenas
aquilo que era lido nas missas, A partir daí tornei-me um leitor assíduo da
Escritura. Já como sacerdote e professor, na Universidade de Wittenberg, a
partir de 1508, recebi a incumbência de interpretar a Bíblia. Aprofundei-me no
conhecimento dela e foi através de meus estudos bíblicos que redescobri o
evangelho primitivo como se encontra em o Novo Testamento.
A Bíblia é a Palavra de Deus?
"A
Bíblia é a Palavra de Deus, escrita por inspiração do Espírito Santo; o Velho
Testamento pelos santos profetas, e o Novo Testamento pelos santos evangelistas
e apóstolos, A inspiração é o ato divino pelo qual Deus Espírito Santo soprou
nas almas dos escritores da Bíblia os pensamentos que deviam escrever, bem como
as palavras exatas que deviam empregar."
À afixação das 95 teses à porta da Igreja
do Castelo e os acontecimentos posteriores têm alguma relação com esse seu
apego à Bíblia?
Sim.
Propugnei um retorno à Bíblia. Procurei demonstrar que a autoridade das
Escrituras é maior que a da igreja. Esta não é dona da Bíblia, mas serva. A
tradição da igreja pode ser legítima, porém não infalível; por isso deve ser
julgada pela Bíblia. Em outras palavras, preguei que a Palavra de Deus é regra
de fé e prática.
O Doutor é a favor de se colocar a Bíblia
nas mãos do povo?
Perfeitamente.
Eu mesmo traduzi o Novo Testamento do texto grego e o Velho Testamento do texto
hebraico para o alemão que todos entendem. Os 5 mil exemplares do Novo
Testamento publicado em setembro de 1522 foram vendidos em três meses, de modo
que em dezembro já saía uma nova edição. Muitas outras vieram depois.
Tomávamos
sempre o cuidado de eliminar erros tipográficos, corrigir erros de tradução ou
substituir palavras por outras expressões mais convenientes, Melanchthon,
especialista em grego, e Aurogallus, especialista em hebraico, ajudaram-me
muito nessas revisões.
O Doutor gosta do nome luterano dado especialmente aos alemães que abraçaram a Reforma?
"Peço
que se silencie acerca de meu nome e ninguém se denomine luterano, mas, sim,
cristão. Quem é Lutero? A doutrina não é minha e não fui crucificado por
ninguém... E como poderia ser que eu, um pobre saco de estrume, tivesse meu
nome, o qual nenhuma salvação encerra, dado aos filhos de Cristo? Não deve ser
assim, terminemos com esses nomes partidários e denominemo-nos cristãos, pois
possuímos a doutrina de Cristo."
O Doutor não exagera quando se diz "um
pobre saco de estrume"?
Não estou
exagerando nem dando uma aparência de humildade. Na verdade "sou um pobre
verme diante da justiça de Deus, sou um pobre servo do Senhor da igreja, sou um
aluno das Sagradas Escrituras", O pecador não tem valor em si mesmo, não tem nada para dar, carece
totalmente da glória de Deus.
VIDA
FAMILIAR
O Doutor é favorável ao celibato
sacerdotal?
"Fazem
apenas 400 anos que na Alemanha os sacerdotes foram compelidos a força a
deixarem o matrimônio e fazerem voto de castidade. Todos se opuseram a isso com
tamanha seriedade e rijeza, que um arcebispo de Mogúncia, o qual publicara o
novo edito papal a respeito, quase foi morto no tumulto de uma revolta de todo
o corpo sacerdotal. E aquela proibição logo no começo foi efetivada com tanta
rapidez e impropriedade, que o papa, ao tempo, não só proibiu o matrimônio de
sacerdotes para o futuro, mas ainda rompeu o casamento daqueles que havia muito
já estavam nesse estado, o que não é contrário apenas a todo direito, divino,
natural e civil, mas também aos cânones estabelecidos pelos próprios papas e
aos mais renomados concílios."
Uma vez desobrigado do voto do celibato
sacerdotal, em vista de seu rompimento com Roma, como o Doutor encarou a ideia
do matrimônio?
Aconselhei
que os pastores se casassem. Os sacerdotes que aderiram à Reforma e tinham
ligações com mulheres foram exortados a anunciar seu matrimônio com elas.
Muitos se casaram com suas próprias cozinheiras, com as quais já viviam e das
quais tinham filhos. Por esta razão, nem sempre a esposa pertencia à mesma
classe social do marido,
E quanto ao Doutor?
Meus amigos
sugeriram-me que eu também me casasse para quebrar o tabu e servir de exemplo.
"Meus sentimentos não me pareciam levar a contrair matrimônio, E mesmo não
tencionei casar porque esperava diariamente a morte e a punição por
heresia". Mas, em 12 de junho de 1525, liguei-me pelos laços do matrimônio
a Catarina de Bora, da nobreza rural da Saxônia. Eu estava com 42 anos e ela,
com 26. Catarina e mais oito freiras haviam fugido do convento de Nimbsch e
moravam em Wittenberg desde 1523. Ela era hóspede do pintor Lucas Cranach.
Desde os 10 anos até os 24, minha mulher esteve enclausurada.
Que tal o novo estado?
"Não há
ligação mais doce do que a de um matrimônio feliz e não há separação mais
amarga do que a de um matrimônio feliz. A isto apenas corresponde a morte de
uma criança. A dor que ela nos causa, eu próprio a experimentei, A maior dádiva
de Deus é uma esposa piedosa, resoluta, temente a Deus e com dotes domésticos.
Graças a Deus, tal me foi concedido. Eu a considero mais do que o reino da França ou o domínio dos venezianos. Minha Catarina
me é mais útil do que eu ousara pensar."
E os filhos?
"Os
filhos constituem, no matrimônio, o penhor mais aprazível. Estabelecem e
conservam o vínculo do amor." Tivemos três meninas e três rapazes. Isabel
faleceu com 8 meses e Madalena, com 14 anos. Margarida veio a casar-se com o
vice-governador Kuhnheim. Dos homens, João formou-se em Direito, Martinho é
pastor, e Paulo, médico,
O casamento é para sempre?
"O
matrimônio é a união vitalícia instituída por Deus e contraída, mediante
esponsais legítimos, por um homem e uma mulher para uma só carne".
Algumas pessoas que participam de seu lar
em Wittenberg estão passando informações de suas conversas à mesa, no seio da
família e no convívio com os numerosos estudantes que moram em sua casa. O
Doutor não se preocupa com isso?
Em absoluto.
Na verdade eu gosto muito de falar. Nossa casa sempre está cheia — uma tia de
Catarina, vários parentes órfãos, estudantes, refugiados, ajudantes e criados
moram conosco, como família. À hora da refeição conversamos animadamente sobre
problemas teológicos e as novidades mais corriqueiras do dia-a-dia. De vez em
quando, recordo alguma experiência passada. Mas nada há para esconder. É tudo
aberto e examinado à luz da Escritura.
FE E OBRAS
O Doutor foi acusado de corromper a moral
cristã. O que diz sobre isso?
Nada mais
falso. Os adversários, baseando-se na doutrina da justificação pela graça
perdoadora de Deus, da qual me tornei pregador convicto e entusiasta, não
entenderam ou deturparam meu ensino e diziam que eu tornara as boas obras
desnecessárias e destituídas de significado, abrindo assim caminho para as más
obras, Por outro lado, é provável que algumas pessoas imaturas tenham se valido
desta interpretação errônea para se entregarem à devassidão. O que, todavia, a
Palavra de Deus ensina e eu custei a descobrir é que "não podemos alcançar
remissão dos pecados e justiça diante de Deus por mérito, obra e satisfação
nossas, mas pela graça, por causa de Cristo, mediante a fé, quando cremos que
Cristo padeceu e nos são dadas justiça e vida eterna". A tremenda verdade
da justificação pela fé diz nada mais nada menos que Deus "considera justo
o homem que possui a justiça que Ele próprio, Deus, lhe oferece — a justiça de
Cristo. Deus a oferece pelo Evangelho de Cristo e o homem a recebe e dela toma
posse pela fé, ou seja, quando toma a sério a mensagem e crê na oferta e doação
que Deus lhe está fazendo".
"Temos
de guardar fielmente o artigo da justificação pela fé em todos os tempos por
ser o artigo principal da doutrina cristã, pela qual a igreja de Cristo se
distingue de toda religião falsa, sendo dada a glória somente a Deus e
constante conforto ao pecador."
Por que o homem não pode alcançar a
salvação mediante as obras, por exemplo, da própria Lei de Deus?
"Porque
desde a queda no pecado, o homem natural é de todo incapaz para guardar a Lei
de Deus e o próprio cristão só a cumpre imperfeitamente."
Então, para que serve a Lei?
"A Lei
serve para um fim triplo. Em primeiro lugar, concorre para a manutenção da
ordem e da honestidade exterior do mundo, impedindo de certa maneira o
desenfreamento grosseiro do pecado. Neste caso a Lei é freio. Em segundo lugar,
ensina de modo especial aos homens a reconhecerem verdadeiramente seus pecados.
Neste caso a Lei é espelho, Em terceiro lugar, mostra ao regenerado quais são
verdadeiramente as boas obras. Neste caso a Lei é norma."
O Doutor poderia situar a fé e as obras na
experiência religiosa do homem?
Vamos
conceituar primeiro a boa obra. Boa obra é toda obra ordenada por Deus. Se for
feita da fé, é boa; se for feita para granjear méritos, é má, "A mais
nobre de todas as boas obras é crer em Cristo," Ensinamos que "as
boas obras devem e têm de ser feitas não para que nelas se confie a fim de
merecer a graça, mas por amor de Deus e em seu louvor". A fé, por sua vez,
"é uma confiança viva e ousada na graça de Deus, tão segura, que nela o
homem poderia morrer mil vezes. A fé nos torna alegres, ousados e bem dispostos
diante de Deus e de todas as criaturas". "Sempre é a f é que apreende
a graça e o perdão de pecados, E visto que pela fé é dado o Espírito Santo, o
coração também se torna apto para praticar boas obras, porque antes, enquanto
está sem o Espírito Santo, é demasiadamente fraco, Além disso, está no poder do
diabo, que impele a pobre natureza humana a muitos pecados, como vemos nos
filósofos que se lançaram à empresa de viver vida honesta e irrepreensível e
contudo não conseguiram realizá-lo, caindo em muitos pecados graves e
manifestos.
É o que
acontece ao homem quando está sem a verdadeira fé e sem o Espírito Santo, e se
governa apenas pela própria força humana. Sem a fé e sem Cristo, a natureza e a
capacidade humanas são por demais frágeis para praticar boas obras, invocar a
Deus, ter paciência no sofrimento, amar o próximo, exercer com diligência
ofícios ordenados, ser obediente, evitar maus desejos etc, Taís obras elevadas
e autênticas não podem ser feitas sem o auxílio de Cristo, conforme Ele mesmo
diz: 'Sem mim nada podeis fazer' (Jo 15.5)."
A vida crista é estática ou dinâmica?
Não se deve
"pensar que a vida de um cristão seja ficar quieto e descansar, mas estar
a caminho e partir dos vícios à virtude, de clareza à clareza, de força à
força".
A oração é essencial à vida cristã?
"Como o
sapateiro faz sapatos e o alfaiate faz roupas, assim deve o cristão orar.
Ninguém crê quanto pode a oração senão aquele que o aprendeu pela experiência e
o provou pessoalmente.
É grande
coisa alguém sentir o aperto e este obrigá-lo a recorrer à oração. Bem sei:
todas as vezes que orei de coração, fui ricamente atendido e alcancei mais do
que havia pedido. É verdade que por vezes Deus demorou um pouco, mas nem por
isso deixou de me atender."
---
Fonte:
Revista Ultimato. Ano XXXIII - Nº 262 - Janeiro/Fevereiro de 2000. Editora Ultimato. Viçosa - MG, págs. 27-29.
Nenhum comentário:
Postar um comentário