Raízes
da cizânia
Reforma
traça a história do maior cisma do cristianismo
Em 20 séculos de existência, a Igreja Cristã
experimentou quase todos os tipos de divisões, conflitos internos, manobras
políticas e cismas. Mas em um ponto todos os historiadores concordam: nenhum
acontecimento teve maior importância do que a Reforma Protestante, que
completou 480 anos em outubro do ano passado. No entanto, mesmo depois de tanto
tempo, as interpretações sobre o episódio raramente primam pelo equilíbrio.
Geralmente, ouve-se falar na Reforma sob três pontos de vista, cada um com suas
cotas de bom senso e arroubo, coerência e excesso, razão e delírio. No
primeiro, o da assepsia histórica que ignora as convicções religiosas, ela foi
uma revolução cultural e social originada num cisma, provocadora de grandes
transformações políticas a partir da Europa. No segundo, o do catolicismo
conservador, foi um ato de rebeldia, um racha provocado por um herege
insubmisso, um certo Martinho Lutero. No terceiro, do protestantismo
apaixonado, foi o momento de ruptura, quando os grilhões impostos pelo
despotismo dos papas foram finalmente quebrados, e a Igreja tornou-se efetivamente
apostólica.
É natural que cada um procure interpretar a
Reforma de acordo com os próprios interesses. Mas para compreender as raízes,
as circunstâncias e as consequências da Reforma, é preciso esquecer qualquer
tipo de paixão ou partidarismo, como fizeram o católico Felipe
Fernández-Armesto e o protestante Derek Wilson. Em Reforma (Editora Record) eles deixam de lado as diferenças
doutrinárias para abrir juntos todas as perspectivas da História do
Cristianismo: o primitivismo da igreja dos apóstolos com suas primeiras cisões,
as teologias dos patriarcas, as raízes do pontificado, as contestações de
Calvino e seus pares, a reação católica, a formação de sociedades comunais e
ordens religiosas, o surgimento de novas igrejas e seitas, o desafio do
ecumenismo. Baseando-se em extensa bibliografia, os autores derrubam a tese
simplista de que a Reforma Protestante foi um cisma historicamente isolado,
causador da formação de igrejas dissidentes. Reforma mostra que, antes da afixação das 95 teses de Martinho
Lutero na porta de uma igreja alemã, já havia proto-reformadores como Santo
Agostinho, e muitos outros surgiram depois, inclusive dentro do catolicismo.
O maior mérito do livro é apresentar a
Reforma, sobretudo, como uma abertura de alternativas para a Cristandade, o que
torna a obra um ótimo compêndio sobre o episódio que mudou a trajetória da
Igreja e seus efeitos até os dias de hoje. Felipe Fernández-Armesto e Derek
Wilson estão longe de esgotar o tema, mas conseguem reunir dados valiosos,
geralmente desprezados em livros de editoras religiosas, ao sabor de suas
orientações e conveniências. Por exemplo, se Reforma não apresenta Lutero como o super-herói que várias
publicações evangélicas sugerem, também não deixa de citar algumas atrocidades
cometidas contra os protestantes em nome da doutrina católica.
Os autores só erram na mão na hora de
organizar as informações: alguns assuntos são abandonados e retomados diversas
vezes em função da divisão do livro em temas institucionais. Com isso, a ordem
cronológica fica em segundo plano, o que cria alguma dificuldade na concepção
de um quadro histórico lógico. Ainda assim, Reforma
é uma obra que seminaristas e pastores devem não apenas ler, mas manter em
estante como referência. Afinal, nunca i tarde para reverter a tendência de boa
parte da Igreja Evangélica -particularmente da brasileira - de ignorar suas
raízes, como se espiritualidade e história fossem princípios conflitantes.
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Fonte:
Revista Vinde. Ano III - Nº 26 - Janeiro de 1993. Editora Vinde. Rio de Janeiro, pág. 74.
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