Os superpoderes de Simplício
Por:
Marisa Philbert Lajolo
Joaquim
Manuel de Macedo, autor de A Luneta
Mágica é também autor de A Moreninha
e O Moço Loiro. São estas duas
últimas obras que o tornaram conhecido do grande público, pois nelas o
romancista se utilizou de toda sorte de intrigas sentimentais que o público
tinha capacidade de consumir. Mas, se a capacidade de os leitores consumirem
romances românticos parece longe de se esgotar (e as recentes adaptações de A Moreninha para teatro, cinema e televisão
só confirmam isto...), o mesmo não se deu com nosso romancista, que decidiu
mudar de rumos.
Em 1869
(vinte e cinco anos depois de A Moreninha,
sua obra de estreia), escreve e publica A
Luneta Mágica, obra que se afasta bastante do romance sentimental
romântico. Mas, se A Luneta Mágica se
afasta do romance ligeiro de complicações amorosas e desenlaces piegas, não se
aproxima de nada. Paira indecisa entre a fábula, o conto de fadas, e a historieta,
tudo entremeado de digressões pseudofilosóficas. As frequentes e nem sempre oportunas
especulações sobre o Bem e o Mal se conduzem através de um discurso em que
predomina o lugar-comum romântico, enunciado por um narrador que proclama sua
miopia física e moral desde a primeira página.
Simplício é
o narrador-protagonista. Em primeira pessoa, conta-nos suas desventuras de
míope que "a duas polegadas dos olhos não distingue um girassol de uma
violeta" (p. 7). Mas, suas desventuras sobrevivem à sua miopia. De um
misterioso, armênio, dotado de poderes sobrenaturais, consegue uma luneta
através da qual lhe é possível ver com clareza. Mas, como ocorre com todos os objetos
mágicos, o uso do monóculo encantado tem suas restrições: se fixado mais de
três minutos em qualquer objeto, animal ou pessoa, dará a Simplício a visão do
Mal. Escusado dizer que Simplício ultrapassa os três minutos de visão, e passa,
assim, a viver num mundo de traições, desonestidades, hipocrisias.
Levado ao
desespero pela contemplação do Mal, Simplício acaba por espatifar o talismã que
no devido tempo, é substituído por outro com poderes inversos: fixado mais de
três minutos em qualquer pessoa, animal ou objeto, proporcionará a Simplício
uma visão do Bem. Simplício vive, então, em dois universos antônimos: onde a
primeira luneta revelava sovinice, a segunda revela prudência; onde se
manifestava a hipocrisia religiosa, manifesta-se agora a severidade evangélica,
e assim por diante. Isto, é claro, novamente conduz Simplício ao desespero e
quase ao suicídio; momento exato em que ressurge o armênio, e o livro se
encaminha para o epílogo.
Para
qualquer leitor, mesmo o mais desprevenido, tornam-se cristalinas as intenções
didáticas do romance A Luneta Mágica. Sem a sutileza de entrelinhas, o livro dá
alfinetadas no poder público, em certos hábitos arraigados na sociedade
brasileira do século passado, em alguns valores rotulados pela burguesia
romântica. Mas, o problema está em que estas críticas travessas prescindiam da
luneta mágica, visto que o narrador as pratica desde a introdução, quando a
ironia de certos comentários nos fazia esperar, senão maior e mais profunda
malícia, pelo menos menor dose de ingenuidade na drástica oposição entre o Bem e
o Mal. Não se chamasse ele Simplício, e o autor não fosse tão etimológico na
construção de sua personagem...
Em resumo,
não há evolução alguma na perspectiva em que a estaria é narrada. Simplício
continua simplício, antes, durante e depois da posse das duas lunetas. Jamais
adquire autonomia para distinguir o Bem do Mal, o certo do errado. Esta
faculdade fica-lhe embotada, e só com uma terceira luneta, também mágica, a
personagem-narrador consegue sobreviver. Visão, sem dúvida alguma, pobre do
homem condenado à eterna miopia, ao arrimo em monóculos sobrenaturais e
extremistas.
Mas,
poderíamos, ao contrário, pensar nessa impotência humana como índice de
grandeza, talvez uma das grandes lições de Machado, que doze anos depois
publica Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Mas, toda a contradição do real machadiano nem por um segundo empana a visão linear,
maniqueísta e superficial de Simplício/Macedo, para quem o Bem e o Mal são
alternativas que se excluem, que se sucedem sem dialética.
Assim, oscilando
entre a reflexão filosófica (insuficiente) e a crítica de costumes
(superficial), sucedem-se as quase duzentas páginas deste romance. Simplício, super-herói
ingênuo de seu status, quase que desperdiça seus superpoderes. Em sua esteira
vêm Simão Bacamarte e Brás Cubas e, muito longe, longíssimo, Riobaldo. Simplício
vale como lição: contraexemplo, pelo qual superar a miopia literária.
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Fonte:
A Luneta Mágica, por: Joaquim Manuel de Macedo. Editora Ática, 5ª Edição. São Paulo, 1981, págs. 5-6.
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Fonte:
A Luneta Mágica, por: Joaquim Manuel de Macedo. Editora Ática, 5ª Edição. São Paulo, 1981, págs. 5-6.
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