O mundo perfeito das ideias
"Admitamos
pois — o que me servirá de ponto de partida e de base — que existe um Belo em
si e por si, um Bom, um Grande e assim por diante. Se admitires a existência
dessas coisas, se concordares comigo, esperarei que elas me permitirão
tornar-te clara a causa, que assim descobrirás, que faz com que a alma seja
imortal." E Sócrates quem fala a Cebes, em Fédon, diálogo no qual Platão, descrevendo os últimos instantes de
vida e as últimas conversações de seu mestre, pouco antes de beber a cicuta,
atribui-lhe explicitamente uma nova linha de resolução de antigos problemas
filosóficos e científicos: a doutrina das ideias. Pouco antes, no mesmo
diálogo, Sócrates declarara: "... Eis o caminho que segui. Coloco em cada
caso um princípio, aquele que julgo o mais sólido, e tudo o que parece estar em
consonância com ele — quer se trate de causas ou de qualquer outra coisa —
admito como verdadeiro, admitindo como falso o que com ele não concorda".
Aquela afirmação de que existe um Belo em si, um Bom em si ou um Grande em si
surge, dentro do desenvolvimento da filosofia platônica, justamente no momento
em que esta — segundo a maioria dos intérpretes — começa a assumir fisionomia
própria e se distingue do socratismo. Essa separação teria ocorrido no ponto em
que a formulação da noção de ideia, como essência existente em si —
independente das coisas e do intelecto humano —, representa a adoção, por
Platão, de um método de pesquisa de índole matemática. Colocar um princípio e
aceitar como verdadeiro o que está em consonância com ele, rejeitando o que lhe
está em desacordo — como afirmara Sócrates — significa pensar "como
geômetra", que propõe hipóteses das quais extrai as consequências lógicas.
E é o que Platão propõe através da boca de Sócrates: remontar do condicionado
(os problemas a serem resolvidos ou as coisas a serem explicadas) à condição (a
hipótese explicativa), visando antes de tudo a estabelecer uma relação de
consequência lógica entre as duas proposições (a que exprime o problema e a que
exprime sua hipotética resolução). Provisoriamente deixa-se de lado a questão
de saber se a condição é ela própria autossustentável ou se exige o recurso a
condições mais amplas ou básicas que a condicionem. De saída, o importante é verificar
o que está em consonância com o princípio proposto. Todavia o platonismo não se
deterá aí: o exame da primeira hipótese que resulta da aplicação do
"método dos geômetras" — a existência de entidades em si, as ideias,
causas inteligíveis do que os sentidos apreendem — remeterá a outras hipóteses
que a condicionam. O pensamento de Platão irá se construindo, assim, como um
jogo de hipóteses interligadas. Ao relativismo dos sofistas, Platão opõe não
uma afirmação de verdade simplória e dogmática. A busca de uma condição
incondicionada para o conhecimento, o encontro com o absoluto fundamento da
verdade (que só então se distingue do erro e da fantasia), é para Platão não o
ponto de partida, mas a meta a ser alcançada. Porém só se chegará aí depois que
se atravesse todo o campo do possível. O absoluto, o não-hipotético, habita
além das últimas hipóteses.
Nos
primeiros diálogos — os da "fase socrática" — já se buscava algo de
idêntico e uno que estaria por trás das múltiplas maneiras de se entender
conceitos como "temperança" ou "coragem". Mas esse mesmo
que existiria em diversas coisas não era ainda uma entidade metafísica, algo
que existisse em si e por si. Em Eutífron
é que as palavras ideias e eidos aparecem empregadas, pela primeira
vez, numa acepção propriamente platônica. Ambas aquelas palavras são derivadas
de um verbo cujo significado é "ver" e têm, assim, como acepção
originária, a de "forma visível" (primariamente no sentido de
"formato" ou "figura"). Ao que parece, já estavam
integradas ao vocabulário dos pitagóricos, com o sentido de modelo geométrico
ou figura.
Nos diálogos
da primeira fase, que parecem reproduzir as conversações do próprio Sócrates, a
procura do mesmo, além de ficar restrita à busca de um denominador comum no
nível da significação das palavras, limitava-se a debates sobre questões
morais. Esses debates não eram conclusivos: deixavam os problemas enriquecidos
e revoltos, com isso denunciando a fragilidade ou a parcialidade dos pontos de
vista confrontados. Ao chegar a esse ponto, a dialética socrática podia dar-se
por satisfeita, na medida em que seu objetivo seria o dramático embate das
consciências, condição para o autoconhecimento. Já em Platão — a partir da fase
de Fêdon — a dialética vai
progressivamente perdendo o interesse humano imediato e a dramaticidade, para
se converter, cada vez com mais apoio em recursos matemáticos, num método
impessoal e teórico, que visa aos próprios problemas e não apenas à sondagem da
consciência dos interlocutores. Torna-se uma pesquisa das interligações entre
as ideias, chegando, na fase final do platonismo, a ser considerada um tipo de
"métrica" ou arte das medidas e das proporções.
"Admitamos
pois — o que me servirá de ponto de partida e de base — que existe um Belo em
si e por si, um Bom, um Grande e assim por diante." Essas palavras, que Platão
faz Sócrates dizer em Fédon,
representam uma mudança de direção da investigação filosófica em relação aos
pensadores do passado. A explicação do mundo físico, desde os filósofos da
escola de Mileto, convertia-se na procura de uma situação primordial que
justificaria, em seu desdobramento, a situação presente do cosmo. Antes, a água
(Tales), o ilimitado (Anaximandro), o "tudo junto" (Anaxágoras) —
depois, devido a diferentes processos de transformação ou de redistribuição
espacial, o universo em seu aspecto atual. A explicação filosófica
representava, assim, o encontro de um princípio (arque) originário, e era, por isso mesmo, movida por interesse
arcaizante, de busca das raízes, de desvelamento das origens. Com Platão essa
índole retrospectiva e "horizontal" da investigação é substituída
pela perspectiva "vertical" e ascendente que propõe, seguindo a
sugestão do método dos geômetras, as ideias como causas intemporais para os
objetos sensíveis. O que é belo, mais ou menos belo, é belo porque existe um belo
pleno, o Belo que, intemporalmente, explica todos os casos e graus particulares
de beleza, como a condição sustenta a inteligibilidade do condicionado.
Através dos
diálogos, Platão vai caracterizando essas causas inteligíveis dos objetos
físicos que ele chama de ideias ou formas. Elas seriam incorpóreas e
invisíveis — o que significa dizer justamente que não está na matéria a razão
de sua inteligibilidade, reais, eternas e sempre idênticas a si mesmas,
escapando corrosão do tempo, que torna perecíveis os objetos físicos. Merecem,
por isso mesmo, o qualificativo de "divinas", qualificativos que os
filósofos anteriores já atribuíam à arque.
Perfeitas e atáveis, as ideias constituiriam os modelos ou paradigmas quais as
coisas materiais seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias. Seriam, pois,
tipos ideais a transcender o plano mutável dos objetos físicos.
A afirmativa
de que o mundo material se torna compreensível através da hipótese das ideias
deixa, porém, em suspenso um problema decisivo: o da possibilidade de se
conhecer essas realidades invisíveis e incorpóreas. Com efeito, o que
inicialmente foi tomado como hipótese explicativa — a existência do mundo das
ideias — não basta a si mesmo. É preciso que se admita um conhecimento das
ideias incorpóreas que antecede ao conhecimento fornecido pelos sentidos, que
só alcançam o corpóreo. Em Mênon,
Platão expõe a doutrina de que o intelecto pode apreender as ideias porque
também ele é, como as ideias, incorpóreo. A alma humana, antes do nascimento —
antes de prender-se ao cárcere do corpo —, teria contemplado as ideias enquanto
seguia o cortejo dos deuses. Encarnada, perde a possibilidade de contato direto
com os arquétipos incorpóreos, mas diante de suas cópias — os objetos sensíveis
— pode ir gradativamente recuperando o conhecimento das ideias. Conhecer seria
então lembrar, reconhecer. A hipótese da reminiscência vem, assim, sustentar a
hipótese da existência do mundo das formas. Mas, por sua vez, implica outra
doutrina, que a condiciona: a da preexistência da alma em relação ao corpo, a
da incorruptibilidade dessa alma incorpórea e, portanto, a da sua imortalidade.
Essa imortalidade, de que Sócrates não teve certeza nos primeiros diálogos,
converte-se, na construção do platonismo, numa condição para a ciência, para a
explicação inteligível do mundo físico.
Mas se a
doutrina da reminiscência liga a alma às ideias e justifica que o homem as
conheça, como explicar o relacionamento entre as formas e os objetos físicos,
entre o incorpóreo e o seu oposto, o corpóreo? Essa é uma questão que o próprio
Platão levanta no diálogo Parmênides.
Antes ainda suscita outro problema, que está na base daquele e que não havia
sido esclarecido nas obras anteriores: afinal, de que há ideias?
Os exemplos
de ideias apresentados em Fédon são
extraídos ou da esfera dos valores estéticos e morais (o Belo, o Bom), ou das
relações matemáticas (o Grande). De fato, desses dois campos é que o platonismo
vai colher preferencialmente os pontos de apoio para propor um mundo de modelos
transcendentes. Isso é compreensível, uma vez que a variação de mais e menos
(mais belo, menos belo; maior, menor) parece sugerir a referência a um padrão
absoluto, a uma "justa medida" (o Belo, o Grande). Todavia, já em Crátilo, onde aparece a primeira
afirmação da transcendência das ideias, ela é feita a propósito da ideia
referente a um objeto físico, a um artefato, a naveta. Em Parmênides o problema
ainda mais se aguça ao fazer-se a pergunta: há uma forma correspondente ao fogo
(realidade física e natural), uma forma correspondente ao lodo (objeto físico
"inferior")? Valores negativos ou realidades abjetas teriam um modelo
no plano das essências divinas? O que está aí em questão é, na verdade, o
significado que o mundo físico tem enquanto
corpóreo; se é cópia, o que lhe confere o estatuto de cópia, distanciando-o
do arquétipo? Se sua causa inteligível é o mundo das ideias, o que constitui
isto que lhe dá concreção e materialidade?
Num primeiro
momento, de dialética ascendente, impulsionada pelo método inspirado no
procedimento dos matemáticos, Platão deixara de lado, provisoriamente, a
natureza do sensível enquanto sensível. Mas na etapa final de seu pensamento,
animada também por uma dialética descendente que procura vincular o inteligível
ao sensível, essa questão assume crescente interesse, motivando a cosmogonia e
a física de Timeu. Também no
ensinamento oral dessa fase — segundo o depoimento de Aristóteles — Platão
ocupou-se do mesmo problema, embora tratando-o noutra direção, ao investigar as
ideias relativas aos objetos de arte.
A relação
existente entre as formas e os objetos físicos que lhe são correspondentes é a
outra grande questão levantada por Parmênides. Platão pretende resolvê-la
através de duas noções fundamentais: a de participação e a de imitação. Em
Parmênides o próprio Platão formula muitas das objeções que pensadores
posteriores (inclusive Aristóteles) farão a essas noções. E, se ao longo Ida
evolução de seu pensamento, permanentemente aprofundou, esclareceu ou refez o
significado de participação e de imitação, lais abriu mão da transcendência das
ideias.
A doutrina platônica
da imitação (mímesis) difere da que
os pitagóricos propunham desde o século VI a.C. Desenvolvendo um pensamento
fundamentado nas investigações matemáticas, os primitivos pitagóricos afirmavam
que "todas as coisas são números", entendendo como números realidades
corpóreas, constituídas por unidades indecomponíveis que eram ao mesmo tempo o
mínimo de corpo e o mínimo de extensão. As coisas imitariam os números, para os
pitagóricos, numa acepção plenamente realista: os objetos refletiriam
exteriormente sua constituição numérica interior. A mímesis, no pitagorismo, apresentara portanto um caráter de
imanência: o modelo e a cópia estão ambos no plano concreto; são as duas faces
— interna (apreendida racionalmente) e externa (apreendida pelos sentidos) — da
mesma realidade. Com Platão a noção de imitação adquire acepção metafísica,
como lógica decorrência do "distanciamento" entre o plano sensível e
o inteligível. Os objetos físicos — múltiplos, concretos e perecíveis —
aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais, incorpóreos e perenes.
O mundo sensível seria uma imitação do mundo inteligível, pois todo o universo,
segundo a cosmogonia de Timeu, seria
resultante da ação de um divino artesão (demiurgo) que teria dado forma, pelo
menos até certo ponto, a uma matéria-prima (a "causa errante"),
tomando por modelo as ideias eternas. A arte divina teria produzido as obras da
natureza e também as imagens dessas obras (como o reflexo do fogo numa parede).
Analogamente, a arte humana produz de dupla maneira: o homem tanto constrói uma
casa real como, na condição de pintor, pode reproduzir num quadro a imagem dessa
casa. O artista aparece por isso, em A
República, como "criador de aparências". O problema da imitação
torna-se mais complexo quando referido aos objetos de arte, objetos
artificiais, artefatos. Faz-se então a distinção entre graus intermediários de
imitação: o objeto natural imita a ideia que lhe é correspondente e a arte
imita, por sua vez, aquela imitação. A relação cópia-modelo usada
metafisicamente por Platão para explicar a relação sensível-inteligível
reaparece assim em sua concepção estética e justifica as restrições feitas aos
artistas em A República.
Particularmente os poetas, como Homero, são aí representados como fazendo
"simulacros com simulacros, afastados da verdade". No caso das artes
plásticas, Platão recusa a utilização dos recursos da perspectiva, que então se
difundiam e lhe pareciam a sofística na arte, pois acentuavam a "ilusão de
realidade". A arte imitativa deveria preservar o caráter de cópia de seus
produtos, não querendo confundi-los com os objetos reais. Outro caminho para as
artes plásticas seria tentar reproduzir a verdadeira realidade — das formas
incorpóreas —, o que coloca Platão, segundo alguns intérpretes, como
antecipador da arte abstrata.
---
Os Pensadores: Platão. Nova Cultural. São Paulo, 1999, págs. 17-23.
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