quinta-feira, 21 de julho de 2016

O Novo Testamento é falso?

O Novo Testamento é falso?
Tradução e adaptação de Gabriel Romeiro
Em 1947, um pastor beduíno descobriu uma gruta cheia de jarras compridas. Dentro delas, havia alguns rolos de manuscritos que logo foram entregues a estudiosos. Estes Manuscritos, conhecidos como do Mar Morto, praticamente revolucionaram o estudo da Bíblia, principalmente do Novo Testamento. Para um dos maiores estudiosos desses Manuscritos, o professor John Marco Allegro, Jesus não morreu na cruz e talvez nem mesmo tenha existido. E ele defende ainda a tese de que todas as religiões nasceram dos cultos de fertilidade. E de que Deus criou o mundo como um ato qualquer de procriação de um animal.
Jesus Cristo não morreu na cruz. Talvez, nem sequer tenha existido, como acreditam os cristãos e a maior parte dos historiadores das origens do cristianismo. O Cristo crucificado é um símbolo, que representa um cogumelo alucinatório. As pessoas que comiam desse cogumelo, da espécie Amanita Muscaria, tinham a visão de Deus e adquiriam a sabedoria. Os primeiros cristãos eram comedores da amanita muscaria.
Essa tese foi defendida há dois anos, por um ex-professor da Universidade de Manchester, na Inglaterra, John Marco Allegro, num livro intitulado The Sacred Mushroom and the Cross (O Cogumelo Sagrado e a Cruz). O ponto de partida da tese é que todas as religiões do mundo nasceram de cultos da fertilidade. E, no princípio desses cultos, está sempre a ideia de que o ato pelo qual Deus criou o mundo é como qualquer ato de procriação de um animal: um ato sexual. O esperma celeste da divindade fecundou o útero da Terra-mãe e daí o mundo foi criado. O cristianismo, por menos que pareça, na opinião de Allegro também se baseia sobre esse princípio. A utilização de drogas alucinatórias, sobretudo do cogumelo, também era comum nos cultos da fertilidade. Alguns deles, inclusive, ainda existem na Ásia Central e no México. Mas, qual a relação entre Jesus e o cogumelo, entre o cristianismo e os cultos da fertilidade? Para Allegro, não é difícil encontrá-la. Basta que a gente renuncie a ler ingenuamente o Novo Testamento (a parte genuinamente cristã da Bíblia) e passe a considerá-lo o que ele é na realidade: um livro esotérico escrito para um pequeno grupo de iniciados num determinado culto da fertilidade, e não um livro para os fiéis de uma religião de grande popularidade, como o cristianismo se transformou no fim do Império Romano. Visto "corretamente", o Novo Testamento revela sua realidade profunda desde as primeiras páginas. O menino Jesus, que nasce de uma virgem, sem a intervenção do sêmen masculino, é o símbolo de um cogumelo, que brota da terra sem que haja nenhuma semente visível. A palavra "Cristo", que em grego significa "Ungido" e é tradução literal da palavra hebraica "Mashiah" (de onde vem "Messias"), refere-se não a uma unção com óleo, mas a um besuntamento com sêmen. E a "purificação do pecado", expressão frequente no Novo Testamento, designaria o êxtase obtido pelo cristão através do cogumelo.
Na base dessas teses, está o maior achado arqueológico do século 20: os Manuscritos do Mar Morto. Allegro tinha apenas trinta anos de idade quando, em 1952, foi convidado a participar da equipe internacional de oito especialistas, encarregada de preparar a publicação dos manuscritos. Referindo-se a eles, Allegro escreveu: "Agora é possível recolocar o cristianismo em suas verdadeiras perspectivas históricas e culturais. Ele é um episódio da religião dos Magos, que se estendia da Mesopotâmia até Roma". Em outras palavras, para Allegro, o cristianismo tem sua origem imediata nos Manuscritos do Mar Morto e na comunidade à qual eles pertenciam. Como foram descobertos esses Manuscritos?
Tudo começou na primavera de 1947. Dois pastores beduínos estavam com seus rebanhos de ovelhas e cabras na margem noroeste do mar Morto, numa região conhecida pelo nome de Qumran, quando um animal se desgarrou. Mohammed el-Dib, um dos pastores, saiu atrás da cabra perdida e, julgando uma certa hora que ela estivesse escondida na fenda de um rochedo, lançou uma pedra contra ela. Mas, ao invés do barulho seco de uma pedra contra outra, o que Mohammed ouviu foi um som oco, que se repetia como um eco. Percebendo estar diante de uma gruta, o pastor fugiu com medo das hienas e chacais que poderiam habitá-la. Depois, entretanto, atraído pela possibilidade de descobrir um tesouro, voltou ao lugar e entrou na gruta. Ouro ele não achou, mas encontrou um monte de rolos de couro dentro de jarras compridas, deitadas no chão da gruta.

A caminhada dos 12 rolos
Estava descoberto o primeiro lote dos Manuscritos do Mar Morto. Das mãos dos beduínos, eles passaram rapidamente para as de um antiquário da cidade de Belém. E lá, uma parte deles foi adquirida pela Universidade Hebraica de Jerusalém, e outra pelo metropolita sírio-ortodoxo, também de Jerusalém. O professor E. L. Sukenik, da Universidade Hebraica, era um grande conhecedor de escritas orientais antigas, e logo percebeu que estava diante de peças raríssimas e de valor incalculável. Preferiu, entretanto, não revelar sua descoberta ao mundo, esperando obter mais manuscritos a baixo preço, antes que seu valor fosse conhecido pelos beduínos.
Os manuscritos do metropolita sírio-ortodoxo fizeram uma caminhada maior. Preocupado em descobrir seu valor, o metropolita os entregou a diversos especialistas, que não se sentiram seguros para dar um julgamento definitivo. Finalmente, em fevereiro de 1948, eles foram entregues à Escola Americana de Pesquisas Orientais, de Jerusalém. Lá, um jovem professor, John Trever, constatou que um dos rolos trazia um pedaço do livro do profeta Isaías, e era mais antigo do que qualquer outro manuscrito do profeta até então conhecido. Sua data: século l a.C. Antes de publicar suas conclusões, Trever ainda consultou outras autoridades no assunto. O anúncio da descoberta só foi feito em 11 de abril de 1948, um ano depois que Mohammed el-Dib saíra à procura de sua cabra. Sem razões para guardar segredo a Universidade Hebraica anunciou sem demora que também possuía um lote dos preciosos Manuscritos do Mar Morto. Em 1954 ela conseguiu adquirir o lote do metropolita sírio, ficando assim de posse de toda a descoberta de Mohammed el-Dib. Ela era formada por sete rolos: dois com o livro do profeta Isaías e os cinco restantes com obras relativas a uma comunidade semelhante aos mosteiros cristãos. Entre estas últimas, havia duas de particular importância: a Regra da Comunidade e a Ordem da Guerra entre os Filhos da Luz e os Filhos das Trevas, apresentando os princípios teológicos para justificar a organização da comunidade.

O mais antigo manuscrito hebreu
A guerra de independência de Israel, que estourou em maio de 1948, fez com que a primeira pesquisa arqueológica na gruta fosse adiada para o início do ano seguinte. Um mês de trabalho nela bastou, entretanto, para que fossem confirmadas as datas dos rolos, já estabelecidas pela análise de sua escrita, e para que se descobrissem mais setenta fragmentos de textos bíblicos, apócrifos, apocalípticos e litúrgicos. Mas as surpresas do mar Morto não pararam por aí.
No fim de 1951, um antiquário de Belém ofereceu um lote de manuscritos à Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém, declarando que eles vinham da gruta descoberta quatro anos antes no mar Morto. O diretor da escola, padre Roland de Vaux, percebeu logo que o antiquário queria enganá-lo.
Ele próprio, de Vaux, participara da pesquisa arqueológica da gruta descoberta em 1947, e podia ver facilmente que estava agora diante de um material escrito por pessoas diferentes das que escreveram os primeiros Manuscritos encontrados no mar Morto. Depois de uma pesquisa delicada, que incluiu longas transações com os beduínos responsáveis pela nova descoberta, de Vaux descobriu que os manuscritos oferecidos pelo antiquário vinham de uma gruta, também junto ao mar Morto, mas a dezoito quilômetros ao sul da primeira. Ela ficou conhecida pelo nome de gruta de Murabaat, por causa da região em que está situada. Como essa região passara a pertencer à Jordânia depois da partilha da Palestina e da independência de Israel em 1948, de Vaux informou imediatamente ao Museu Palestino de Jerusalém, que daí para frente se tornou proprietário de todos os manuscritos que vierem a ser encontrados.
Os manuscritos de Murabaat são na sua grande maioria do fim do século l d.C. e início do século 2 d.C. Incluindo textos bíblicos — de particular importância é um rolo com os livros dos pequenos profetas — cartas e contratos, escritos em grego, hebraico e aramaico, eles pertenceram ao exército do líder religioso e militar Simão bar Kochba, que comandou uma revolta judaica contra o Império Romano entre 132 e 135 d.C. Mas, no meio dos textos de Murabaat, foi encontrado também o mais antigo manuscrito hebreu até hoje conhecido. Trata-se apenas de uma lista de nomes e números que deve datar do século 8 ou 7 a.C. Embora seu conteúdo seja de valor relativo, esse manuscrito tem importância inestimável para o estudo da escrita antiga, a paleografia.
O meio científico de Jerusalém estava intensamente ocupado com a gruta de Murabaat quando, no início de 1952, os beduínos apareceram com novos manuscritos antigos. E dessa vez eles vinham de uma gruta vizinha à que fora descoberta em 1947. Convencidas agora de que o mar Morto ainda deveria ter muito para oferecer, as escolas arqueológicas de Jerusalém resolveram se unir, debaixo do controle do Museu Palestino, para fazer uma pesquisa sistemática e ampla na região. Até 1956, as surpresas não pararam. O resultado foi a descoberta de mais dez grutas só na região de Qumran, onde fora descoberta a primeira, além de outras em Khirbet Mird, Engeddi e Massada, sempre junto ao mar Morto.
Durante vinte séculos, o mar Morto abrigara verdadeiras bibliotecas, que entregavam ao nosso mundo cerca de seiscentos manuscritos mais ou menos completos e milhares de fragmentos. A aridez, que torna tão difícil a vida na região, foi a responsável pela conservação dessas obras da antiguidade. Enquanto novas grutas e manuscritos eram descobertos, o Museu Palestino e a Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém iniciavam, em 1951, uma campanha de escavações numas ruínas existentes em Qumran, que alguns arqueólogos do século passado tinham identificado com os restos da cidade bíblica de Gomorra. Na realidade, eram ruínas de uma espécie de mosteiro judeu, centro da comunidade responsável pelos manuscritos das onze grutas de Qumran À medida que avançava a pesquisa arqueológica, confirmava-se uma hipótese já lançada desde a descoberta dos primeiros manuscritos.
Eles pertenciam à comunidade dos essênios, uma seita judaica da época de Jesus, tão importante quanto os fariseus e os saduceus, mas em relação à qual o Novo Testamento não faz nenhuma referência explícita. Tudo o que se sabia até então sobre os essênios era através das referências do filósofo Fílon de Alexandria (século l a.C.) e do historiador Flávio José (século l d. C.), ambos judeus, e do historiador romano Plínio (século l d.C).

Uma comunidade de mágicos
Para John Allegro, os essênios são a chave do conhecimento da verdadeira natureza do cristianismo. Nesse caso, quem são os essênios? Essa pergunta é respondida por Allegro: "Eles eram conhecidos por sua extrema piedade. Viviam em territórios comunais, mais ou menos ligados a cidades e aldeias, através de toda a Judéia, mas se mantinham separados de seus compatriotas... Os essênios, leitores assíduos da Bíblia, procuravam em cada palavra das Escrituras uma mensagem aplicável à sua própria época. Praticavam o batismo e uma certa forma de comunismo, partilhando seus bens materiais. Constituíram também um fundo público destinado ao tratamento dos doentes e dos velhos. Interpretavam os fenômenos naturais como 'sinais' e gostavam de predizer o futuro... Os essênios eram conhecidos por seu poder de cura. Isso confirmaria uma hipótese lançada há muito tempo sobre o sentido de seu nome.
Com efeito, 'essênio' poderia vir de uma palavra sumérica que significava 'adivinho', e que ficou na língua acádica, de lá passando para o aramaico e outras línguas semitas com um sentido um pouco diferente: 'aquele que realiza prodígios. Ora, o médico dos tempos antigos era antes de tudo um mágico: aliava um conhecimento rudimentar da fisiologia ao emprego das plantas medicinais, mas sobretudo conhecia os ritos secretos capazes de expulsar os demónios que perturbam o corpo e o espírito dos homens".
Partindo dessa descrição, que não encontra maiores objeções da parte dos outros especialistas nos Manuscritos do Mar Morto, a não ser quanto à interpretação da palavra 'essênio' como vinda do sumério 'adivinho' (os outros especialistas, em grande maioria, preferem interpretar 'essênio' a partir de uma raiz genuinamente semita, que significa 'fiel'), Allegro mostra as relações existentes entre os Manuscritos e o Novo Testamento: "A oposição entre 'as trevas e a luz', entre 'o bem e o mal', tão claramente exposta no quarto Evangelho e em muitos outros lugares, aparece agora como inspirada diretamente no mesmo pensamento encontrado nos textos de Qumran. O mesmo acontece com fórmulas como os 'homens de boa vontade' ou os 'simples de espírito', também encontradas nos Manuscritos".
Não seria aqui o lugar de fazer o levantamento completo das relações existentes entre o Novo Testamento e os textos essênios. Elas são muitas e todos os grandes especialistas no assunto estão de acordo com Allegro em reconhecer sua existência. É dessas relações, portanto, e de sua visão do que eram os essênios, que Allegro tira a seguinte conclusão: "Doravante, devemos dizer que os trabalhos sobre o Novo Testamento terão de levar em conta em primeiro lugar as conclusões tiradas do estudo dos Manuscritos essênios...
Porque, com o essenismo, a coisa está suficientemente esclarecida. Estamos à margem não apenas de uma religião particular — no caso o judaísmo ortodoxo — mas da religião propriamente dita. Estamos no mundo da magia negra, da necromancia, dos ritos de sacrifício, das técnicas secretas de ventríloqua".

Popularidade e pesquisa
John Allegro tornou-se o mais popular dos especialistas dos Manuscritos do Mar Morto, desde que, em 1966, publicou em Planeie o artigo, do qual acabamos de fazer várias citações. Aliás, esse trabalho foi também publicado em inglês na revista Harpefs. O lançamento de The Sacred Mushroom and the Cross, em 1970, consagrou sua popularidade. Em apenas três meses saíram quatro edições e o Sunday Mirror, de Londres, publicou o livro em capítulos. A popularidade alcançada por Allegro só encontrou paralelo no silêncio que os outros especialistas devotaram a suas teses.
Nenhuma revista especializada se dignou fazer um comentário detalhado a respeito delas. Talvez, em toda a história das pesquisas orientais, nenhum orientalista consagrado tenha esbarrado em tão espesso muro de indiferença. Para seus colegas, Allegro está sacrificando a seriedade e o rigor da pesquisa ao desejo de popularidade.
Se os outros especialistas em Qumran tivessem publicado críticas às teses de Allegro, provavelmente elas não seriam tão unânimes quanto foi o seu silêncio. Simplesmente porque também não há acordo entre eles sobre todos os detalhes de como se deve interpretar o que eram os essênios e sobre suas relações com o cristianismo.
Mas, eles acham que, depois de vinte anos de pesquisa, há alguns dados que já são conquistados em relação a esses problemas. E os dados conquistados não permitem, de modo algum, encarar a comunidade essênia como uma seita esotérica de mágicos, que viveria à margem do judaísmo e até mesmo da religião. Os essênios, para esses especialistas, devem ser entendidos dentro do contexto da religião judaica, e particularmente dos conflitos que o judaísmo viveu no século 2 a.C.
Essa história é hoje reconstituída a partir das obras de Flávio José, dos dois livros dos Macabeus — que fazem parte do Antigo Testamento cristão, mas não da Bíblia hebraica — e dos próprios documentos do mar Morto.

Luta pela independência
Quando Alexandre Magno morreu, em 323 a.C., o Império Grego por ele ampliado foi dividido por seus generais. A Judéia ficou então na fronteira do reino egípcio, governada pela dinastia dos Lágidas, com o reino sírio, governado pela dinastia dos Selêucidas, sendo frequentemente disputada entre as duas partes. Até 197 a.C., entretanto, o predomínio na região coube aos Lágidas do Egito.
Em toda a história do mundo, as religiões sempre sofreram injunções políticas. Para os judeus daquela época, essas injunções eram particularmente ameaçadoras, porque seu governo imediato estava entregue ao sumo sacerdote, que funcionava como vassalo dos reis gregos do Egito. Os Lágidas, entretanto, mantiveram-se distantes e relativamente respeitosos diante da religião e da cultura judaica. Um deles, inclusive, é responsável pelo primeiro passo para a transformação da Bíblia em livro de importância universal. Com efeito, foi a pedido do rei lágida Ptolomeu II que a Bíblia foi traduzida para o grego no início do século 3 a.C., saindo assim dos limites da língua hebraica, pouco conhecida internacionalmente.
A situação mudou completamente, quando a Judéia passou para o domínio do reino sírio. A política dos reis selêucidas era de aniquilação de todas as culturas e religiões autóctones, que deveriam ser substituídas pela religião e a cultura grega. Os judeus também teriam de se submeter a essa política.
Foi aí que começou a crise. A dinastia sumo sacerdotal governante na Judéia era a dos Oníadas, que pertenciam ao clã Sadocita, descendente de Sadoc, sacerdote do Templo de Davi. No início do sumo sacerdócio de Simão II, o primeiro que governou sobre os selêucidas, o Templo de Jerusalém tinha sido restaurado e a religião judaica passara por um momento de profunda revivescência. Mas, logo que Simão II morreu começaram as divisões.
Seu sucessor por direito era seu filho Onias III. Onias, porém, era do partido pro-lágida, enquanto seu irmão Jasão era pró-selêucida. E, como os selêucidas mandavam na Judéia, Jasão acabou conseguindo se tornar sumo sacerdote por nomeação do rei. Com Jasão no sumo sacerdócio, começou a tentativa de helenização do povo judeu.
A queda de Onias III e a nomeação de Jasão marcou uma ruptura profunda na tradição judaica. Pela primeira vez, depois de séculos, o sumo sacerdote era indicado por um rei estrangeiro. O precedente estava aberto. Poucos anos depois, outro sacerdote, Menelau, da família dos Tobíadas, conquistava as boas graças do rei selêucida Antíoco IV e conseguia se fazer nomear sumo sacerdote, depondo Jasão. Era a segunda ruptura: a família dos Tobíadas não pertencia ao clã Sadocita, que assim perdia o sumo sacerdócio.
Tentando levar adiante o processo de helenização, Menelau iniciou uma grande perseguição contra os grupos que resistiam à cultura grega e aqueles que eram do partido pró-lágida, começando por matar o ex-sumo sacerdote Onias III. Foi aí que estourou a revolta.

Quando surgiram os essênios?
O ano era o de 167 a.C. e o líder da revolta, Matadas, sacerdote da família dos Asmo-neus. Matatias morreu um ano após o início da luta e foi sucedido na liderança por seu filho, Judas Macabeu. Entre os grupos que o apoiavam estava o dos hassidim, composto por elementos tradicionalistas em matéria de religião, muitos dos quais só aceitavam um sumo sacerdote que fosse do clã Sadocita. Tanto assim que, em 162 a.C., quando o sadocita Alcimo sucedeu a Menelau no sumo sacerdócio, os hassidim abandonaram a luta ao lado de Judas Macabeu. Alcimo, entretanto, fora nomeado pelo rei selêucida Demétrio I, e continuou o processo de helenização. Os hassidim acabaram rompendo com ele e voltaram para o lado dos revoltosos.
O apoio dos hassidim à revolta liderada pelos asmoneus nunca foi muito firme. A ruptura definitiva, em todo caso, só começou a se aprofundar depois da morte de Judas, quando seu irmão Jônatas assumiu a liderança da luta. Em 152 a.C., um personagem chamado Alexandre Balas aparece na Síria reclamando o trono ocupado por Demétrio I. Jônatas resolve aproveitar da situação. Toma o partido de Alexandre, ajuda-o a conquistar o trono e recebe como recompensa a nomeação para o sumo sacerdócio e a autonomia para a Judéia. Jônatas ficou, assim, na situação contraditória de líder da independência de seu povo, mas sumo sacerdote por designação do rei suzerano. Era uma situação que não podia agradar aos hassidim, pois mais uma vez o clã Sadocita, ao qual não pertenciam os asmoneus, ficava de fora do sumo sacerdócio.
O sumo sacerdócio, conquistado pelos asmoneus através de Jônatas-, foi consagrado pelo direito através de seu irmão Simão. Em 145 a.C., com a morte de Alexandre Balas, o trono selêucida volta a ser disputado, agora entre Demétrio II, filho de Demétrio I, e Antíoco VI, filho de Alexandre, que ainda era criança, mas tinha o apoio do general Trífon, Jônatas tenta explorar o conflito para conseguir a independência definitiva da Judéia, mas é preso por Trífon, que o mata em 142 a.C. Simão o sucede no sumo sacerdócio e consegue levar a cabo a luta pela independência. Em 141 a.C., é expulsa da Judéia a última guarnição do reino grego da Síria. No ano seguinte, jogando com a popularidade alcançada por sua família em mais de 25 anos de luta, Simão consegue o reconhecimento oficial do sumo sacerdócio, para si e para seus descendentes, por uma assembleia de sacerdotes e leigos. O clã Sadocita nunca mais voltará ao poder.
Os especialistas nos Manuscritos do Mar Morto não estão inteiramente de acordo quanto à época em que surgiram os essênios. Alguns acham que foi no momento em que Jônatas se tornou sumo sacerdote. A maioria, entretanto, prefere a época da consagração do sumo sacerdócio de Simão e seus descendentes, em 140 a.C. De qualquer forma, havendo uma diferença de apenas doze anos entre os dois fatos, ambos poderiam corresponder às conclusões das pesquisas arqueológicas que colocam a construção do Mosteiro dos Essênios, em Qumran, no início da segunda metade do século 2 a.C. O certo é que os essênios surgiram de uma divisão no partido dos hassidim, na época em que os asmoneus assumiram o sumo sacerdócio, seja de fato com Jônatas, seja de direi' to com Simão.
Um dos grupos, que resultou nos fariseus do tempo de Jesus, embora se mantendo em oposição aos asmoneus, preferiu aceitar a decisão da maioria e se integrou no establishment. Transformou-se posteriormente num grupo de grande importância e foi o que deixou a marca mais profunda sobre a religião judaica até os dias de hoje. O outro grupo, mais radical, queria combater os asmoneus até a restauração do clã Sadocita no sumo sacerdócio. São os essênios. Eles foram duramente perseguidos pela dinastia no poder e acabaram se refugiando no deserto, junto ao mar Morto.

Até a vinda do filho de Sadoc
Os essênios se consideravam exilados em sua comunidade de Qumran. Fundada por um sacerdote sadocita, conhecido entre seus fiéis pelo título de Mestre de Justiça, a comunidade achava que o Templo de Jerusalém estava profanado, que seus sacerdotes eram falsos e usurpadores. No fim dos tempos, o verdadeiro sacerdócio sadocita seria restaurado e o falso sacerdócio aniquilado para sempre. Enquanto isso, a comunidade essênia mantinha uma organização baseada na teocracia do verdadeiro sacerdócio. Em seus conselhos e rituais, os sacerdotes sempre tinham a precedência.
E o Messias esperado não era mais o rei, filho de Davi, mas o sacerdote, descendente de Sadoc. Em síntese, os essênios eram um contra-Israel, organizado por um contra-sa-cerdócio, mas sé julgando o verdadeiro Israel, comandado pelo único sacerdócio legítimo.  Sua atitude para com o Mestre de Justiça era próxima da adoração. A fé em seus ensinamentos valia a salvação. Moisés tinha sido o mediador da Antiga Aliança de Israel; o Mestre de Justiça instituíra a comunidade da Aliança Renovada, revelara o verdadeiro sentido das Escrituras, estabelecera uma  nova  disciplina  para  preparar  a era messiânica. Entre Jesus e o Mestre de Justiça, entre os essênios e os primeiros cristãos, há muitos traços paralelos. Mas tudo isso está muito longe do esoterismo e da magia que  Allegro vê  nos Manuscritos  do Mar Morto.

Revolucionários e retrógrados
As críticas dos colegas de John Allegro, em todo  caso,   não  parariam   por   aqui.   Eles acham que também existem dados suficientes já conquistados, que impedem uma aproximação muito estreita entre o cristianismo e  os  essênios.   Para  começar,  os  essênios ainda esperavam  o Messias,  sacerdote da família de Sadoc; os cristãos, entretanto, já tinham recebido o seu, e ele era Jesus, filho de Davi. Os essênios esperavam a purificacão do Templo de Jerusalém; o Evangelho de São João, livro do Novo Testamento onde são encontrados os mais próximos paralelos com os Manuscritos ,do Mar Morto, diz a certa altura: "Vem a hora em que nem neste monte, nem em Jerusalém, adorareis o Pai. . . Vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade"  (capítulo 4, versículos 21 e 23).
Os essênios cumpriam com o maior rigor as leis sacerdotais de purificação, de separação dos pecadores e de distinções hierárquicas; segundo o Novo Testamento, Jesus tomava refeições com pecadores e prostitutas, apoiou  seus discípulos quando' censurados pelos fariseus por não terem cumprido o rito de lavar as mãos antes de comer, achando enfim que a antiga lei estava superada. Em síntese o cristianismo era um movimento religioso revolucionário,   no sentido em  que rompia com as antigas estruturas, enquanto os essênios eram retrógrados, uma vez que sua meta, a nova era messiânica, seria pura e simplesmente a restauração dos padrões religiosos anteriores às tentativas de helenização do judaísmo no século 2 a.C.
Isso também está muito longe de um cristianismo encarado apenas como um essenismo escamoteado. A partir desses dados, inclusive, é possível compreender por que" o Novo Testamento é tão severo em seus ataques a fariseus e saduceus, enquanto deixa os essênios sem nenhuma menção explícita. Os saduceus, no tempo de Jesus, representavam a casta sacerdotal e seus seguidores, que sucederam aos asmoneus, depois que a Judéia voltou a perder a independência, com a chegada das tropas romanas, em 63 a.C, Os fariseus, por seu lado, tinham se tornado imensamente populares e se constituíam no grupo que tinha maior força para barrar a expansão do cristianismo primitivo. É natural que o Novo Testamento, escrito missionário e por isso mesmo polemico, voltasse suas baterias contra esses dois grupos. Os essênios, entretanto, fechados em seu conservadorismo, por maior influência que pudessem ter, não chegavam a ameaçar.
É evidente que John Allegro não aceita essa reconstrução histórica, que em suas linhas gerais tem a aprovação de todos os seus colegas. Para ele, Jesus e o Mestre de Justiça são uma só pessoa e essa é a única realidade histórica que pode ser atribuída ao fundador do cristianismo, além de sua função de símbolo do cogumelo sagrado. E, para justificar seu desacordo com os outros especialistas, Allegro faz uma denúncia grave. Acusa seus colegas de estarem escondendo a realidade. Eles são poucos e estão todos vinculados a Igrejas cristãs, seja à católica, seja à protestante. A revelação completa dos Manuscritos do Mar Morto, que comprovaria em definitivo as teses de Allegro, provocaria uma mudança completa na visão do cristianismo e obrigaria as Igrejas a uma reformulação total, senão à morte.
E, para fundamentar sua denúncia, Allegro argumenta que, em 1966, apenas os Manuscritos descobertos na primeira gruta de Qumran tinham sido publicados oficialmente. Por que o atraso na publicação do resto?
A resposta não se fez demorar. Jean Carmignac, que não faz parte da equipe encarregada da publicação oficial dos Manuscritos, mas é diretor de uma revista especializada no assunto, acusou Allegro de também ser responsável pelo atraso. Desde 1953, ele estava encarregado da publicação dos Manuscritos da gruta quatro de Qumran, entre os quais havia os textos bíblicos mais antigos descobertos até hoje (fragmentos do livro de Samuel, do profeta Jeremias e do Êxodo, todos de cerca de 200 a.C.),.e não tinha levado sua missão a cabo.
De fato, Allegro só publicou os Manuscritos da gruta quatro em 1968.
Carmignac poderia ter ido mais longe em sua interpelação e acusar Allegro de má fé. Na realidade, em 1966, já tinham saído quatro, volumes da publicação oficial dos Manuscritos, compreendendo todos os textos mais importantes e milhares de fragmentos da gruta de Murabaat e de todas as grutas de Qumran, exceção feita da quatro que estava a cargo do próprio Allegro. O que resta publicar agora são fragmentos de interpretação particularmente difícil, pois a maioria deles regula em tamanho com uma unha da mão.
Voltando à questão das relações entre o cristianismo e o essenismo, as teses de Allegro são uma revivescência de uma escola de interpretação que já fez época e deu uma grande contribuição para o orientalismo. Essa escola, preocupada sobretudo em descobrir a essência de todas as religiões nos cultos da fertilidade, conseguiu realmente abrir os olhos dos especialistas para os aspectos míticos que envolvem todas as religiões. Mas, isso não seria uma exclusividade dos essênios, e muito menos dos cristãos primitivos.
No começo do ano passado, Oscar CulImann, professor de história das origens do cristianismo nas- universidades de Basileia (Suíça) e Paris, publicou um artigo na Revue de Science Religieuse (Revista de Ciência Religiosa), publicação especializada francesa, explicando os conflitos que o Novo Testamento narra ter havido na Igreja primitiva, como consequência da heterogeneidade de origem dos discípulos de Jesus. O cristianismo era um movimento extremamente aberto e democrático.
No círculo restrito dos doze apóstolos havia um publicano, Mateus, colaborador e cobrador de impostos do Império Romano, e um zelote, Simão, que segundo os princípios de seu partido devia recusar a pagar impostos ao domínio estrangeiro. Estevão, o primeiro mártir da Igreja, era um judeu helenista, de cultura grega portanto, e Paulo, o maior missionário da Igreja primitiva, era fariseu. É muito provável que alguns essênios também tenham aderido ao cristianismo. E essa seria a explicação para a presença de temas essênios no pensamento cristão primitivo, ao lado de temas vindos de outras correntes do judaísmo e mesmo do paganismo greco-romano.
O próprio poder de cura, que Allegro considera uma característica genuína dos essênios e das seitas esotéricas, era um dado comum da cultura da época, aparecendo em vários pontos do Império Romano.
O cristianismo, depois de ter sido profundamente marcado por essa cultura, deixou-se influenciar através dos séculos pelas culturas de todos os povos que o abraçaram. Foi, aliás, a escola que Allegro tenta reviver, que fez os orientalistas descobrirem isso. Só que, atualmente, os aspectos mais radicais de suas análises já foram superados.


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Fonte:
Planeta, nº 06. Editora Três. São Paulo, fevereiro de 1973, págs. 93-107.

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