O Hebraico Moderno - Fundamentos Históricos
Por: Rifka Berezin (Prefácio)
O rápido
desenvolvimento do hebraico como língua falada, bem como o incremento dos
estudos hebraicos no Brasil, tornaram indispensável a elaboração de um
dicionário que facilitasse o acesso do leitor de fala portuguesa a esse idioma
de três mil anos de existência.
O hebraico
foi a língua de comunicação do povo judeu desde 1200 a.C. (conquista de Canaã
após o Êxodo do Egito) até 134 d.C. (revolta de Bar Kokhba contra os romanos).
O uso
corrente da língua hebraica foi interrompido pela dispersão do povo judeu,
quando este passou a viver em diversos países e a falar diferentes idiomas; o
povo já levava consigo, entretanto, a tradição de sua brilhante criação: a
Bíblia.
Durante 1700
anos a língua esteve no exílio, assim como o povo judeu e, dessa forma, ela não
pôde ter uma vida plena e um desenvolvimento normal. Ao longo de todo esse
tempo, entretanto, o hebraico continuou sendo a língua em que se orava e na
qual a Bíblia era lida nos cerimoniais públicos. Os deveres religiosos fizeram
com que praticamente todo judeu soubesse ler e escrever hebraico, o que
permitiu à língua manter a sua força e vitalidade; disso dá testemunho o
florescimento de uma extensa produção literária hebraica na diáspora.
A partir do
ano 200 a.C, aproximadamente, os judeus passaram a dedicar-se aos estudos da
Lei Oral, tendo-se iniciado a vasta literatura talmúdica em Israel e na Babilônia,
assim como a elaboração dos livros da Tossefta
e do Midrasch. Essa literatura foi
escrita parte em hebraico e parte em aramaico, uma espécie de segunda língua
dos judeus.
O hebraico
desses escritos recebe a denominação de hebraico mischnaico ou a Língua dos Sábios. Esta contém cerca de 14000
vocábulos que não se encontram na Bíblia, e utiliza parte do léxico bíblico,
que possui apenas 8000 vocábulos. A linguagem da Mischná incorpora ainda muitas palavras aramaicas e sua gramática
apresenta diversos aspectos que a aproximam desse idioma. Sua estrutura é mais
simples e seu estilo é menos poético e elaborado que o estilo da Bíblia. Essa
literatura constitui o segundo estrato ou período histórico da língua hebraica
(200 a.C. a 600 d.C).
Os
escritores judeus tinham, portanto, à disposição dois modelos dentre os quais
podiam optar: o hebraico tradicional bíblico e o hebraico mischnaico, e ao longo da Idade Média judaica (600 d.C. a 1700) o
povo judeu produziu uma vasta literatura nos diferentes países da diáspora:
Norte da África, Espanha, Itália, França e Alemanha. É o momento das Escolas de
Tradução, dos estudos da Gramática, do desenvolvimento da Filosofia, da Exegese
bíblica e das Ciências. Nos seus escritos, principalmente na Filosofia, os
judeus utilizaram também o árabe, mas, nos textos em hebraico davam
continuidade à linguagem da Mischná e
dos Midraschim. No que se refere à
poesia, entretanto, deu-se preferência à nobreza da língua do primeiro período:
o hebraico bíblico. É a fase da poesia litúrgica, o Piyut.
No final do
século XVIII teve início o movimento iluminista judaico, a Haskalá, que se prolongou pelo século XIX. A literatura dos
iluministas judeus caracterizou-se, no seu aspecto formal, pela adoção dos gêneros
literários europeus da época; do ponto de vista conceituai, contudo, houve novo
retorno às fontes bíblicas. A Haskalá,
além de lançar os alicerces do sionismo através de seus temas bíblicos, que
despertaram o anseio por uma existência livre na antiga terra, também preparou
o terreno para o renascimento do hebraico como linguagem de comunicação oral.
Os escritores da época optaram por ater-se estritamente ao vocabulário e à
gramática do texto bíblico.
Paralelamente
à Haskalá, desenvolveu-se a literatura hassídica, cujos relatos, transmitidos
oralmente pelos Rabis, em ídiche, foram mais tarde transcritos pelos discípulos
em hebraico. Neste caso, a linguagem utilizada foi o hebraico mischnaico, que
se mostrou mais próximo da fala popular.
A linguagem
da Haskalá, que se prendia
estritamente à linguagem bíblica, ia-se mostrando defasada e insuficiente para
expressar o pensamento moderno na discussão político-social e, principalmente,
no campo da ficção narrativa. Como os escritores ligados à Haskalá, ao lado dos ideais nacionalistas de retorno a Sião,
acalentavam também o ideal de transformar o velho hebraico num veículo
contemporâneo de comunicação oral, foi natural que procurassem aproveitar o patrimônio
vocabular de todas as épocas literárias anteriores, tentando adaptá-lo às novas
necessidades.
Foi o
escritor Mendele Mokher Sefarim (Schalom Yaakov Abramovitch, 1835-1917) o
iniciador da literatura hebraica moderna, quem primeiro desenvolveu essa tarefa
na Rússia. Sua principal preocupação consistiu em criar uma linguagem que
pudesse expressar a literatura hebraica de sua época, assim como o pensamento
do homem moderno. Dedicado à pesquisa do vocabulário hebraico de todos os
períodos literários, formulou uma síntese, chegando a utilizar simultaneamente
o léxico dos diferentes estratos históricos da língua numa mesma obra e, por
vezes, numa mesma oração. Mendele lançou as bases de um estilo novo na
literatura hebraica moderna.
Seu texto
utiliza material linguístico da Bíblia, do Talmude, das orações litúrgicas, da
literatura filosófica medieval e da literatura rabínica. Com Mendele Mokher
Sefarim teve verdadeiramente início o processo de ampliação da língua hebraica,
criando-se as bases para o seu uso em todos os ramos da ciência, da poética e
do pensamento. A partir desse trabalho e da criação de novos vocábulos pelos
demais membros da Haskalá, estavam
estabelecidas as condições capazes de propiciar o renascimento da fala
hebraica.
No início da
imigração dos pioneiros sionistas para a Terra de Israel, a partir de 1881, o
hebraico se reativa como língua falada a serviço da comunicação oral. Para esse
renascimento muito contribuiu Eliezer ben Yehuda (1858-1922), considerado o
pioneiro da fala hebraica na era moderna. Ben Yehuda mostrou ser possível
empregar o hebraico em todos os setores da vida prática, se usado com
persistência e coerência. Além de criar um grande número de vocábulos, logo
adotados pelos falantes do hebraico na Terra de Israel, ele elaborou o seu Grande
Dicionário, de dezesseis volumes, no qual introduziu o vocabulário hebraico de
todos os períodos históricos, acrescido dos termos inovados pêlos iluministas e
por ele mesmo.
Os grandes
propulsores da divulgação do hebraico falado na Terra de Israel foram os
professores, que lutaram para empregar o hebraico como língua oficial do ensino
de todas as disciplinas nas escolas locais, contribuindo, dessa forma, para
torná-lo o instrumento natural da comunicação.
É fato
notável que o hebraico, tendo permanecido por tantos séculos praticamente como
língua de comunicação escrita, conseguisse novamente ressurgir como língua
falada, o que não é usual, pois o desenvolvimento linguístico move-se na
direção oposta, isto é, línguas previamente usadas na comunicação oral
transformaram-se em idiomas literários ou em veículos para a comunicação
escrita. Por outro lado, o próprio processo de desenvolvimento da língua
hebraica foi diferente: tendo sido inicialmente uma língua de comunicação
popular na antiguidade, deixou de ser falada após a diáspora, fato esse que
impediu que a língua sofresse mudanças. Além disso, o repositório básico do
hebraico antigo é a Bíblia e, devido à natureza peculiar e religiosa das
Escrituras Sagradas, o léxico bíblico manteve-se imutável quanto à sua forma.
Se todas as
línguas cultas recebem influência de suas obras clássicas, no caso do hebraico
renovado, a influência da linguagem bíblica foi especialmente intensa. Isto
ocorreu, ora, devido à influência da beleza poética da Bíblia e, ora, pelo fato
de os textos sagrados permanecerem na memória coletiva da sociedade que inovou
o hebraico, já que todos os homens judeus conheciam o Pentateuco e trechos dos
Profetas que eram lidos nas sinagogas ao longo da vida judaica na diáspora.
Foi, pois,
natural a introdução maciça do vocabulário bíblico no idioma renovado.
Nos nossos
trabalhos e investigações sobre as origens históricas do hebraico moderno
pudemos comprovar o uso mais frequente do vocabulário bíblico no hebraico
renovado em relação aos outros estratos da língua . A pesquisa consistiu numa
amostragem de 200000 palavras correntes, selecionadas em jornais e periódicos
israelenses, investigadas quanto à origem histórica das mesmas. Verificamos que
61% das palavras de maior frequência presentes nesta amostragem são de origem
bíblica e as demais estão distribuídas da seguinte forma: palavras da
literatura talmúdica 16%, da literatura medieval 6%, léxico inovado 15%, e estrangeirismos
2%.
Quanto ao
léxico hebraico inovado encontramos que 56% dos vocábulos foram cunhados a
partir de radicais bíblicos. Esses resultados confirmam de modo inequívoco a
importante presença da Bíblia no hebraico moderno e o caráter da unidade da
língua hebraica.
O hebraico
bíblico forneceu ao hebraico renascido o tronco, o alicerce, e supriu o
vocabulário básico das diversas áreas da vida, relatadas nas Escrituras.
Estabeleceu também o núcleo formal dos sistemas e das formas gramaticais: a
estrutura do substantivo, as conjugações da maioria das construções verbais (Binyanim),
bem como os tempos verbais.
O segundo
período da literatura hebraica clássica, o período talmúdico ou mischnaico, contribuiu especialmente no
que diz respeito à organização da estrutura sintática do hebraico moderno, já
que o estilo do texto bíblico, altamente poético, dificilmente poderia ser
utilizado na linguagem corrente e coloquial. Esse segundo período também
contribuiu com o seu vocabulário hebraico e, ainda, com as expressões
aramaicas, largamente utilizadas na norma culta e nas obras literárias do
hebraico moderno.
O hebraico
da Idade Média judaica deu sua contribuição à língua renovada em vários campos,
principalmente no vocabulário específico e na terminologia referente à
Filosofia, às Ciências Naturais, à Medicina e em especial à Matemática e
Astronomia.
O hebraico
moderno não é, portanto, o resultado de uma evolução natural e orgânica da
língua como usualmente ocorre: seus diferentes estratos produzidos nos diversos
períodos históricos e literários contribuíram para a organização de um sistema
sincrônico, em que coexistem lado a lado elementos linguísticos de todas as
fases anteriores, indistintamente, sem haver nem mesmo a eliminação de formas
arcaicas.
Em 1890 foi
fundado na Terra de Israel o Comitê da Língua Hebraica, que se dedicou a um
trabalho organizado de renovação e ampliação da língua, criando novos
vocábulos, incorporados pelos falantes do hebraico daquele tempo. Foi esse
Comitê, dirigido por Ben Yehuda, que decidiu pela adoção da pronúncia
sefaradita do hebraico, sob a argumentação de que essa pronúncia seria mais
bela, mais suave e a que melhor lembrava a fala oriental e, talvez, a fala dos
hebreus antigos.
A Academia
de Língua Hebraica, sucessora do Comitê, é hoje uma instituição oficial de
Jerusalém e suas decisões, em matéria de terminologia, grafia, pronúncia e
transliteração, são adotadas pelas entidades educacionais e científicas. Os
vocábulos, por ela cunhados ou aprovados, fazem parte dos dicionários e dos
livros de textos escolares e passam a integrar o patrimônio linguístico do
hebraico moderno.
A ordem de
prioridade das fontes pesquisadas para a formação de novos vocábulos foi, em
primeiro lugar a Bíblia, depois o Talmude e, em seguida, a vasta literatura da
Idade Média. Só em último caso recorreu-se a palavras ou radicais de outras
línguas semíticas, de preferência o aramaico e em seguida o árabe. O recurso a
línguas ocidentais deu-se apenas em casos de extrema dificuldade, aplicando-se
a técnica da hebraização dos radicais.
Atualmente,
após cem anos do início do renascimento do hebraico, o desenvolvimento do
idioma não é mais planejado e organizado. Tendo-se tornado a língua oficial de
um Estado e de seu povo, adquiriu impulso próprio, passando a desenvolver-se
como todas as línguas faladas.
Sua
evolução, tanto no que se refere ao vocabulário como à semântica e, num ritmo
mais lento, à própria gramática, atende agora às necessidades de uma sociedade
que exige constantemente novos termos para identificar novos fenômenos.
O processo
de criação de novos termos tem continuado sempre com a utilização do material
linguístico já existente nas fontes escritas. A maioria das inovações continua
sendo feita de acordo com o caminho clássico: adequando radicais das fontes
tradicionais, acrescidos de prefixos e sufixos, ou ainda, combinando várias
palavras básicas para criar uma nova. Muitas dessas inovações já têm um cunho
popular.
A Academia
de Língua Hebraica, através de suas diversas comissões, atua no exame das
propostas de novos vocábulos que lhe chegam dos vários setores da sociedade,
aprovando-os ou não, e tem ainda ao seu encargo a tarefa de cunhar, ela mesma,
novos vocábulos.
Estrangeirismos
ou empréstimos também já penetraram em larga escala no hebraico, o que é usual
e normal nas línguas modernas. A Academia, entretanto, faz um esforço no
sentido de substituir os estrangeirismos por vocábulos inovados. Procura criar
termos hebraicos para os estrangeirismos correntes, que, às vezes, são aceitos
pelos falantes e, outras, passam a conviver lado a lado com a palavra cunhada para
o mesmo conceito.
No que se
refere à gramática, geralmente esse sistema se caracteriza por um maior grau de
estabilidade, mas, no hebraico falado, nota-se uma tendência a evitar as formas
gramaticais irregulares e a incrementar a uniformidade gramatical. Isso ocorre,
por exemplo, nos verbos do futuro plural feminino, que diferem do plural
masculino, e na conjugação de alguns verbos (como yoschen no lugar do gramaticalmente correio yaschen). Embora essas mudanças sejam correntes na fala popular, a
gramática oficial não as incorporou.
A ortografia
plena, que utiliza as letras u, o e. i como auxiliares da leitura na escrita
sem vogais, também responde ao anseio do povo pela simplificação, mas,
oficialmente, coexistem os dois sistemas ortográficos: a escrita defectiva (ketiv hasser), totalmente vocalizada, e
a escrita plena (ketiv malê), sem as
vogais. Todas as tentativas de simplificação, tanto da gramática como da
grafia, sofreram reveses.
Concluindo,
o hebraico antigo transformou-se numa língua dinâmica, moderna, corrente e
natural. O acréscimo de novos vocábulos, bastante numerosos, não afetou as
características básicas da língua. Por outro lado, a par dos vocábulos
acrescidos para expressar o novo mundo, já surgiu um rico vocabulário popular,
uma gíria amplamente difundida em todas as camadas sociais dos falantes do
hebraico.
O surgimento
dessa fala popular é o sinal maior de que o processo de renascimento ou
renovação da língua hebraica foi bem-sucedido.
O hebraico,
língua clássica, altamente poética, que serviu durante dezessete séculos a
práticas religiosas, à comunicação escrita e à expressão literária,
transformou-se numa língua moderna, com todas as características de língua
falada capaz de expressar as necessidades de uma sociedade moderna e dinâmica,
dispondo até mesmo de gíria própria, eivada de termos ídiches e árabes.
Foi, pois,
concluído o processo de renascimento da língua hebraica e está em curso o
processo de desenvolvimento natural do hebraico moderno.
R.
B.
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Fonte:
Dicionário Hebraico-Português, por: Rifka Berezin. Edusp (Editora da Universidade de São Paulo - USP). São Paulo, 1995 (Ano Judaico: 5755), págs. 9-14.
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