sexta-feira, 15 de julho de 2016

A singularidade da revolução iraniana

A singularidade da revolução iraniana
A situação econômico-política do Ira do xá apresentava antes de tudo características exclusivas e paradoxais. A fabulosa riqueza oriunda dos impostos do petróleo havia permitido dotar o país densamente povoado de todo tipo de infraestrutura que contava com recursos financeiros para funcionar. As universidades iranianas anteriores a 1979, ao contrário das suas homólogas do Egito e da Síria, não eram pátios onde ficavam estacionados temporariamente os desempregados de amanhã. Os docentes eram pagos de forma decente e nem todos tinham ideia de se expatriar para melhorar o nível de vida; por isso, formaram-se elites capacitadas. Os alunos promissores iam fazer doutorado nos Estados Unidos com bolsas de estudo iranianas. Aliás, os dirigentes e os tecnocratas da república islâmica foram recrutados principalmente entre aqueles diplomados das universidades americanas que haviam deixado crescer a barba.
Apesar disso, bloqueios estruturais impediram que essas elites bem-formadas desempenhassem o papel correspondente às suas próprias qualificações e aspirações. O tacão pesado da ditadura, acompanhado por uma repressão selvagem, interditava toda e qualquer liberdade de expressão, e a monopolização da renda petrolífera e suas bases pelos políticos interessados em negócios que frequentavam a corte imperial, criava uma frustração considerável entre esses jovens diplomados mantidos à margem. De mais a mais, a riqueza do petróleo havia atraído para a periferia urbana grandes massas de moradores da zona rural amontoados nas favelas, numa situação comparável com a do mundo árabe sunita. Serão estes os "deserdados" mobilizados pela revolução islâmica.
A originalidade da situação iraniana também tinha outra causa, ligada às relações existentes entre os clérigos e o poder, diferentes no mundo sunita. No islamismo xiita existe um quase-clero, hierarquizado e dirigido por certo número de doutores da lei aptos a interpretar os textos sagrados a seu gosto. Esse clero tinha a vantagem de ser bastante independente em relação ao regime. No plano financeiro conseguira conservar o usufruto de propriedades imensas, especialmente imóveis, contra a vontade do xá, que tentara em vão arrancá-las deles depois da "revolução branca" de 1963. Em termos ideológicos, a doutrina xiita considera que o detentor do poder só terá legitimidade depois que chegar o imã oculto, isto é, o mahdi, que fará a conquista do mundo "enchendo-o de justiça e verdade, tal como está agora repleto de mentira e injustiça". É ao mahdi, cuja vinda os doutores da lei esperam, que os xiitas devem obediência, mesmo que, por conveniência, temporariamente possam penhorar ao governo empossado uma fidelidade de fachada que o clero, se assim desejar, denuncia quando quiser.
Essa ilegitimidade fundamental do detentor do poder forneceu a Khomeini uma base doutrinal preciosa para exigir a queda do regime do xá. O que detonou a revolução iraniana foi a aliança entre uma parte do clero conduzida por Khomeini e as elites estudantis islamitas frustradas na sua ascensão social e preteridas pelo sistema educacional iraniano de bom nível. Essa aliança revolucionária soube liderar um movimento cujos "deserdados" amontoados nas favelas forneceram os soldados da infantaria, galvanizados pelos mollahs que haviam dado seu aval à revolução.
Embora os iranianos estivessem certos de ver sua revolução se ampliar para todo o mundo muçulmano, só conseguiram fazer um número significativo de seguidores no meio de outra população xiita, do sul do Líbano, cujos militantes pró-khomeinistas do Hizbollah foram recrutados por voluntários vindos de Teerã.


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Fonte:
A Revanche de Deus, por: Gilles Kepel. Tradução: J. E. Smith Caldas. Editora Siciliano. São Paulo, 1992, págs. 42-43.

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