A singularidade da revolução iraniana
A situação
econômico-política do Ira do xá apresentava antes de tudo características
exclusivas e paradoxais. A fabulosa riqueza oriunda dos impostos do petróleo
havia permitido dotar o país densamente povoado de todo tipo de infraestrutura
que contava com recursos financeiros para funcionar. As universidades iranianas
anteriores a 1979, ao contrário das suas homólogas do Egito e da Síria, não
eram pátios onde ficavam estacionados temporariamente os desempregados de
amanhã. Os docentes eram pagos de forma decente e nem todos tinham ideia de se
expatriar para melhorar o nível de vida; por isso, formaram-se elites
capacitadas. Os alunos promissores iam fazer doutorado nos Estados Unidos com
bolsas de estudo iranianas. Aliás, os dirigentes e os tecnocratas da república
islâmica foram recrutados principalmente entre aqueles diplomados das
universidades americanas que haviam deixado crescer a barba.
Apesar
disso, bloqueios estruturais impediram que essas elites bem-formadas
desempenhassem o papel correspondente às suas próprias qualificações e
aspirações. O tacão pesado da ditadura, acompanhado por uma repressão selvagem,
interditava toda e qualquer liberdade de expressão, e a monopolização da renda
petrolífera e suas bases pelos políticos interessados em negócios que
frequentavam a corte imperial, criava uma frustração considerável entre esses
jovens diplomados mantidos à margem. De mais a mais, a riqueza do petróleo
havia atraído para a periferia urbana grandes massas de moradores da zona rural
amontoados nas favelas, numa situação comparável com a do mundo árabe sunita.
Serão estes os "deserdados" mobilizados pela revolução islâmica.
A
originalidade da situação iraniana também tinha outra causa, ligada às relações
existentes entre os clérigos e o poder, diferentes no mundo sunita. No
islamismo xiita existe um quase-clero, hierarquizado e dirigido por certo
número de doutores da lei aptos a interpretar os textos sagrados a seu gosto.
Esse clero tinha a vantagem de ser bastante independente em relação ao regime.
No plano financeiro conseguira conservar o usufruto de propriedades imensas,
especialmente imóveis, contra a vontade do xá, que tentara em vão arrancá-las
deles depois da "revolução branca" de 1963. Em termos ideológicos, a
doutrina xiita considera que o detentor do poder só terá legitimidade depois que
chegar o imã oculto, isto é, o mahdi,
que fará a conquista do mundo "enchendo-o de justiça e verdade, tal como
está agora repleto de mentira e injustiça". É ao mahdi, cuja vinda os doutores da lei esperam, que os xiitas devem
obediência, mesmo que, por conveniência, temporariamente possam penhorar ao
governo empossado uma fidelidade de fachada que o clero, se assim desejar,
denuncia quando quiser.
Essa
ilegitimidade fundamental do detentor do poder forneceu a Khomeini uma base
doutrinal preciosa para exigir a queda do regime do xá. O que detonou a
revolução iraniana foi a aliança entre uma parte do clero conduzida por
Khomeini e as elites estudantis islamitas frustradas na sua ascensão social e
preteridas pelo sistema educacional iraniano de bom nível. Essa aliança revolucionária
soube liderar um movimento cujos "deserdados" amontoados nas favelas
forneceram os soldados da infantaria, galvanizados pelos mollahs que haviam dado seu aval à revolução.
Embora os
iranianos estivessem certos de ver sua revolução se ampliar para todo o mundo
muçulmano, só conseguiram fazer um número significativo de seguidores no meio
de outra população xiita, do sul do Líbano, cujos militantes pró-khomeinistas
do Hizbollah foram recrutados por voluntários vindos de Teerã.
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Fonte:
A Revanche de Deus, por: Gilles Kepel. Tradução: J. E. Smith Caldas. Editora Siciliano. São Paulo, 1992, págs. 42-43.
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