quarta-feira, 27 de julho de 2016

Entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva (1998)

Entrevista com Luiz Inácio Lula da Silva
"Os evangélicos vão colaborar com meu governo"
O candidato do PT à presidência defende os temas sócias, a soberania nacional e a liberdade religiosa
Por: Carlos Fernandes
Nos últimos 20 anos, nenhum político brasileiro conseguiu se identificar mais com a classe trabalhadora do que Luiz Inácio Lula da Silva. Casado com Marisa Letícia, cinco filhos, 52 anos de idade, metalúrgico de profissão e líder por vocação, a vida de Lula daria muito mais do que um livro. Desde que migrou, com a mãe e sete irmãos, da pequena Garanhuns (PE), em direção a São Paulo, numa viagem de 13 dias a bordo de um pau-de-arara, sua vida não parou de dar voltas. Típico retirante nordestino, o menino vendeu comida na rua, foi engraxate e office-boy. Por acaso, conseguiu emprego numa fábrica de parafusos, o que lhe abriu as portas para a profissão de metalúrgico, na qual haveria de tornar-se um dos maiores líderes políticos da história do Brasil.
Como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, o mais poderoso do país, Lula liderou as históricas greves no ABC Paulista, que desafiaram o regime militar, no fim dos anos 70. Preso como subversivo, o líder emergente percebeu que aquele movimento só poderia ser levado adiante através de uma ampla mobilização dos trabalhadores. Em 1980, Lula e um grupo de sindicalistas, religiosos, intelectuais e representantes de movimentos sociais fundaram o Partido dos Trabalhadores (PT), sigla que, poucos anos depois, teria influência decisiva na política brasileira. Nas eleições de 1986, Lula tornou-se o deputado federal mais votado do país e teve atuação marcante na elaboração da Constituição de 1988, sempre defendendo os interesses dos trabalhadores. Estava preparado, então, o caminho para o mais alto voo jamais tentado por um operário brasileiro: a disputa da presidência da República, em 1989. Se contava com o apoio de inúmeros segmentos, Lula tinha contra si a antipatia de muitos grupos evangélicos, que chegaram a dizer que, se eleito, o candidato do PT acabaria com a liberdade religiosa e até fecharia igrejas. Numa campanha memorável, Lula chegou ao segundo turno, onde obteve cerca de 31 milhões de votos, mas perdeu para Fernando Collor de Mello. O fim do sonho embalado pela canção Sem medo de ser feliz foi o pontapé inicial de uma série de viagens por todo o país, que ficaram conhecidas como as Caravanas da Cidadania. Ao longo de quatro anos, Lula despontou como candidato imbatível - a faixa presidencial parecia, apenas, uma questão de tempo.
Nas eleições seguintes, em 1994, nova derrota, desta vez para o atua! presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Uma perda amarga, ainda mais porque, apenas cinco meses antes daquele pleito, Lula já era considerado presidente eleito, com uma aceitação popular que beirava os 50%. A partir dali, a oposição se enfraqueceu, atropelada pela aliança de partidos de centro e direita que compõem a base de sustentação política do Governo Federal.
Quando muita gente não acreditava numa nova candidatura. Lula anunciou, no início deste ano, sua intenção de concorrer, pela terceira vez consecutiva, ao Planalto.
VINDE resolveu entrevistar os dois candidatos mais bem posicionados na corrida presidencial deste ano. Nesta edição, Lula fala de suas ideias, seus planos para o governo, sua relação com os evangélicos e faz, a seu modo, um retrato da situação do país. Em setembro, a vez é do presidente Fernando Henrique - que concorre à reeleição -, cuja entrevista já está agendada. Sem ter a pretensão de influenciar a opção eleitoral do leitor, VINDE abre espaço para o debate político, que deve ser tão democrático quanto a fé.
Se o senhor for eleito, quais serão as primeiras atitudes do governo Lula?
Vemos nos concentrar na adoção de políticas capazes de gerar empregos. Essa é a prioridade mais urgente. Junto com isso, cuidaremos desde o primeiro dia dos graves problemas na área da saúde, da educação, da previdência social e da agricultura. Também vamos atuar no combate à seca.
Que alterações o senhor pretende fazer na política econômica?
A atual política econômica defende os interesses dos grandes e dos gigantes. Mesmo quando esses gigantes têm pés de barro, como foi o caso dos banqueiros socorridos com os 20 bilhões de reais do Proer [programa criado pelo Governo Federal para sanear instituições financeiras], dinheiro esse que faz falta no prato do brasileiro. Mudaremos isso. Nossa preocupação maior será estimular economicamente o pequeno e o médio, para que o país retome o crescimento, com justiça social.
Quais os maiores defeitos, na sua opinião, do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso?
O desprezo pelo ser humano e o desinteresse pelas questões sociais.
O candidato a vice-presidente na sua chapa, Leonel Brizola, declarou que pretende rever as privatizações, um dos carros-chefes do atual governo. O que será feito, de fato, neste campo?
Meu governo estará voltado para o futuro, e não para o passado. Mas algumas privatizações tiveram aspectos muito suspeitos. Faremos apuração rigorosa e auditorias. Se descobrirmos que houve delitos e irregularidades, cumpriremos com nosso dever e vamos exigir punições judiciais.
No passado, criticou-se o PT por sua política de isolacionismo. O senhor pretende fazer um governo de coalizão?
Na atual campanha, nosso arco de alianças está mais amplo e mais forte. Os problemas do Brasil são graves demais para serem enfrentados por um só partido. Nosso governo contará com a força dos que já estão conosco e de muitas lideranças independentes, que aceitarão o chamado dessa missão de justiça.
E o senhor aceitaria o apoio de forças como o PMDB e o PFL?
Em alguns estados, o PMDB tem figuras corajosas, que têm denunciado os erros e as injustiças praticadas pelo atual governo. No Congresso Nacional, em particular, buscaremos boas relações com esses setores. O PFL é o grande pilar de sustentação do atual governo. Não tem sentido pensar em apoio de um partido identificado com as elites, com a indústria da seca, com negociatas de todo tipo.
O que será feito para reduzir o desemprego, que o senhor tanto vem criticando em sua campanha?
Adotaremos políticas emergenciais capazes de gerar empregos imediatamente, através de incentivos à pequena agricultura, construção de moradias, obras de combate à seca e redes de saneamento básico. Junto com a retomada do crescimento, isso produzirá queda segura no desemprego.
As reformas constitucionais, consideradas fundamentais pelo presidente FHC, alteraram profundamente as relações sociais e trabalhistas no Brasil. O senhor pretende dar continuidade a este programa reformista?
O que Fernando Henrique tentou foi um conjunto de contrarreformas, sempre orientadas para anular conquistas sociais e enfraquecer a soberania nacional. Vamos buscar verdadeiras reformas, como a reforma agrária, que ampliem os direitos de cidadania, garantam maior produção de alimentos e menos conflitos no campo.
O que fazer para frear o crescimento do déficit público e da dívida externa?
A retomada do crescimento econômico, e não a elevação de impostos, trará aumento na arrecadação, reduzindo esse déficit. Mas, sobretudo, será preciso corrigir a elevada taxa de juros fixada pelo Banco Central. Ela é a maior responsável pelos déficits crescentes. O enfrentamento da dívida externa envolve várias medidas. Uma delas é interromper a farra das importações. Outra é iniciar uma política industrial séria, que faça as exportações crescerem. Também será preciso fazer renegociação com os credores, com a voz firme de um país que não pode ser tratado como republiqueta.
Saúde, educação e segurança são temas recorrentes em campanhas eleitorais. Objetivamente, quais são seus planos nestas áreas?
Na saúde, vamos dar prioridade para a medicina preventiva e para o médico da família. É mais eficiente e mais barato tratar as doenças antes de elas se tornarem graves. Na educação, vamos promover a defesa do ensino público e a elevação de sua qualidade, com o incentivo à qualificação dos professores e à pesquisa. Um carro-chefe será a Campanha Nacional de Alfabetização que, finalmente, marcará a data para completa erradicação do analfabetismo. Na segurança, o combate rigoroso ao crime será feito em paralelo à valorização e reeducação das forças policiais, eliminando a corrupção e o desrespeito aos direitos humanos.
Como será sua relação com as Forças Armadas? O senhor pretende aumentar as verbas destinadas à defesa nacional?
Vamos criar o Ministério da Defesa e manter com as Forças Armadas relações absolutamente normais e regulares, conforme previsto na Constituição. Quanto à fatia do orçamento, não existe mais Guerra fria, nem corrida armamentista. Os gastos não podem ser os mesmos daquele tempo. Mas as Forças Armadas não podem perder condições operacionais. Por isso, devem ser mantidos os níveis sensatos de renovação de equipamentos.
O senhor se sente vítima do temor da sociedade por um governo esquerdista ou acha que existe uma campanha permanente contra o senhor?
Sinto claramente que esses temores, onde existem, são fruto da desinformação e de calúnias. Onde converso com as pessoas, expresso minhas ideias e adianto nossa linha de governo, tudo isso cai por terra. Meu governo terá um perfil democrático e popular.
O senhor disputou a presidência duas vezes consecutivas e chegou em segundo lugar em ambas. Na sua opinião, quais foram os motivos das derrotas eleitorais em 1989 e 1994?
Para o Collor, em 1989, acho que perdi em dois momentos. O primeiro foi quando não tivemos humildade de conversar com o PMDB, para ver se conquistávamos os 5% de votos que o doutor Ulysses Guimarães teve. O outro foi aquele último debate [levado ao ar pela Rede Globo de televisão, a poucos dias do segundo turno]. Eu cometi um crime contra mim e contra as pessoas que acreditavam em mim. Eu não poderia ter feito o comício do Rio de Janeiro - que terminou à meia-noite -, para depois chegar em São Bernardo à uma da manhã, onde fui a um jantar para angariar fundos até as 3h. Logo depois, viajei para Brasília, pensando que ia voltar às 10h, mas só voltei às cinco da tarde. Aí, fui para o debate. Nas 48 horas que antecederam o debate, eu dormi apenas três horas. Acho que aquilo foi uma total irresponsabilidade com o projeto que poderia ter feito com que eu ganhasse. A terceira coisa foi a montagem do debate que a Globo fez no Jornal Nacional. Já com o Fernando Henrique, eu acho que perdi porque ganhei as eleições antes do tempo. Eu já era considerado presidente da República em maio [a cinco meses das eleições]. Por isso, foi possível, então, fazer a aliança que eles fizeram, além do plano de estabilização econômica. E, também, nós passamos a campanha inteira sem ter a crítica correta ao projeto econômico, ao Plano Real. Eu acho que isso foi fatal.
No momento desta entrevista, pesquisas de opinião apontam 41% de preferência do eleitorado pelo candidato - e atual presidente -Fernando Henrique, enquanto o senhor está com 25%. Há alguma estratégia em andamento para reverter o quadro nesta reta final?
Nossa campanha está apenas começando. A do FHC já dura dois anos e tem todo o apoio dos grandes veículos de comunicação. A estratégia é percorrer os estados e mostrar, no nosso horário de rádio e TV, que a seca do Nordeste está se agravando, que o desemprego cresce, e as elites tiraram esses temas do noticiário. A seca continua no Nordeste com a mesma gravidade. Só que, do ponto de vista político, não interessa à classe dominante continuar falando de seca, porque pode prejudicar. Mas acontecerá o que diz aquela passagem bíblica que os evangélicos conhecem bem: "E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".
E por falar em pesquisas eleitorais, o senhor acredita nelas?
As pesquisas refletem apenas um momento, ou seja, a intenção de voto na ocasião da pesquisa. Todos sabem que ocorrem mudanças e reviravoltas, até mesmo na véspera das eleições. Nos últimos anos, aconteceram também casos de manipulação e de apurações mostrando resultados opostos aos das pesquisas.
Então, o FHC de 1998 pode ser o Lula de 1994 e perder uma eleição tida como ganha?
Pode. E em minhas viagens pelo Brasil, em meus contatos com o povo, com os pequenos, sinto isso com muita força.
No seu governo, o que será feito em face do processo de globalização que domina o mundo? Além do Mercosul, o senhor pretende apoiar a aproximação do Brasil com outras alianças de nações, como a União Europeia e o Nafta, que inclui os países da América do Norte?
A globalização pode trazer aspectos muito positivos. Mas desde que o Brasil participe nela como uma nação soberana, portadora da décima economia mundial, de reservas estratégicas incalculáveis, uma população de 160 milhões e um dos mais ricos territórios do planeta. Não como uma pequena peça, secundária e subordinada. Vamos participar da globalização de cabeça erguida, com projetos de desenvolvimento nossos, sem vergonha de sermos brasileiros, querendo gerar empregos aqui, querendo melhorar a agricultura. Este ano, o Brasil vai importar US$ 2 bilhões em arroz, milho e feijão. Para que importar feijão, que na lavoura dá em setenta dias? É por isso que o superávit argentino em relação ao brasileiro foi de US$ 1,4 bilhão. Vamos fazer abertura de fronteiras de acordo com os nossos interesses. Os Estados Unidos fazem assim, e por isso mandam no mundo. O Mercosul é um passo muito importante, e as relações com a União Europeia interessam muito ao Brasil. Quanto ao Nafta, e principalmente à Alça [aliança de países da América Latina], proposta pelo presidente americano Bill Clinton, há necessidade de cautela, porque existem indícios de imposição de força. E o Brasil não pode aceitar isso. Nós queremos uma nação forte, soberana, e uma nação forte tem de ter ingerência nas grandes decisões econômicas, no país e na Organização Mundial do Comércio, que é onde as coisas se decidem. Portanto, nós temos divergência com muitos pensadores americanos, que querem tornar o Estado brasileiro uma zona franca. Nós queremos uma nação livre e soberana, em que o povo tenha orgulho de andar de cabeça erguida.
Qual será a receita do seu governo para evitar que o país sofra um ataque especulativo e enfrente uma crise semelhante à da Indonésia e outras nações asiáticas?
A retomada do crescimento econômico e a estabilidade social que vamos garantir atrairá investimentos produtivos, que são muito mais necessários que os especulativos. Medidas econômicas consistentes, interligando taxa de juros, câmbio, equilíbrio fiscal e correção na balança comercial, afastarão todos os riscos de ataque,
O senhor acredita em Deus? Professa alguma religião?
Acredito em Deus e sou católico.
O que o senhor acha do crescimento do segmento evangélico no Brasil?
Acho importante, porque isso significa uma liberdade de opção e de credo religioso, o que é fundamental numa democracia.
Na sua opinião, de que forma a rede de igrejas evangélicas espalhadas pelo Brasil poderia ajudar a resolver problemas como a fome, o analfabetismo e o desemprego?
A rede de igrejas evangélicas pode desempenhar um papel fundamental em meu governo, através de parcerias e, mais que isso, através da apresentação de propostas concretas de políticas públicas. A Campanha Nacional de Alfabetização é um exemplo de área onde essa rede pode ter um desempenho fabuloso. Outro exemplo é o conjunto de atividades que dedicaremos a setores como a infância desassistida, acompanhamento de pessoas da terceira idade, mobilizações de saúde preventiva, campanhas de combate à fome etc.
O senhor conta com algum assessor de campanha que o aconselha em relação aos evangélicos?
Não tenho um assessor formalmente designado para tanto. Mas, em meus frequentes encontros com pastores e com lideranças ligadas a esse segmento, recebo boas doses de assessoria, conselhos e explicações.
E pretende contar com algum evangélico na sua equipe de governo?
Pretendo contar com pessoas de todas as religiões.
O senhor acha que o Lula não assusta mais os crentes? A que atribui isso?
Quando as pessoas decidem conversar comigo, me ouvir, trocar opiniões, nenhum medo sobrevive. A verdade liberta.
Na sua atual campanha, o senhor chegou a pedir o apoio de algum líder evangélico? Qual foi a receptividade?
Tenho pedido apoio de inúmeros líderes evangélicos e a resposta tem sido bastante positiva. Até a grande imprensa tem noticiado isso, embora parecendo estar sentindo algum incômodo.
Alguns grupos cristãos, como o Movimento Evangélico Progressista (MEP), com sede em Belo Horizonte (MG), apoiam sua candidatura publicamente. Sua campanha tem tido apoio de outras entidades evangélicas?
Tenho a impressão de que citar o nome de algum movimento poderia ocasionar uma injustiça, pelo possível esquecimento de outro. Estão brotando iniciativas neste sentido em todo o país. Um comitê evangélico de Belém do Pará está solicitando agenda. Como vocês falaram, existe o MEP de Belo Horizonte. A senadora Benedita da Silva está articulando apoios no Rio, e acontece o mesmo em praticamente todos os estados. Eu sinto uma força incomparavelmente maior do que nas campanhas anteriores.
O senhor tem algum projeto voltado diretamente para o segmento evangélico?
Tenho aquele conjunto de projetos de que já falamos, envolvendo a parceria entre governo e igrejas. Em resumo, trata-se do próprio coração do meu projeto de governo, que é a ampliação dos projetos sociais, da valorização do ser humano, da solidariedade exercida com fé e compromisso. E não frases vazias e mera propaganda clientelista, como aconteceu com o governo FHC.
Qual a sua maior preocupação nesta campanha?
O que mais me preocupa é a manipulação do poder econômico e dos meios de comunicação. Eu estou disputando com um cidadão que é presidente da República, então o que vai acontecer? A partir da convenção oficial, eu não posso entrar no ar, em rede de rádio ou televisão, porque sou candidato. Ele pode entrar como presidente da República. Eu quero saber qual vai ser o momento em que se vai separar o presidente do candidato. Nós não estamos fazendo uma campanha em igualdade de condições. Nós estamos disputando contra o poder do Estado e o poder da comunicação. E qual é a nossa vantagem? É que nós temos o poder da razão. Milhões de brasileiros estão indignados com a quantidade de mentiras, e a nossa campanha vai ser um movimento em que vamos envolver artistas, intelectuais, empresários, pastores, padres, freiras, desempregados, empregados, pequenos e médios produtores, quem quiser. E nós vamos ganhar (1998)


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Fonte:
Revista Vinde. Ano III - Nº 33 - Agosto de 1998. Editora Vinde. Rio de Janeiro, págs. 12-15.

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