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segunda-feira, 20 de junho de 2016

Quem foi Gil Vicente?

Quem foi Gil Vicente?
A biografia de Gil Vicente ainda permanece um mistério em muitos aspectos. Não há provas definitivas que possam estabelecer com segurança sua identidade. Calcula-se que tenha nascido por volta de 1465.
Há poemas seus no Cancioneiro geral, organizado por Garcia de Resende e publicado em 1516. A sua carreira teatral, por outro lado, começou de forma inusitada: por ocasião do nascimento do filho de D. Manuel e de D. Maria de Castela, em 1502, ele entrou nos aposentos reais e, diante da corte surpresa, declamou um monólogo que tinha escrito em castelhano, à semelhança de Juan del Encina, o Monólogo do vaqueiro (ou Auto da visitação), em que um simples homem do campo expressa sua alegria pelo nascimento do herdeiro, desejando-lhe felicidades. A interpretação entusiasmou a corte, que lhe pediu a repetição na passagem do Natal. Gil Vicente atendeu aos apelos, porém compôs um outro texto, o Auto pastoril castelhano, que também fez sucesso. Tinha início, assim, uma brilhante carreira, que se estenderia por mais de trinta anos. Sua última peca é de 1536, e depois dessa data não há mais notícias suas. Luís Vicente, seu filho, publicou em 1562 a Copilaçam de todalas peças de Gil Vicente, que deixa muito a desejar por ser incompleta e pelas alterações em vários textos.
A participação de Gil Vicente na vida da corte foi intensa e variada, tendo até mesmo recebido prêmios de D. João III. Várias peças suas circularam sob forma de cordel e, por ocasião do estabelecimento da Inquisição em Portugal, algumas foram proibidas.
Dessa forma, pouco se conhece de concreto sobre a vida do homem Gil Vicente, mas as numerosas pecas que chegaram até nós bastam para avaliar o talento indiscutível do escritor Gil Vicente, justamente considerado o fundador do teatro português.

Características gerais do teatro vicentino
O caráter popular
Embora frequentador da corte, Gil Vicente é um artista profundamente enraizado nas tradições populares. Em suas peças vemos desfilar toda a galeria de tipos humanos da sociedade portuguesa, de reis a camponeses, de clérigos a cavaleiros, de princesas a alcoviteiras. A poesia popular e os costumes folclóricos também são elementos de que se valeu Gil Vicente para a composição de seu teatro. A linguagem rica e variada das personagens, de acordo com sua origem e posição social, é outro aspecto importante da urk1 vicentina. Aliás, a riqueza e a vivacidade do diálogo, elevando a palavra a um nível sem precedente na época, são a sua maior contribuição para o estabelecimento de um teatro literário português, bem distante das rústicas encenações de então.
O uso do verso não tornou artificial a linguagem teatral vicentina. Sabendo desenvolver com muita arte e inteligência as potencialidades da língua portuguesa (e castelhana), Gil Vicente explora o trocadilho, os ditos populares, utiliza-se de falares regionais, aproveita (como trovador que foi) a beleza da linguagem das cantigas e a suavidade dos hinos religiosos.
Por outro lado, esses elementos estilísticos só são chamados à cena para que se representem, com mais fidelidade, as situações dos homens da época. O que interessa a Gil Vicente é a vida quotidiana, é a representação dos' problemas de seu tempo. E aí passamos a outro aspecto da arte vicentina: a crítica social.

A crítica social
Pode-se dizer que o teatro popular de Gil Vicente expressa uma visão extremamente crítica da sociedade da época.
Sem fazer distinção entre as classes sociais, o autor coloca em cena os erros e vaidades de ricos e pobres, nobres e plebeus; censura a hipocrisia dos frades que não fazem o que pregam; denuncia os exploradores do povo, sejam eles juízes ou sapateiros; desnuda a imoralidade das alcoviteiras e satiriza os velhos sensuais; ridiculariza os supersticiosos e os charlatães. No conjunto, seu teatro apresenta um vasto painel crítico das classes sociais do fim da Idade Média portuguesa. Tentando alcançar a consciência de cada homem, Gil Vicente deixa explícito em suas peças que seu objetivo não c apenas divertir mas sim destacar os vícios de uma sociedade cada vez mais materialista e corrupta, para reconduzi-la ao caminho do Bem.
Essa posição crítica é, no fundo, uma tentativa de volta ao passado. Contemporâneo das modificações operadas na sociedade portuguesa em função do desenvolvimento comercial gerado pelas conquistas ultramarinas, o espírito medieval de Gil Vicente não encontra lugar na nova ordem que se vai construindo. Daí seu ataque ferino a todas as classes sociais, que são chamadas a uma reconsideração de atitudes e valores. Embora vivendo em pleno Renascimento, Gil Vicente não considera o homem como a medida de todas as coisas. A concepção teocêntrica da vida e a fidelidade aos valores espirituais ainda norteiam sua visão crítica. Como bem resumiu a estudiosa Carolina Michaëlis, "além de poeta, Gil Vicente era pensador, e era cristão de fé medieval. Colocado nos umbrais do tempo moderno, emancipado, e só de leve atingido pelo bafo humanista do Renascimento com seus gozos intelectuais e aristocráticos, ele tinha sempre em mente o mundo do além; preocupava-se com a salvação da alma e o bom emprego de cada dia do capítulo da vida que passamos neste mundo terrestre. Tinha simpatia pelos humildes, ingênuos e perseguidos; antipatia pelos prevaricadores e devassos".

Classificação das peças
Gil Vicente escreveu mais de quarenta peças, inclusive algumas em castelhano e outras bilíngues. Apenas para efeito didático, já que muitas não apresentam diferenças bem nítidas, podemos agrupar as principais em dois grupos, de acordo com sua preocupação dominante:
a) Peças de crítica social: Quem tem farelos!, em que um escudeiro pobretão procura namorar determinada moça mas é enxotado pela mãe dela; Auto da índia, que apresenta a história de uma mulher que engana o marido enquanto ele está engajado nas expedições de ultramar; Farsa de Inês Pereira, que aborda o tema da mulher interessada em casar. Depois de padecer nas mãos de um marido ciumento e impertinente, escolhe um tolo a quem possa enganar. É a ilustração do dito popular: "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube"; O Velho da horta, em que se ridiculariza a paixão súbita de um velho por uma jovem. Outras peças: Farsa dos almocreves, Farsa do escudeiro etc.
b) Peças religiosas: Auto da Mofina Mendes (ou Os Mistérios da Virgem), cujo simbolismo fundamental é a oposição entre a transitoriedade das coisas terrenas e a esperança trazida aos homens pelo mistério da Encarnação; Auto da Alma, que apresenta o drama da luta da alma humana na sua peregrinação terrena. Se ela não encontrasse proteção na "Santa Madre Igreja", teria cedido às seduções do diabo e perdido a vida eterna; Trilogia das barcas, composta do Auto da barca do inferno, Auto da barca do purgatório, Auto da barca da glória. Estas peças mostram as almas dos mortos à espera das embarcações que as levarão ao destino final. O ponto central é a acusação e defesa das almas nos diálogos com o Diabo e com o Anjo. A sátira social é marcante no Auto da barca do inferno. Outras peças: Breve sumário da história de Deus, Auto da sibila Cassandra, Auto da feira, Auto da fé etc.
Há ainda outros tipos de pecas, que podem ser reunidas da seguinte maneira: peças de temas romanescos, tais como Amadis de Gaula, D. Duardos e Comédia do viúvo, em que o assunto é extraído geralmente das novelas de cavalaria tão populares naquele tempo; autos pastoris, como Auto da visitação, Auto pastoril castelhano, Auto dos reis magos etc., que colocam em cena pastores e pastoras, quase sempre desenvolvendo algum motivo religioso; peças alegóricas, como Nau de amores, O tempo de Apoio, Cortes de Júpiter etc., que são fantasias de assuntos variados.
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Fonte:
Estudos de Língua e Literatura, por: Douglas Tufano. Editora Moderna, 3ª Edição. São Paulo, 1985, págs. 117-119.