quinta-feira, 21 de julho de 2016

Biografia de Konrad Witz

Konrad Witz
Konrad Witz nasceu em 1400 e morreu em 1445. Nascido alemão, em Rottweil, morreu suíço, na Basileia, e os dois países disputam a honra de  tê-lo  como  seu  pintor.  As enciclopédias de  arte informam que ele é "um mestre da pintura alemã,.o principal nome da escola suíça".
Quase não há informação documentada sobre Konrad Witz. Sabe-se apenas que era filho de Hans Witz, pintor, de Württemberg. Teve cinco filhos. Morreu primeiro que a mulher. Seu pai ficou com as crianças. Era rico, graças à pintura.
Estas informações foram colhidas em documentos que .permitem deduzir o ano do seu nascimento e o da morte. O primeiro documento, datado de 1447, é a nomeação de Hans Witz como tutor dos netos. Este documento leva a outro, datado de um ano antes (isto é, 1446), onde Ursula Treyger é declarada viúva — para o fim específico de vender uma casa de propriedade do casal — e onde se diz que ela era viúva havia um ano, o que leva a crer que Konrad morreu com a idade de 45 anos.
Os poucos outros documentos referentes ao pintor informam ainda que ele entrou para a Corporação dos Pintores da Basileia (Himmelzunft) — o sindicato dos pintores — em 1434. Que casou em 1435 com uma cidadã renana e que, nessa ocasião, recebeu o título de cidadão da Basileia. Que em 1439 comprou uma casa na rua principal da cidade, "uma casa senhorial".
O último documento é de 1454, quase dez anos depois da sua morte, quando uma filha do artista entra para um mosteiro apresentando enorme dote que — segundo afirma — é dinheiro ganho por seu pai com a pintura.
 Sobre a formação artística de Konrad Witz não se tem notícia. É muito provável que tenha aprendido a pintar com o próprio pai. E, se é fato que Hans Witz é o mesmo Hans de Constança, que viveu na corte de Filipe, o Bom, Duque de Borgonha, durante 1425 e 1426, pode-se deduzir que Konrad lá estivesse também, em Dijon, onde não podia deixar de conhecer o pintor favorito do duque, Jan van Eyck, que passou exatamente aqueles anos a serviço do nobre.
Os críticos de arte costumam fazer paralelos entre a obra de van Eyck e de Konrad Witz. Há mesmo alguns pontos de contato, pelo menos quanto à técnica. Eyck é às vezes apontado como o inventor da pintura a óleo; se não a inventou, pelo menos foi o maior divulgador da nova técnica. E Konrad, desde 1426, parece só ter pintado a óleo. Entre a sua Anunciação que está no Museu de Nuremberg e a de van Eyck, que está em Washington, há até algumas semelhanças notáveis.
Se realmente eles chegaram a se conhecer, foi um feliz conhecimento, porque todos os afrescos que Konrad certamente pintou não chegaram aos nossos dias, e as poucas obras que se conservaram são todas pintadas a óleo.
É mesmo bastante provável que seu pai seja o dito Hans de Constança, porque é quase certo que Konrad tenha estado nesta cidade: A Pesca Milagrosa (prancha XVI), que representa o milagre dos peixes e é considerada como uma obra-prima pela modernidade do tratamento da paisagem, é construída sobre uma "paisagem vista", retratada pelo pintor. E não faltam testemunhos de que a paisagem é do lago de Constança.
De lá eles teriam vindo para a Basileia, atraídos pela magnificência do Concílio Ecumênico da Igreja Católica, em 1431, fato que trouxe à cidade os maiores pintores da época. Como a Igreja era, fundamentalmente, a grande compradora de quadros — que os bispos encomendavam para as suas igrejas —, é natural que os pintores acorressem à concentração de bispos convocados pelo papa. É possível, inclusive, que estivessem atendendo a um convite de François de Mies, chanceler da Borgonha e cardeal, que Konrad Witz retratou sendo apresentado à Virgem Maria por São Pedro (prancha X/XI).
Seja qual for o motivo que o levou a vis;tar a Basileia, é certa a sua presença na cidade, em caráter permanente, pelo menos a partir de 1432 (quando o Concílio ainda estava reunido), porque em 1434 ele é recebido na "Corporação do Céu" como um pintor da cidade. Pelo regulamento das corporações isto significa claramente que Konrad já estava estabelecido e "vivendo da profissão de pintor" havia pelo menos dois anos.
Outra prova de sua presença na Basileia, durante a realização do Concílio, é o quadro A Santa Família na Igreja, descoberto no Museu Nacional de Capodimonte, em Nápoles. Supõe-se que tenha ido parar na Itália levado por um dos participantes do Concílio; a figura masculina retratada é muito semelhante à do humanista Enea Silvio Piccolomini, que participou da reunião e, mais tarde (em 1460), foi eleito papa sob o nome de Pio II. (Quando ainda secretário do Cardeal Capranica, ele escreveu sobre a Basileia: "Sé um italiano quer formar uma ideia da Basileia, pense em uma Ferrara mais aprazível e magnífica; e em casas de ricos, bem dispostas e decoradas como em Florença não há melhores; e quanto a fontes, nem Viterbo tem tantas.")
Em 1435 Konrad casa com Ursula Treyger, parente do pintor Nicolau Rusch de Tubinga, dito mestre Lawelin, com quem pintou, de parceria, uma sala do arsenal da cidade. Em 1439 compra uma casa na Freie Strasse, indício de riqueza.
Vai então a Genebra, onde assina em 1444 o grande altar de São Pedro. "Hoc opus pinxit magister Conra-dus sapientis de Basilea. 1444": "Esta obra, pintou-a o mestre Konrad, sábio da Basileia. 1444", por encomenda do Cardeal François de Mies, então arcebispo de Genebra,
Um ano depois está morto, e não se sabe, ao menos, se morreu em Genebra ou na Basileia. Vários autores afirmam que o cardeal, terminado o Concílio, levou-o consigo para Genebra, de onde datam, realmente, suas últimas obras, o retábulo de São Pedro e O Cardeal François de Mies Sendo Apresentado à Virgem por São Pedro, de 1444.
Circundado por uma tradição gótica mas com uma sensibilidade e um espírito de observação renascentistas, Konrad Witz é um homem isolado que construiu a Renascença alemã à sua maneira, enfrentando um meio ainda em êxtase medieval. Witz é uma exceção, num ambiente difícil. Uma grande exceção, daí a sua importância.  Os críticos e historiadores da pintura são unânimes em reconhecer nele um mestre com grande senso paisagístico, sublinhando em suas obras alguns detalhes considerados avançadíssimos para a época: a perspectiva, por exemplo.
Sob o governo de Filipe, a cidade de Dijon passou por um grande desenvolvimento artístico. Os domínios deste mecenas do Norte estendiam-se a Flandres e aos Países-Baixos, de onde acorreram muitos pintores, fazendo florescer o intercâmbio cultural. Isto, provavelmente, explica muita coisa da pintura de Konrad Witz, como o interesse pelo espaço arquitetônico, evidente desde a sua primeira obra conhecida, A Sacra Conversação (prancha II/III), também conhecida no Brasil com o nome de A Santa Família na Igreja. A luz corre sobre as superfícies do interior da igreja, delimitando-a claramente, afugentando os mistérios góticos da arquitetura, E o desenho mostra qual foi o esforço necessário para dar ideia de profundidade, raramente alcançada nesta época em seu meio. As cores, por sua vez, revelam um observador atento, seja na sombra da rua ensolarada ou na iluminação do manto de Nossa Senhora: a sombra arroxeada equilibra perfeitamente com o amarelo, o laranja e o vermelho, num jogo de complementares que dá vida ao quadro. Se as pessoas são ainda um tanto convencionais, a figura do primeiro plano à direita é retratada com um realismo invulgar.
Capacidade de observação, ousadia e coragem parecem não ter mesmo faltado a Witz, bastando ver com que fôlego empreendeu uma obra das dimensões do retábulo do Speculum. Complexo nas linhas gerais (como o famoso retábulo do Cordeiro Místico, pintado por van Eyck dez anos antes), o retábulo da Basileia não pôde ser reunido: perdeu-se o grande painel central, e quatro outros, provavelmente, foram destruídos durante as lutas religiosas da Reforma. Os painéis encontrados e identificados podem ser vistos hoje nos museus da Basileia, Dijon e Berlim.
O retábulo foi inspirado no famoso tratado medieval "Speculum Humanae Salvationis", que estabelece paralelos entre personagens e fatos do Antigo e do Novo Testamento. Assim, os três camponeses que trazem água do poço de Belém para Davi prefiguram a visita dos Reis Magos, como o Imperador Augusto e a sibila Tiburtina prefiguram o Natal de Jesus Cristo. Os oito painéis externos (dos quais, atualmente, só conhecemos cinco) representam cada um um personagem isolado, colocado num ambiente interno, com a profundidade obtida mais através da luz e sombra que com a perspectiva do desenho. Os painéis internos (dos quais só não conhecemos um) apresentam dois personagens em cada, sempre recortados num fundo de ouro adamascado. O sentido vertical e a sobriedade da cor dominam a primeira série, enquanto o brilho do ouro e a composição mais movimentada prevalecem na segunda, rica de desenho perspectivo.
Konrad Witz, que surge das trevas e dos mistérios góticos para uma pintura emocionada e viril, é um bom exemplo do mundo germânico da sua época, quando a Alemanha se debatia entre as lendas ancestrais e o mundo latino. A religião e a cultura ainda não tinham proporcionado aos povos nórdicos a clareza lógica do Mediterrâneo. Para espantar as sombras das fábulas, usam a luz, talvez um pouco fria, de uma razão esplendidamente organizada. Konrad vive na época de formação da linguagem literária que Lutero depois consagrou, na época em que o germanismo está captando o quanto pode da latinidade para formar sua cultura. Desta cultura, ele será um dos grandes artífices. Mais que qualquer outro artista, ele conseguiu dar forma e cor a esta "alma germânica" ingênua e rústica, romântica mas objetiva, sentimental e concreta ao mesmo tempo. A pintura do mestre da Basileia é toda cheia de contrastes, como o espírito dos homens do seu tempo.
Em quase todos os seus quadros há, pelo menos, um retratado. Os santos não são figuras etéreas, puramente espírito. Não têm cara de santo, são — em primeiro lugar — gente, gente sensível, profundamente humana. Os personagens, reclusos num ambiente fechado, cercados por composições arquitetônicas, ou soltos ao ar livre, dominam sempre o ambiente. Todo o seu esforço para captar a justa dimensão da arquitetura e representá-la, todo o trabalho desenvolvido para conquistar e dominar o espaço, corresponde à luta de seu povo para alcançar a cultura dos latinos do Sul e do Ocidente.
Enquanto outros pintores apenas aceitaram e incorporaram sugestões culturais provenientes de outros lugares, de outros povos, de outros artistas, muitas vezes por simples modismo, Konrad Witz lutou e conseguiu firmar-se com autenticidade.
São Cristóvão (prancha IX), por exemplo, é um notável esforço para libertar-se da tradição gótica, um esforço incrível para a conquista do mundo à custa de observação pessoal e apesar da tradição. Os reflexos na água demonstram a sua capacidade de observar e a sua disposição de não se submeter às normas vigentes. Os círculos de água afastando-se do santo que conduz sua preciosa e pesadíssima carga (porque o Menino Jesus está carregado- com os pecados do homem) reforçam esta impressão, ao mesmo tempo que garantem ao quadro um ritmo métrico que lembra as baladas medievais, que têm seu encanto na repetição. O rosto de São Cristóvão tem a generosa humanidade de todos os seus trabalhos. O bastão entrevisto enviesado dentro da água confirma que ele pintava a partir do conhecimento, embora a paisagem esteja abrindo-se para novos horizontes com muita timidez, porque a convenção ainda não foi completamente expulsa. Mas, se compararmos esta paisagem com a da Pesca Milagrosa, vamos verificar que ele acabou por dominar também a paisagem, introduzindo a prática de retratar a paisagem e retratar pessoas, mesmo pintando temas religiosos que a tradição exigia distantes da realidade, por sua própria natureza.
A Anunciação (prancha XIII), atualmente no Museu de Nuremberg, é outra demonstração forte da sua capacidade de enfrentar os preconceitos de uma época. O anjo anuncia à Virgem que ela vai ser mãe, num pequeno quarto de uma casa modesta, sem mobília, apenas com uma janela aberta para o céu. Esta anunciação está tão longe das anunciações italianas (quase todas localizadas num pátio, no jardim ou no pórtico de soberbas mansões decoradas com mármore e outros ricos materiais, ou móveis elegantes), e tão longe das anunciações flamengas (colocadas em altas torres tornadas confortabilíssimas por ótimas donas de casa, de onde, pelas janelas, se descortinam as cidades e os ricos campos dos donos de terra), numa época em que anjos, arcanjos, santos e santas deviam ser apresentados sempre ricamente vestidos, em ouro, no esplendor de uma glória luxuosa, que é de admirar que um pintor ousasse representar a Senhora como uma plebeia, como já representara São Cristóvão com um pobre manto e o Menino com uma camisolinha sem uma renda, ao menos. Mais tarde, pintará o Cardeal François de Mies com todo o aparato cardinalício, em ouro e púrpura e pedras preciosas, sendo apresentado a uma tímida Virgem que não parece muito à vontade na sua condição de Rainha, mesmo vestida com modéstia. E São Pedro, encarregado da apresentação, tem apenas um simplicíssimo pano verde sobre o corpo.
Konrad Witz põe Nossa Senhora numa cela vazia, num andar alto, e seus olhos impiedosos registram cuidadosamente as traves, as vigas, os encaixes e as junturas e os pregos. É quase sacrílega esta teimosa vontade de colocar Nossa Senhora no espaço real, dimensionada como uma pessoa comum. Porém o resultado é uma anunciação rústica mas sentida, muito mais objetiva porque abriu mão de todo subjetivismo fantástico.
O retábulo de São Pedro, pintado dez anos depois do Specculum, é a prova da sua vitória. Trabalho grandioso e complexo, quando aberto media mais de seis metros. Infelizmente desmembrado, falta também a ele o painel central. Mas aqui as formas arquitetônicas já têm vida própria, não se moldam mais diretamente aos personagens. A perspectiva está dominada e até o movimento das figuras ganha em naturalidade. Na Adoração dos Reis Magos (prancha XV), se os dois reis de pé continuam desengonçados, o que está ajoelhado, Nossa Senhora e o Menino Jesus têm uma desenvoltura antes impossível, provavelmente obtida através do exercício da observação, que nem sequer deixa passar as rachaduras do reboco. Na Pesca Milagrosa (prancha XVI), a paisagem real (inclusive com as geleiras perenes do monte Branco, ao fundo), mais a movimentação das figuras e a simples mas efetiva construção cromática, mostram um artista maduro, fora de época como todos os verdadeiros gênios da pintura.


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Fonte:
Gênios da Pintura: Konrad Witz. Abril Cultural. São Paulo, 1967, págs. 2-6.

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