Konrad Witz
Konrad Witz
nasceu em 1400 e morreu em 1445. Nascido alemão, em Rottweil, morreu suíço, na
Basileia, e os dois países disputam a honra de
tê-lo como seu
pintor. As enciclopédias de arte informam que ele é "um mestre da
pintura alemã,.o principal nome da escola suíça".
Quase não há
informação documentada sobre Konrad Witz. Sabe-se apenas que era filho de Hans
Witz, pintor, de Württemberg. Teve cinco filhos. Morreu primeiro que a mulher.
Seu pai ficou com as crianças. Era rico, graças à pintura.
Estas
informações foram colhidas em documentos que .permitem deduzir o ano do seu
nascimento e o da morte. O primeiro documento, datado de 1447, é a nomeação de
Hans Witz como tutor dos netos. Este documento leva a outro, datado de um ano
antes (isto é, 1446), onde Ursula Treyger é declarada viúva — para o fim
específico de vender uma casa de propriedade do casal — e onde se diz que ela
era viúva havia um ano, o que leva a crer que Konrad morreu com a idade de 45
anos.
Os poucos
outros documentos referentes ao pintor informam ainda que ele entrou para a
Corporação dos Pintores da Basileia (Himmelzunft) — o sindicato dos pintores —
em 1434. Que casou em 1435 com uma cidadã renana e que, nessa ocasião, recebeu
o título de cidadão da Basileia. Que em 1439 comprou uma casa na rua principal
da cidade, "uma casa senhorial".
O último
documento é de 1454, quase dez anos depois da sua morte, quando uma filha do
artista entra para um mosteiro apresentando enorme dote que — segundo afirma —
é dinheiro ganho por seu pai com a pintura.
Sobre a formação artística de Konrad Witz não
se tem notícia. É muito provável que tenha aprendido a pintar com o próprio
pai. E, se é fato que Hans Witz é o mesmo Hans de Constança, que viveu na corte
de Filipe, o Bom, Duque de Borgonha, durante 1425 e 1426, pode-se deduzir que Konrad
lá estivesse também, em Dijon, onde não podia deixar de conhecer o pintor
favorito do duque, Jan van Eyck, que passou exatamente aqueles anos a serviço
do nobre.
Os críticos
de arte costumam fazer paralelos entre a obra de van Eyck e de Konrad Witz. Há
mesmo alguns pontos de contato, pelo menos quanto à técnica. Eyck é às vezes
apontado como o inventor da pintura a óleo; se não a inventou, pelo menos foi o
maior divulgador da nova técnica. E Konrad, desde 1426, parece só ter pintado a
óleo. Entre a sua Anunciação que está no Museu de Nuremberg e a de van Eyck,
que está em Washington, há até algumas semelhanças notáveis.
Se realmente
eles chegaram a se conhecer, foi um feliz conhecimento, porque todos os
afrescos que Konrad certamente pintou não chegaram aos nossos dias, e as poucas
obras que se conservaram são todas pintadas a óleo.
É mesmo
bastante provável que seu pai seja o dito Hans de Constança, porque é quase
certo que Konrad tenha estado nesta cidade: A
Pesca Milagrosa (prancha XVI), que representa o milagre dos peixes e é
considerada como uma obra-prima pela modernidade do tratamento da paisagem, é
construída sobre uma "paisagem vista", retratada pelo pintor. E não
faltam testemunhos de que a paisagem é do lago de Constança.
De lá eles
teriam vindo para a Basileia, atraídos pela magnificência do Concílio Ecumênico
da Igreja Católica, em 1431, fato que trouxe à cidade os maiores pintores da
época. Como a Igreja era, fundamentalmente, a grande compradora de quadros —
que os bispos encomendavam para as suas igrejas —, é natural que os pintores
acorressem à concentração de bispos convocados pelo papa. É possível,
inclusive, que estivessem atendendo a um convite de François de Mies, chanceler
da Borgonha e cardeal, que Konrad Witz retratou sendo apresentado à Virgem
Maria por São Pedro (prancha X/XI).
Seja qual
for o motivo que o levou a vis;tar a Basileia, é certa a sua presença na
cidade, em caráter permanente, pelo menos a partir de 1432 (quando o Concílio
ainda estava reunido), porque em 1434 ele é recebido na "Corporação do
Céu" como um pintor da cidade. Pelo regulamento das corporações isto
significa claramente que Konrad já estava estabelecido e "vivendo da
profissão de pintor" havia pelo menos dois anos.
Outra prova
de sua presença na Basileia, durante a realização do Concílio, é o quadro A Santa Família na Igreja, descoberto no
Museu Nacional de Capodimonte, em Nápoles. Supõe-se que tenha ido parar na
Itália levado por um dos participantes do Concílio; a figura masculina
retratada é muito semelhante à do humanista Enea Silvio Piccolomini, que
participou da reunião e, mais tarde (em 1460), foi eleito papa sob o nome de
Pio II. (Quando ainda secretário do Cardeal Capranica, ele escreveu sobre a Basileia:
"Sé um italiano quer formar uma ideia da Basileia, pense em uma Ferrara
mais aprazível e magnífica; e em casas de ricos, bem dispostas e decoradas como
em Florença não há melhores; e quanto a fontes, nem Viterbo tem tantas.")
Em 1435
Konrad casa com Ursula Treyger, parente do pintor Nicolau Rusch de Tubinga,
dito mestre Lawelin, com quem pintou, de parceria, uma sala do arsenal da
cidade. Em 1439 compra uma casa na Freie Strasse, indício de riqueza.
Vai então a
Genebra, onde assina em 1444 o grande altar de São Pedro. "Hoc opus pinxit
magister Conra-dus sapientis de Basilea. 1444": "Esta obra, pintou-a
o mestre Konrad, sábio da Basileia. 1444", por encomenda do Cardeal
François de Mies, então arcebispo de Genebra,
Um ano
depois está morto, e não se sabe, ao menos, se morreu em Genebra ou na
Basileia. Vários autores afirmam que o cardeal, terminado o Concílio, levou-o
consigo para Genebra, de onde datam, realmente, suas últimas obras, o retábulo
de São Pedro e O Cardeal François de Mies
Sendo Apresentado à Virgem por São Pedro, de 1444.
Circundado
por uma tradição gótica mas com uma sensibilidade e um espírito de observação
renascentistas, Konrad Witz é um homem isolado que construiu a Renascença alemã
à sua maneira, enfrentando um meio ainda em êxtase medieval. Witz é uma
exceção, num ambiente difícil. Uma grande exceção, daí a sua importância. Os críticos e historiadores da pintura são
unânimes em reconhecer nele um mestre com grande senso paisagístico,
sublinhando em suas obras alguns detalhes considerados avançadíssimos para a
época: a perspectiva, por exemplo.
Sob o
governo de Filipe, a cidade de Dijon passou por um grande desenvolvimento
artístico. Os domínios deste mecenas do Norte estendiam-se a Flandres e aos
Países-Baixos, de onde acorreram muitos pintores, fazendo florescer o
intercâmbio cultural. Isto, provavelmente, explica muita coisa da pintura de
Konrad Witz, como o interesse pelo espaço arquitetônico, evidente desde a sua
primeira obra conhecida, A Sacra Conversação (prancha II/III), também conhecida
no Brasil com o nome de A Santa Família
na Igreja. A luz corre sobre as superfícies do interior da igreja,
delimitando-a claramente, afugentando os mistérios góticos da arquitetura, E o
desenho mostra qual foi o esforço necessário para dar ideia de profundidade,
raramente alcançada nesta época em seu meio. As cores, por sua vez, revelam um
observador atento, seja na sombra da rua ensolarada ou na iluminação do manto
de Nossa Senhora: a sombra arroxeada equilibra perfeitamente com o amarelo, o
laranja e o vermelho, num jogo de complementares que dá vida ao quadro. Se as
pessoas são ainda um tanto convencionais, a figura do primeiro plano à direita
é retratada com um realismo invulgar.
Capacidade
de observação, ousadia e coragem parecem não ter mesmo faltado a Witz, bastando
ver com que fôlego empreendeu uma obra das dimensões do retábulo do Speculum. Complexo nas linhas gerais
(como o famoso retábulo do Cordeiro
Místico, pintado por van Eyck dez anos antes), o retábulo da Basileia não
pôde ser reunido: perdeu-se o grande painel central, e quatro outros,
provavelmente, foram destruídos durante as lutas religiosas da Reforma. Os
painéis encontrados e identificados podem ser vistos hoje nos museus da
Basileia, Dijon e Berlim.
O retábulo
foi inspirado no famoso tratado medieval "Speculum Humanae
Salvationis", que estabelece paralelos entre personagens e fatos do Antigo
e do Novo Testamento. Assim, os três camponeses que trazem água do poço de
Belém para Davi prefiguram a visita dos Reis Magos, como o Imperador Augusto e
a sibila Tiburtina prefiguram o Natal de Jesus Cristo. Os oito painéis externos
(dos quais, atualmente, só conhecemos cinco) representam cada um um personagem
isolado, colocado num ambiente interno, com a profundidade obtida mais através
da luz e sombra que com a perspectiva do desenho. Os painéis internos (dos
quais só não conhecemos um) apresentam dois personagens em cada, sempre
recortados num fundo de ouro adamascado. O sentido vertical e a sobriedade da
cor dominam a primeira série, enquanto o brilho do ouro e a composição mais
movimentada prevalecem na segunda, rica de desenho perspectivo.
Konrad Witz,
que surge das trevas e dos mistérios góticos para uma pintura emocionada e
viril, é um bom exemplo do mundo germânico da sua época, quando a Alemanha se
debatia entre as lendas ancestrais e o mundo latino. A religião e a cultura
ainda não tinham proporcionado aos povos nórdicos a clareza lógica do
Mediterrâneo. Para espantar as sombras das fábulas, usam a luz, talvez um pouco
fria, de uma razão esplendidamente organizada. Konrad vive na época de formação
da linguagem literária que Lutero depois consagrou, na época em que o
germanismo está captando o quanto pode da latinidade para formar sua cultura.
Desta cultura, ele será um dos grandes artífices. Mais que qualquer outro
artista, ele conseguiu dar forma e cor a esta "alma germânica" ingênua
e rústica, romântica mas objetiva, sentimental e concreta ao mesmo tempo. A
pintura do mestre da Basileia é toda cheia de contrastes, como o espírito dos
homens do seu tempo.
Em quase
todos os seus quadros há, pelo menos, um retratado. Os santos não são figuras
etéreas, puramente espírito. Não têm cara de santo, são — em primeiro lugar —
gente, gente sensível, profundamente humana. Os personagens, reclusos num
ambiente fechado, cercados por composições arquitetônicas, ou soltos ao ar
livre, dominam sempre o ambiente. Todo o seu esforço para captar a justa
dimensão da arquitetura e representá-la, todo o trabalho desenvolvido para
conquistar e dominar o espaço, corresponde à luta de seu povo para alcançar a
cultura dos latinos do Sul e do Ocidente.
Enquanto
outros pintores apenas aceitaram e incorporaram sugestões culturais
provenientes de outros lugares, de outros povos, de outros artistas, muitas
vezes por simples modismo, Konrad Witz lutou e conseguiu firmar-se com
autenticidade.
São Cristóvão (prancha IX), por exemplo,
é um notável esforço para libertar-se da tradição gótica, um esforço incrível
para a conquista do mundo à custa de observação pessoal e apesar da tradição.
Os reflexos na água demonstram a sua capacidade de observar e a sua disposição
de não se submeter às normas vigentes. Os círculos de água afastando-se do
santo que conduz sua preciosa e pesadíssima carga (porque o Menino Jesus está
carregado- com os pecados do homem) reforçam esta impressão, ao mesmo tempo que
garantem ao quadro um ritmo métrico que lembra as baladas medievais, que têm
seu encanto na repetição. O rosto de São Cristóvão tem a generosa humanidade de
todos os seus trabalhos. O bastão entrevisto enviesado dentro da água confirma
que ele pintava a partir do conhecimento, embora a paisagem esteja abrindo-se
para novos horizontes com muita timidez, porque a convenção ainda não foi
completamente expulsa. Mas, se compararmos esta paisagem com a da Pesca Milagrosa, vamos verificar que ele
acabou por dominar também a paisagem, introduzindo a prática de retratar a
paisagem e retratar pessoas, mesmo pintando temas religiosos que a tradição
exigia distantes da realidade, por sua própria natureza.
A Anunciação (prancha XIII), atualmente no
Museu de Nuremberg, é outra demonstração forte da sua capacidade de enfrentar
os preconceitos de uma época. O anjo anuncia à Virgem que ela vai ser mãe, num
pequeno quarto de uma casa modesta, sem mobília, apenas com uma janela aberta
para o céu. Esta anunciação está tão longe das anunciações italianas (quase
todas localizadas num pátio, no jardim ou no pórtico de soberbas mansões
decoradas com mármore e outros ricos materiais, ou móveis elegantes), e tão
longe das anunciações flamengas (colocadas em altas torres tornadas
confortabilíssimas por ótimas donas de casa, de onde, pelas janelas, se
descortinam as cidades e os ricos campos dos donos de terra), numa época em que
anjos, arcanjos, santos e santas deviam ser apresentados sempre ricamente
vestidos, em ouro, no esplendor de uma glória luxuosa, que é de admirar que um
pintor ousasse representar a Senhora como uma plebeia, como já representara São
Cristóvão com um pobre manto e o Menino com uma camisolinha sem uma renda, ao
menos. Mais tarde, pintará o Cardeal François de Mies com todo o aparato
cardinalício, em ouro e púrpura e pedras preciosas, sendo apresentado a uma
tímida Virgem que não parece muito à vontade na sua condição de Rainha, mesmo
vestida com modéstia. E São Pedro, encarregado da apresentação, tem apenas um
simplicíssimo pano verde sobre o corpo.
Konrad Witz
põe Nossa Senhora numa cela vazia, num andar alto, e seus olhos impiedosos
registram cuidadosamente as traves, as vigas, os encaixes e as junturas e os
pregos. É quase sacrílega esta teimosa vontade de colocar Nossa Senhora no
espaço real, dimensionada como uma pessoa comum. Porém o resultado é uma
anunciação rústica mas sentida, muito mais objetiva porque abriu mão de todo
subjetivismo fantástico.
O retábulo
de São Pedro, pintado dez anos depois do Specculum,
é a prova da sua vitória. Trabalho grandioso e complexo, quando aberto media
mais de seis metros. Infelizmente desmembrado, falta também a ele o painel
central. Mas aqui as formas arquitetônicas já têm vida própria, não se moldam
mais diretamente aos personagens. A perspectiva está dominada e até o movimento
das figuras ganha em naturalidade. Na Adoração
dos Reis Magos (prancha XV), se os dois reis de pé continuam desengonçados,
o que está ajoelhado, Nossa Senhora e o Menino Jesus têm uma desenvoltura antes
impossível, provavelmente obtida através do exercício da observação, que nem
sequer deixa passar as rachaduras do reboco. Na Pesca Milagrosa (prancha XVI),
a paisagem real (inclusive com as geleiras perenes do monte Branco, ao fundo),
mais a movimentação das figuras e a simples mas efetiva construção cromática,
mostram um artista maduro, fora de época como todos os verdadeiros gênios da
pintura.
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Fonte:
Gênios da Pintura: Konrad Witz. Abril Cultural. São Paulo, 1967, págs. 2-6.
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