sábado, 16 de julho de 2016

Rapsódia - Macunaíma, de Mário de Andrade

Por que rapsódia?
O próprio Mário teve indecisões ao classificar o livro. Primeiramente o chamou de "história", em um de seus prefácios, querendo aproximá-lo dos cantos populares, pelo muito de comum que possui com o gênero. Mas não era um título preciso e, lembrando-se da história da música e da literatura, chamou-o de rapsódia.
Rapsódia era a maneira de cantar dos velhos rapsodos gregos. Usando letras e solfas populares, os rapsodos as fundiam, reunindo as obras de vários autores que versavam temas afins, pertencentes a um mesmo ciclo.
Eram também rapsódias as gestas guerreiras medievais, os velhos romances versificados e cantados em melodias simples, pêlos jograis: a gesta de Rolando, Guilherme de Orange, o Conde Carlos, a Branca Flor, a Encantada.
São rapsódias as gestas de cangaceiros e de animais entoadas pelas feiras do Nordeste, na voz dos cegos cantadores e dos vendedores de folhetos de cordel: o Romance do Rio Preto, o Boi Surubi etc.
São também composições de natureza rapsódica: o bumba-meu-boi, os fandangos do sul paulista, os cateretês do Centro-Sul, os caboclinhos do Nordeste, os cortejos semirreligiosos e semicarnavalescos dos maracatus, as cheganças e os reisados. Essas modalidades compositivas, que Mário conhecia muito bem e estudou em Danças dramáticas do Brasil, obedecem ao processo rapsódico da suíte, comum à música erudita e popular, fundamento das mais antigas composições de todos os povos.
Este processo constitui uma união de várias pipi de estrutura e caráter distintos, todas de tipo coreográfíco, para formar obras complexas e maiores.
Macunaíma, de fato, como as rapsódias musicais, apresenta uma variedade de motivos populares que Mário de Andrade seriou, de acordo com as afinidades existentes entre eles, ligando-os, para efeito de unidade, com pequenos trechos de sua autoria, para tornar imperceptível a transição de um motivo para outro.
Mais tarde o livro concorreu como romance a um prêmio literário. A ideia não foi do autor, mas ele não a repudiou. No sentido antigo do romance, como vida e façanhas de um herói, na linha do Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, ou do Palmerim de Inglaterra, de Francisco de Morais, ou do Amadis de Gaula da tradição ibérica, Macunaíma pode ser lido também como romance, muito próximo da figura de gesta, e da epopeia medieval. Tem em comum com os heróis das gestas medievais: a sobre-humanidade (nascido de mulher virgem), o maravilhoso, estar fora do tempo e do espaço. Por isso o herói pode estar em todo o Brasil ao mesmo tempo. Por isso pode encontrar-se na São Paulo do século XX, com João Ramalho, que viveu no século XVI; pode convidar Bartolomeu de Gusmão, o "padre-voador", morto na Espanha no século XVIII, a viajar com ele no dorso de um tuiuiú. Como herói mítico, Macunaíma pode também encontrar-se na velha Praça Onze, Rio de Janeiro, no terreiro de Tia Ciata, com seus amigos Pixinguinha - "um negro filho de Ogum, bexinguento e fadista de profissão", Raul Bopp, Manuel Bandeira, Lamartine Babo, Jaime Ovalle e outros.
Desenvolveremos, mais tarde, as relações entre Macunaíma e as epopeias medievais: Macunaíma como novela de cavalaria carnavalizada, realizada às avessas, de ponta-cabeça, o anti-herói de cavalaria - medroso, egoísta, mentiroso, desleal, libidinoso etc.

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Fonte:
Os Livros da Fuvest 2002. Objetivo. São Paulo, 2002, págs. 28-29.

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