Por que rapsódia?
O próprio
Mário teve indecisões ao classificar o livro. Primeiramente o chamou de "história", em um de seus
prefácios, querendo aproximá-lo dos cantos populares, pelo muito de comum que
possui com o gênero. Mas não era um título preciso e, lembrando-se da história
da música e da literatura, chamou-o de rapsódia.
Rapsódia era a maneira de cantar dos
velhos rapsodos gregos. Usando letras e solfas populares, os rapsodos as
fundiam, reunindo as obras de vários autores que versavam temas afins,
pertencentes a um mesmo ciclo.
Eram também rapsódias as gestas guerreiras
medievais, os velhos romances versificados e cantados em melodias simples,
pêlos jograis: a gesta de Rolando, Guilherme de Orange, o Conde Carlos, a
Branca Flor, a Encantada.
São rapsódias as gestas de cangaceiros e de
animais entoadas pelas feiras do Nordeste, na voz dos cegos cantadores e dos
vendedores de folhetos de cordel: o Romance
do Rio Preto, o Boi Surubi etc.
São também
composições de natureza rapsódica: o bumba-meu-boi,
os fandangos do sul paulista, os cateretês do Centro-Sul, os caboclinhos
do Nordeste, os cortejos semirreligiosos e semicarnavalescos dos maracatus, as cheganças e os reisados.
Essas modalidades compositivas, que Mário conhecia muito bem e estudou em Danças dramáticas do Brasil, obedecem ao
processo rapsódico da suíte, comum à música erudita e popular, fundamento das
mais antigas composições de todos os povos.
Este
processo constitui uma união de várias pipi de estrutura e caráter distintos,
todas de tipo coreográfíco, para formar obras complexas e maiores.
Macunaíma, de fato, como as rapsódias
musicais, apresenta uma variedade de motivos populares que Mário de Andrade
seriou, de acordo com as afinidades existentes entre eles, ligando-os, para
efeito de unidade, com pequenos trechos de sua autoria, para tornar
imperceptível a transição de um motivo para outro.
Mais tarde o
livro concorreu como romance a um
prêmio literário. A ideia não foi do autor, mas ele não a repudiou. No sentido
antigo do romance, como vida e façanhas de um herói, na linha do Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, ou do Palmerim de Inglaterra, de Francisco de Morais, ou do Amadis de Gaula da tradição ibérica,
Macunaíma pode ser lido também como romance, muito próximo da figura de gesta,
e da epopeia medieval. Tem em comum com os heróis das gestas medievais: a sobre-humanidade (nascido de mulher
virgem), o maravilhoso, estar fora do
tempo e do espaço. Por isso o herói pode estar em todo o Brasil ao mesmo
tempo. Por isso pode encontrar-se na São Paulo do século XX, com João Ramalho,
que viveu no século XVI; pode convidar Bartolomeu de Gusmão, o
"padre-voador", morto na Espanha no século XVIII, a viajar com ele no
dorso de um tuiuiú. Como herói mítico, Macunaíma pode também encontrar-se na
velha Praça Onze, Rio de Janeiro, no terreiro de Tia Ciata, com seus amigos
Pixinguinha - "um negro filho de Ogum, bexinguento e fadista de
profissão", Raul Bopp, Manuel Bandeira, Lamartine Babo, Jaime Ovalle e
outros.
Desenvolveremos,
mais tarde, as relações entre Macunaíma
e as epopeias medievais: Macunaíma
como novela de cavalaria carnavalizada, realizada às avessas, de ponta-cabeça,
o anti-herói de cavalaria - medroso, egoísta, mentiroso, desleal, libidinoso
etc.
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Fonte:
Os Livros da Fuvest 2002. Objetivo. São Paulo, 2002, págs. 28-29.
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