sexta-feira, 15 de julho de 2016

O que significa morrer?

O que significa morrer?
A terceira parte da Apologia pretende ser a transcrição das últimas palavras endereçadas por Sócrates aos que haviam acabado de condená-lo a morrer bebendo cicuta. Em sua alocução, a mesma serenidade, o mesmo tom altaneiro: "Não foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta de audácia e porque não quis que ouvísseis o que para vós teria sido mais agradável, Sócrates lamentando-se, gemendo, fazendo e dizendo uma porção de coisas que considero indignas de mim, coisas que estais habituados a escutar de outros acusados". Sustenta-o uma certeza: mais difícil que evitar a morte é "evitar o mal, porque ele corre mais depressa que a morte". Quanto a esta, apenas pode ser uma destas duas coisas: "Ou aquele que morre é reduzido ao nada e não tem mais qualquer consciência, ou então, conforme ao que se diz, a morte é uma mudança, uma transmigração da alma do lugar onde nos encontramos para outro lugar. Se a morte é a extinção de todo sentimento e assemelha-se a um desses sonos nos quais nada se vê, mesmo em sonho, então morrer é um ganho maravilhoso. (...) Por outro lado, se a morte é como uma passagem daqui para outro lugar, e se é verdade, como se diz, que todos os mortos aí se reúnem, pode-se, senhores juízes, imaginar maior bem?" Apoiado nessas hipóteses — as únicas existentes a respeito de um fato que não permite certezas racionais —, o setuagenário Sócrates despede-se, tranquilo, de seus concidadãos: "Mas eis a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o j melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus".
A execução da pena teve de ser adiada por trinta dias. Como acontecia todos os anos, um navio oficial havia sido enviado ao santuário de Delos para comemorar a vitória de Teseu, o herói mitológico ateniense, sobre o Minotauro, o terrível monstro que habitava o labirinto de Creta e se alimentava de carne humana. Enquanto o navio não regressasse de sua missão sagrada, nenhum condenado podia ser executado.
No diálogo Fédon, Platão descreve as conversações que, durante os dias de espera na prisão, Sócrates mantivera com seus discípulos e amigos. Um problema se propunha a todos como urgente e atormentador: a morte, a morte que para Sócrates se tornava cada dia mais próxima. E, do mesmo modo que nas outras circunstâncias de sua atividade filosófica, Sócrates ocupava-se apenas de questões que eram propostas imediata e vivamente à sua consciência e à de seus interlocutores — assim, naqueles dias em que se aguardava o retorno do navio que partira para Delos, somente tinha sentido meditar e dialogar sobre um problema: o do significado da própria morte. Sócrates então debate com os amigos diversos argumentos que poderiam levar à admissão da imortalidade da alma, uma das únicas soluções que já apontara na parte final da Apologia, quando se despedira de seus juízes. Sobre a outra — a morte representar o nada, como longa noite de sono sem sonhos — nada havia a dizer, como nada havia a temer. Restava explorar a única possibilidade na qual o pensamento podia transitar, tecendo argumentos e conjecturas.
Mas o barco está prestes a retornar de Delos. Na véspera de sua chegada, um dos amigos avisa a Sócrates: "Amanhã terás de morrer". O mestre não se perturba: "Em boa hora, se assim o desejarem os deuses, assim seja". Suplicam-lhe que aceite a fuga que os amigos haviam preparado. Sócrates recusa. E explica: a única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer injustiças, nem mesmo em retribuição a uma injustiça recebida. Ninguém, nem os amigos, consegue convencê-lo a abdicar de sua consciência. Entra a mulher de Sócrates, Xantipa, trazendo os filhos para a despedida. Sócrates permanece sereno. Finalmente chega o carcereiro com a cicuta. Imperturbável, Sócrates toma o vaso que lhe é oferecido, de um só gole bebendo todo o veneno. Os amigos soluçam. Mas ele ainda os anima: "Não, amigos, tudo deve terminar com palavras de bom augúrio: permanecei, pois, serenos e fortes".
Ao sentir os primeiros efeitos da cicuta, Sócrates se deita. Aquele que sempre indagara sobre o significado das palavras e dos valores que regiam a conduta humana e investigara o sentido dos costumes e das leis que governavam a cidade buscava a consciência nas ações e nas afirmativas, mas não pretendia se subtrair às normas estabelecidas e às exigências dos preceitos e das instituições sociais e políticas. Porque não traíra sua consciência, preferira a morte a declarar-se culpado. Mas porque respeitava a lei não quisera fugir da prisão. Suas últimas palavras teriam sido ainda um testemunho dessa dupla fidelidade: a si mesmo e aos compromissos assumidos. Dirige-se a um dos amigos presentes, lembrando-lhe que j deviam um sacrifício ao deus Asclépio. E morre.


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Fonte:
Os Pensadores: Sócrates. Tradução: José Américo Motta Pessanha. Nova Cultural. São Paulo, 1999, págs. 10-13.

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