Ceci e Peri, um romance no Japão
"TÓQUIO
- A ópera O Guarani, de Carlos Gomes,
baseada no romance do mesmo título de José de Alencar, depois de percorrer meio
mundo e todo um século desde o Scala de Milão (onde estreou a 19 de março de
1870), passando pela Inglaterra, Califórnia e Rio de Janeiro, vai ser agora exibida
aos japoneses, dia 7 de setembro próximo, nesta Capital."
Esse é o
início de uma reportagem do correspondente do jornal Folha de S. Paulo, publicada em 24 de julho de 1979.
7 de
setembro de 1979! Neste ano está fazendo 122 anos que o romance O Guarani, de José de Alencar, começou a
ser publicado, um capítulo por dia, no jornal Diário do Rio de Janeiro.
Japão! Do
outro lado do mundo está sendo levada à cena uma adaptação desse romance
escrito na então capital do Brasil, país que estava começando a se firmar como
nação.
Provavelmente,
nunca foi tão longe a imaginação daquele menino que aos 11 anos já comovia seus
familiares e amigos mais chegados com suas leituras em voz alta, de acordo com
suas próprias palavras em Como e Porque
Sou Romancista.
"Não
havendo visitas de cerimônia, sentava-se minha boa mãe e sua irmã Dona Florinda
com os amigos que apareciam, ao redor de uma mesa de jacarandá, no centro da
qual havia um candeeiro.
Minha mãe e
minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem
ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à
leitura e era eu chamado ao lugar de honra.
Muitas
vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado
ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo e bem
pesado.
Lia-se até a
hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição.
Compensavam esse excesso as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o
qual desfazia-se em recriminações contra algum mau personagem ou acompanhava de
seus votos e simpatias o herói perseguido.
Uma noite,
daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das
páginas mais comoventes da nossa biblioteca. As senhoras, de cabeça baixa,
levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter os
soluços que rompiam-lhes o seio.
Com a voz
afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também, cerrando ao
peito o livro aberto, disparei em pranto, e respondia com palavras de consolo
às lamentações de minha mãe e suas amigas."
Não é
preciso muita imaginação do leitor para aproximar essa cena de um hábito que já
se enraizou no Brasil hoje: a reunião da família, à noite, para assistir à
telenovela.
O episódio
narrado por Alencar ocorre quando ele tem 10, 11 anos, isto é, por volta de
1840, ano do golpe da Maioridade de D. Pedro II, episódio da História do
Brasil, no qual tomou parte ativa o pai de Alencar, José Martiniano de Alencar.
DA INFÂNCIA NO CEARÁ AO ADVOGADO ALENCAR. NASCE UM ESCRITOR.
José
Martiniano de Alencar, o pai, era padre quando conheceu sua prima, Ana Josefina,
mãe do futuro romancista. Por amor dela, abandonou o sacerdócio e casou.
José
Martiniano de Alencar, o filho, nasce a 19 de março de 1829, em Mecejana, Ceará.
Em 1832, o
pai é eleito senador, e, dois anos depois, em 1834, torna-se presidente da
Província do Ceará, cargo que deixa em 1837, dirigindo-se, no ano seguinte,
1838, para o Rio de Janeiro. Alencar, que conta 9 anos, viaja com o pai.
Essa viagem
por terra, pelo interior do Nordeste, do Ceará à Bahia, causou profunda
impressão em Alencar, que fará referência a ela ainda por volta dos 45 anos,
logo no início de O Sertanejo:
"Os sertanejos escoteiros que ainda agora em jornada para Bahia ou
Pernambuco, sem outro companheiro mais do que seu cavalo, percorrem aquelas
solidões também por mim viajadas outrora ainda no alvorecer da
existência;..."
Dois anos
depois, em 1840, Alencar completa sua instrução primária, que iniciara no
Ceará, e, em 1844, aos 15 anos de idade, inscreve-se nos cursos preparatórios à
Faculdade de Direito de São Paulo, no mesmo ano, portanto, da publicação de A Moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo.
Alencar se
impressiona bastante com o livro, o primeiro romance brasileiro de sucesso. Põe-se
a ler os autores marcantes de sua época: Balzac, Alexandre Dumas, Alfredo de
Vigny, Chateaubriand e Victor Hugo.
Datam de
seus anos na Faculdade de Direito de São Paulo as primeiras publicações de
Alencar. Com outros primeiranistas da faculdade funda uma revista semanal
Ensaios Literários, onde publica um artigo de crítica (Questões de Estilo) e de história, sobre o índio Camarão.
Em 1848, aos
18 anos, Alencar escreve seu primeiro romance: Os Contrabandistas, que, segundo ele, teve seus originais destruídos
por um colega que usava suas folhas para acender o cachimbo. Se essa história
não for criação de Alencar, é explicável, dada a confusão que havia nas
repúblicas de estudantes.
Em 1848, aos
18 anos, transfere-se para a Faculdade de Direito de Olinda. Como em São Paulo,
sua principal preocupação não são os estudos de Direito, as leis, mas a
literatura. Em Olinda, interessa-se pelas crônicas do período colonial, como
fonte de personagens e enredos. Nessa época começa a redigir dois romances
históricos: A Alma de Lázaro e O Ermitão da Glória.
Em fins
desse mesmo ano, manifestam-se os primeiros sinais da tuberculose que acabaria
por matá-lo. É obrigado a voltar para São Paulo, onde se forma em 1850.
Em 1851, aos
22 anos, Alencar inicia-se na profissão de advogado, que exercerá até o fim de
sua vida, com raras e breves interrupções...
ADVOGADO, JORNALISTA, DEPUTADO, MINISTRO DA JUSTIÇA. SUCESSO DE PÚBLICO, INSUCESSO DE CRÍTICA
Instalado no
Rio de Janeiro, Alencar é convidado por seu ex-colega de faculdade, Francisco
Otaviano, a colaborar no jornal Correio
Mercantil. Aí, Alencar escreve diariamente sobre os mais diversos assuntos:
os acontecimentos sociais, as estreias de teatro, os novos livros, as questões
políticas, fatos marcantes da cidade, etc. A essa seção deu o nome de Ao Correr da Pena.
Alencar
estreia como jornalista aos 25 anos, em 1854, e faz muito sucesso. Tanto, que
no ano seguinte é gerente e redator-chefe de outro jornal, o Diário do Rio de Janeiro, onde agora
publica seus folhetins sobre fatos variados.
O primeiro
folhetim de Alencar data de 3 de setembro de 1854, e o último de 25 de novembro
de 1855.
Em 1856,
Domingos Gonçalves de Magalhães, poeta consagrado, que lançara oficialmente o
Romantismo no Brasil, com o livro Suspiros
Poéticos e Saudades, publica A
Confederação dos Tamoios, poema editado às expensas do Imperador, D. Pedro
II. Com esse poema, Magalhães desejava dar o modelo da poesia brasileira.
Alencar
publica, então, no Diário do Rio de Janeiro, uma série de críticas ao poema,
sob o pseudônimo de Ig. Várias pessoas escrevem também, defendendo o poeta,
inclusive uma que se assinou Outro Amigo
do Poeta, e que era o próprio D. Pedro. Era o primeiro conflito entre
Alencar e o Imperador.
Nesse mesmo
ano, 1856, Alencar escreve a Biografia do
Marquês de Paraná, A Constituinte
Perante a História e, em folhetins, seu primeiro romance: Cinco Minutos, que, no fim do ano, é
publicado em plaqueta e dado como brinde aos assinantes do jornal.
A partir
daí, aumenta muito a atividade de Alencar. No ano seguinte, 1857, começa a
publicar A Viuvinha, que interrompe. E é nesse mesmo ano que, como resposta à polemica
sobre A Confederação dos Tamoios,
escreve O Guarani, que aparece
primeiro em folhetim, no Diário do Rio de
Janeiro, e, logo em seguida, em livro. O sucesso foi extraordinário, como
conta Taunay em Reminiscências: "... O Rio de Janeiro em peso, por assim
dizer, lia O Guarani e seguia comovido e enlevado os amores tio puros e
discretos de Ceei e Peri e com extremada simpatia acompanhava, no meie dos perigos
e dos ardis dos bugres serragens, a sorte vária e periclitante dos principais
personagens do cativante romance...
Quando a São
Paulo chegava o correio, com muitos dias de intervalo então, reuniam-se muitos
estudantes numa república em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do
Rio para ouvir, absortos e sacudidos, de vez em quando por elétrico frêmito, a
leitura feita em voz alta por algum deles, que tivesse órgão mais forte. E o
jornal era depois disputado com impaciência e, pelas ruas, se viam agrupamentos
em torno dos fumegantes lampiões da iluminação pública de outrora — ainda
ouvintes a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor."
O sucesso de
O Guarani leva Alencar a tentar o
mesmo no teatro. Nesse mesmo ano escreve uma opereta (Noite de São João) e duas comédias (Verso e Reverso e O Demônio
Familiar).
No ano
seguinte, Alencar tenta o drama, e a peça As
Asas de um Anjo, logo depois de encenada, é proibida pela censura por imoral:
a heroína, uma prostituta, embora redimida pelo amor, é forte demais para o
provincianismo da sociedade brasileira.
Em 1860,
estreia o drama Mãe. A seguir,
Alencar viaja para o Ceará, procurando continuar a carreira política do pai,
que falecera. Candidata-se a deputado pelo Partido Conservador e é eleito.
Começa então a carreira política, que há de envolvê-lo, subtraindo-o, embora
não totalmente, à literatura.
Nessa mesma
viagem ao Ceará conhece seu sobrinho, então com 11 anos, Araripe Júnior; esse
menino, mais tarde, dedica-se à crítica literária e publicará um dos melhores
livros sobre a obra do tio.
Em 1861,
Alencar estreia na tribuna parlamentar. No ano seguinte, escreve Lucíola e o primeiro volume de As Minas de Prata.
Em 1864,
Alencar casa com Ana Cochrane, filha de um médico homeopata inglês, da mesma
família do Almirante Cochrane, herói da luta pela Independência. Mas o
casamento não esfria o romancista: desse mesmo ano é a primeira edição de Diva, e, em três meses, redige os cinco
últimos volumes de As Minas de Prata.
Em 1865, publica Iracema, seu segundo
maior sucesso depois de O Guarani, e,
no fim desse ano, começa a publicação de Cartas
de Erasmo ao Imperador.
Em 1865 e
1866, publica-se a primeira edição de As
Minas de Prata, em seis volumes.
Aos 39 anos
de idade, em 1868, Alencar torna-se Ministro da Justiça. No mesmo ano,
publica-se no Correio Mercantil uma
carta de Alencar apresentando Castro Alves a Machado de Assis.
No ano
seguinte, Alencar candidata-se ao Senado e obtém o primeiro lugar na votação.
Deixa então o Ministério da Justiça e volta à Câmara em oposição ao Imperador,
que veta seu nome ao Senado. Em Reminiscências, Taunay publica um diálogo que
teria havido entre o Imperador e Alencar, e que dá bem a medida do azedume das
relações entre o romancista e D. Pedro, que lhe teria dito:
"— No
seu caso, eu não me apresentava agora: o senhor é muito moço.
- Por esta
razão, Vossa Majestade devia ter devolvido o ato que o declarou maior antes da
idade legal."
OS ÚLTIMOS ANOS. UM POLÍTICO DESILUDIDO DEDICA-SE APENAS À LITERATURA. AUMENTA O SUCESSO DE PÚBLICO, AUMENTA O ATAQUE DA CRÍTICA.
O veto do
Imperador encerra a carreira política de Alencar que, desencantado, se volta
para a literatura. Tem apenas 41 anos, mas já se sente velho, pois, como
romântico autêntico, considera a juventude como o auge da vida. Tanto que, em
1870, publica A Pata da Gazela e O Gaúcho, com o pseudônimo de Sênio.
Data de outubro desse mesmo ano o pós-escrito da segunda edição de Iracema, refutando as críticas ao
estilo, à linguagem e à concepção do livro. Em dezembro redige a Advertência Indispensável Contra Enredeiros
e Maldizentes, incluída no primeiro volume de Guerra dos Mascates, que redige também nesse ano e que seria uma
sátira a personalidades do Império.
No ano de
1871 publica O Tronco do Ipê e, no
ano seguinte, Til e Sonhos d'Ouro.
Nessa época,
a crítica investe sistematicamente contra Alencar, durante um ano, toda semana.
Mas Alencar responde a ela e continua a escrever.
Em 1873, vem
à luz a primeira edição de Guerra dos
Mascates e Alfarrábios, que
reúne: O Garatuja, que se passa no
Rio colonial, O Ermitão da Glória e Alma de Lázaro.
Nesse mesmo
ano, estreia a peça O Jesuíta,
fracasso geral de público e de crítica. Por isso, Alencar, em O Globo, critica a indiferença do
público, a qual, segundo o autor, revelaria um desinteresse geral pelo texto
nacional. No mesmo jornal, Joaquim Nabuco replica a esse artigo e anuncia uma
série de artigos sobre a obra literária de Alencar. Assim se inicia alonga polêmica
Alencar-Nabuco, que se encerra em 14 de novembro desse mesmo ano (1873).
Em 1874, sai
Ubirajara, o segundo volume de Guerra dos Mascates e Ao Correr da Pena, reunião de seus
folhetins.
Em 1875,
aparecem Senhora e O Sertanejo, últimos livros publicados
em vida.
Em 1877,
Alencar viaja à Europa em tratamento de saúde, mas não consegue se recuperar.
Volta ao Rio, onde morre a 12 de dezembro do mesmo ano, aos 48 anos.
Relembrando
Alencar, escreve Machado de Assis:
"Tinha-lhe
afeto, conhecia-o desde o tempo em que ele ria, não me podia acostumar à ideia
de que a trivialidade da morte houvesse desfeito esse artista fadado para
distribuir a vida."
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Fonte:
José de Alencar: Leitura Comentada. Texto: José Luiz Beraldo. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-6.
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