"Nem me falta na vida honesto estudo /
com longa experiência misturado"
Dúvidas,
incertezas, hipóteses cercam até hoje a vida de Luís Vaz de Camões: no seu
tempo, só os reis tinham biógrafos, "e isto porque ser biógrafo era uma
função oficial remunerada..."
Camões não
foi rei. E, portanto, não houve registro minucioso e sistemático de sua vida,
nem por estudiosos contemporâneos, nem por parentes seus. O que se sabe do
talentoso e culto poeta, autor de Os
Lusíadas, está contido em observações que aparecem em alguns documentos, ou
em confissões feitas por ele mesmo. São pistas que permitem algumas conclusões,
como por exemplo a de que Camões teria nascido por volta de 1525, provavelmente
na cidade de Lisboa.
Quanto à sua
infância, há completo mistério. Teria sido órfão de mãe? Teria sido criado por
uma madrasta?
Um de seus
poemas sugere uma ama "que era uma fera":
............................................................
Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelizes obrigado
............................................................
Foi minha ama uma fera, que o destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mim
Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelizes obrigado
............................................................
Foi minha ama uma fera, que o destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mim
Se o poeta
foi ou não criado por uma ama, difícil afirmar. Certo é que sua família
enfrentou dificuldades para educar o filho: embora fidalga, prestadora de
serviços ao rei, era uma família pobre, sem recursos.
A obra de
Camões, no entanto, revela uma formação cultural sólida, de muita erudição.
Talvez tivesse ido estudar em Coimbra, a convite do tio D. Bento de Camões, que
era prior no Convento de Santa Cruz. Esta relação de parentesco teria
possibilitado ao poeta um período de tranquilidade e de muitas leituras:
escritores clássicos e modernos ou renascentistas, cronistas portugueses, obras
de cosmografia, de filosofia... No conjunto, as leituras foram responsáveis
pelo saber científico variado e profundo, à moda dos humanistas de seu tempo.
É de Coimbra
a possível convivência com a juventude fidalga da época, que tomava aulas no
convento, por volta de 1545. E também a vida boa, alegre, dos primeiros amores,
às margens das "doces e claras águas do Mondego", onde confessa que
"ledo e contente para mim vivia".
NO "CAIS DO MUNDO" A VIRADA DE SUA VIDA
Camões não
estaria, contudo, destinado à vidinha alegre e pacata de Coimbra. Antes dos
vinte anos vai para Lisboa, trocando a placidez das águas do Mondego pela vida
tumultuada da cidade que funcionava como o "caís do mundo". Torna-se
boêmio, envolve-se em brigas com fidalgos arruaceiros e prostitutas do Bairro
Alto da Lisboa noturna: estava iniciado na vida aventureira de perigos e de
amores. Se por vezes confessa não ser este o seu ideal de vida, e sim o da
companhia dos escritores clássicos, nunca deixou a boêmia nem a poesia: ambas
marcaram sua vida até os últimos anos, mesmo nas suas viagens para a África e
para o Oriente.
Em Lisboa
deve ter frequentado o meio aristocrático, quem sabe até a corte. Tinha talento
poético, inteligência arguta e bagagem cultural necessária a sustentar a vida
social no Paço: sabia respeitar seriamente a superioridade das damas; e sabia
brincar, descontraído e maroto, ao interpretar (ou glosar) os motivos (ou
motes) que as damas lhe lançavam em tom de desafio. E relacionava-se bem com
fidalgos da corte, como por exemplo o filho do conde de Linhares e D. Francisco
de Aragão. Já os intelectuais, como Sá de Miranda e António Ferreira, não lhe
dedicam uma palavra. Nem Camões os menciona. Silêncio de ambas as partes,
talvez a separar a vida inquieta e arruaceira do poeta da vida mais austera dos
letrados da Corte.
"NUA
MÃO SEMPRE A ESPADA E NOUTRA A PENA"
Como opção
profissional escolhe a carreira das armas, solução sempre oportuna para
fidalgos pobres. Em 1550, Camões torna-se "cavaleiro fidalgo da Casa
Real", alistando-se para ir às índias. Seu nome aparece registrado num
documento oficial da Casa da índia, de Lisboa:
"Luís
de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa à Mouraria;
escudeiro; de 25 anos; trouxe por fiador a seu pai: vai na nau de São Pedro de
Burgaleses".
Mas ele não
parte para a índia. Vai, algum tempo depois, para Ceuta — porto situado no
Marrocos, norte da África —, talvez desterrado por causa de uns amores que
arrumara no Paço, não se sabe se pela infanta D. Maria, irmã de D. João III, ou
por D. Catarina de Ataíde. Qual destas, ou outra, teria sido a Natércia que
aparece tantas vezes em seus poemas?
Em 1549, a
luta contra os mouros, em Ceuta, deixa-lhe uma marca definitiva: ferido em
combate, perde a vista direita, detalhe que se incorporou àquela imagem do
poeta que a História haveria de consagrar. Acabado o desterro e novamente em
Lisboa, outra aventura também não muito feliz — um ano de cadeia por causa de
uma briga com um funcionário do Palácio, numa tarde de procissão do Corpo de
Deus. O ferido, "sem aleijão", perdoa-o. E o poeta recebe também o
perdão do rei, D. João III.
Em 1553, a
aventura maior: Camões parte para a índia a serviço do Império. Suas navegações
seriam responsáveis pela carga de experiências que utilizaria em seu poema
épico sobre os feitos dos portugueses no Oriente.
Se a viagem
lhe traz largas experiências, traz também profundos dissabores. Sofre uma
tempestade perto do cabo da Boa Esperança. Naufraga na Indochina, na foz do rio
Mecon, quando voltava do Oriente para Goa, perdendo Dinamene, sua companheira
chinesa — foi deste naufrágio que Camões conseguiu se salvar a nado, levando
numa das mãos os manuscritos de Os
Lusíadas. Em Goa é preso por dívidas que, aliás, nunca o abandonaram...
Parece que o
poeta não desprezava a proteção de pessoas de prestígio, para si e para seus
companheiros, como o cronista Diogo do Couto e o historiador Magalhães Gandavo.
Foi dessas pessoas de prestígio que ele obteve certos favores: em 1555,
representa o Auto de Filodemo, na
ocasião em que D. Francisco Barreto assumia o cargo de governador da índia — um
ano depois é nomeado "provedor-mor dos bens de defuntos e ausentes",
em Macau, na China. Mais tarde, chega a colaborar também com autoridades,
defendendo-as de críticas, como foi o caso dos vice-reis D. Constantino de
Bragança e D. Francisco de Sousa Coutinho: destas relações, proveio sua
nomeação para a feitoria de Chaul, mas Camões não chega a tomar posse.
"ERROS MEUS, MÁ FORTUNA,
AMOR ARDENTE/EM MINHA
PERDIÇÃO SE CONJURARAM"
As
dificuldades financeiras que perseguiam Camões agravam-se no Oriente. Em 1567,
volta para Moçambique, graças a um amigo capitão, que lhe oferece um emprego e
lhe adianta 200 cruzados para a viagem. Parece que Camões não consegue pagar os
cruzados... E vive de esmolas.
De Moçambique
retorna a Lisboa à custa de Diogo do Couto e outros amigos, que lhe pagam as
dívidas e a viagem. Vem sem as poesias líricas, o livro Parnaso Lusitano, que lhe foi roubado, mas traz para Portugal Os Lusíadas, que publica em 1572.
"EU, EL-REI, FAÇO SABER QUE...
...havendo
respeito ao serviço que Luís de Camões, cavaleiro fidalgo de minha casa, me tem
feito nas partes da índia por muitos anos (...) e à suficiência que mostrou no
livro que fez das coisas da índia, me praz fazer-lhe mercê de 15 mil réis de
tença anual..."
Em Lisboa, a
pensão fornecida por D. Sebastião não é suficiente para tirá-lo da pobreza.
Pequena em relação a outras concedidas a letrados do Paço, dura somente três
anos e é paga com irregularidade. Daí a lenda das esmolas colhidas por Jau, o
javanês seu criado.
A morte de
Camões, em 1580, colhe-o na miséria: seu enterro foi feito por uma companhia
beneficente, a Companhia dos Cortesãos. Um registro feito por historiador diz:
"e o depositaram à porta do mosteiro de Sant'Anna, da banda de fora,
chãmente".
O prestígio
do poeta só tenderia a crescer após sua morte, perdurando até os dias de hoje.
No mesmo ano em que morreu, Portugal passa para o domínio da Espanha e o poema
épico Os Lusíadas começa a desempenhar a função de símbolo de vontade nacional,
reforçando a reivindicação da independência política. Mas Camões a nada
assistiu: "...enfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à
minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela".
Na verdade,
às experiências de guerra, cadeia, viagens, tempestade, naufrágios, mulheres,
pobreza, Camões acrescentara uma grande mágoa pelas injustiças que o império em
decadência lhe cometera. Foi o que quis expressar na última estrofe de sua
epopeia:
"Não mais, Musa,
não mais que a lira tenho
Destemperada e a voz
enrouquecida
E não do canto, mas de
ver que venho
Cantar a gente surda e
endurecida.
O favor com que mais
se acende o engenho
Não no dá a Pátria,
não, que está metida
No gosto da cobiça e
na rudeza
De uma austera, apagada e vil tristeza."
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Fonte:
Luís de Camões: Leitura Comentada. Texto: Nádia Battela Gotlib. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-5.
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