domingo, 10 de julho de 2016

Biografia de Camões

"Nem me falta na vida honesto estudo / com longa experiência misturado"
Dúvidas, incertezas, hipóteses cercam até hoje a vida de Luís Vaz de Camões: no seu tempo, só os reis tinham biógrafos, "e isto porque ser biógrafo era uma função oficial remunerada..."
Camões não foi rei. E, portanto, não houve registro minucioso e sistemático de sua vida, nem por estudiosos contemporâneos, nem por parentes seus. O que se sabe do talentoso e culto poeta, autor de Os Lusíadas, está contido em observações que aparecem em alguns documentos, ou em confissões feitas por ele mesmo. São pistas que permitem algumas conclusões, como por exemplo a de que Camões teria nascido por volta de 1525, provavelmente na cidade de Lisboa.
Quanto à sua infância, há completo mistério. Teria sido órfão de mãe? Teria sido criado por uma madrasta?
Um de seus poemas sugere uma ama "que era uma fera":
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Quando vim da materna sepultura
De novo ao mundo, logo me fizeram
Estrelas infelizes obrigado
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Foi minha ama uma fera, que o destino
Não quis que mulher fosse a que tivesse
Tal nome para mim
Se o poeta foi ou não criado por uma ama, difícil afirmar. Certo é que sua família enfrentou dificuldades para educar o filho: embora fidalga, prestadora de serviços ao rei, era uma família pobre, sem recursos.
A obra de Camões, no entanto, revela uma formação cultural sólida, de muita erudição. Talvez tivesse ido estudar em Coimbra, a convite do tio D. Bento de Camões, que era prior no Convento de Santa Cruz. Esta relação de parentesco teria possibilitado ao poeta um período de tranquilidade e de muitas leituras: escritores clássicos e modernos ou renascentistas, cronistas portugueses, obras de cosmografia, de filosofia... No conjunto, as leituras foram responsáveis pelo saber científico variado e profundo, à moda dos humanistas de seu tempo.
É de Coimbra a possível convivência com a juventude fidalga da época, que tomava aulas no convento, por volta de 1545. E também a vida boa, alegre, dos primeiros amores, às margens das "doces e claras águas do Mondego", onde confessa que "ledo e contente para mim vivia".

NO "CAIS DO MUNDO" A VIRADA DE SUA VIDA
Camões não estaria, contudo, destinado à vidinha alegre e pacata de Coimbra. Antes dos vinte anos vai para Lisboa, trocando a placidez das águas do Mondego pela vida tumultuada da cidade que funcionava como o "caís do mundo". Torna-se boêmio, envolve-se em brigas com fidalgos arruaceiros e prostitutas do Bairro Alto da Lisboa noturna: estava iniciado na vida aventureira de perigos e de amores. Se por vezes confessa não ser este o seu ideal de vida, e sim o da companhia dos escritores clássicos, nunca deixou a boêmia nem a poesia: ambas marcaram sua vida até os últimos anos, mesmo nas suas viagens para a África e para o Oriente.
Em Lisboa deve ter frequentado o meio aristocrático, quem sabe até a corte. Tinha talento poético, inteligência arguta e bagagem cultural necessária a sustentar a vida social no Paço: sabia respeitar seriamente a superioridade das damas; e sabia brincar, descontraído e maroto, ao interpretar (ou glosar) os motivos (ou motes) que as damas lhe lançavam em tom de desafio. E relacionava-se bem com fidalgos da corte, como por exemplo o filho do conde de Linhares e D. Francisco de Aragão. Já os intelectuais, como Sá de Miranda e António Ferreira, não lhe dedicam uma palavra. Nem Camões os menciona. Silêncio de ambas as partes, talvez a separar a vida inquieta e arruaceira do poeta da vida mais austera dos letrados da Corte.
"NUA MÃO SEMPRE A ESPADA E NOUTRA A PENA"
Como opção profissional escolhe a carreira das armas, solução sempre oportuna para fidalgos pobres. Em 1550, Camões torna-se "cavaleiro fidalgo da Casa Real", alistando-se para ir às índias. Seu nome aparece registrado num documento oficial da Casa da índia, de Lisboa:
"Luís de Camões, filho de Simão Vaz e Ana de Sá, moradores em Lisboa à Mouraria; escudeiro; de 25 anos; trouxe por fiador a seu pai: vai na nau de São Pedro de Burgaleses".
Mas ele não parte para a índia. Vai, algum tempo depois, para Ceuta — porto situado no Marrocos, norte da África —, talvez desterrado por causa de uns amores que arrumara no Paço, não se sabe se pela infanta D. Maria, irmã de D. João III, ou por D. Catarina de Ataíde. Qual destas, ou outra, teria sido a Natércia que aparece tantas vezes em seus poemas?
Em 1549, a luta contra os mouros, em Ceuta, deixa-lhe uma marca definitiva: ferido em combate, perde a vista direita, detalhe que se incorporou àquela imagem do poeta que a História haveria de consagrar. Acabado o desterro e novamente em Lisboa, outra aventura também não muito feliz — um ano de cadeia por causa de uma briga com um funcionário do Palácio, numa tarde de procissão do Corpo de Deus. O ferido, "sem aleijão", perdoa-o. E o poeta recebe também o perdão do rei, D. João III.
Em 1553, a aventura maior: Camões parte para a índia a serviço do Império. Suas navegações seriam responsáveis pela carga de experiências que utilizaria em seu poema épico sobre os feitos dos portugueses no Oriente.
Se a viagem lhe traz largas experiências, traz também profundos dissabores. Sofre uma tempestade perto do cabo da Boa Esperança. Naufraga na Indochina, na foz do rio Mecon, quando voltava do Oriente para Goa, perdendo Dinamene, sua companheira chinesa — foi deste naufrágio que Camões conseguiu se salvar a nado, levando numa das mãos os manuscritos de Os Lusíadas. Em Goa é preso por dívidas que, aliás, nunca o abandonaram...
Parece que o poeta não desprezava a proteção de pessoas de prestígio, para si e para seus companheiros, como o cronista Diogo do Couto e o historiador Magalhães Gandavo. Foi dessas pessoas de prestígio que ele obteve certos favores: em 1555, representa o Auto de Filodemo, na ocasião em que D. Francisco Barreto assumia o cargo de governador da índia — um ano depois é nomeado "provedor-mor dos bens de defuntos e ausentes", em Macau, na China. Mais tarde, chega a colaborar também com autoridades, defendendo-as de críticas, como foi o caso dos vice-reis D. Constantino de Bragança e D. Francisco de Sousa Coutinho: destas relações, proveio sua nomeação para a feitoria de Chaul, mas Camões não chega a tomar posse.

"ERROS MEUS, MÁ FORTUNA,
AMOR ARDENTE/EM MINHA
PERDIÇÃO SE CONJURARAM"
As dificuldades financeiras que perseguiam Camões agravam-se no Oriente. Em 1567, volta para Moçambique, graças a um amigo capitão, que lhe oferece um emprego e lhe adianta 200 cruzados para a viagem. Parece que Camões não consegue pagar os cruzados... E vive de esmolas.
De Moçambique retorna a Lisboa à custa de Diogo do Couto e outros amigos, que lhe pagam as dívidas e a viagem. Vem sem as poesias líricas, o livro Parnaso Lusitano, que lhe foi roubado, mas traz para Portugal Os Lusíadas, que publica em 1572.

"EU, EL-REI, FAÇO SABER QUE...
...havendo respeito ao serviço que Luís de Camões, cavaleiro fidalgo de minha casa, me tem feito nas partes da índia por muitos anos (...) e à suficiência que mostrou no livro que fez das coisas da índia, me praz fazer-lhe mercê de 15 mil réis de tença anual..."
Em Lisboa, a pensão fornecida por D. Sebastião não é suficiente para tirá-lo da pobreza. Pequena em relação a outras concedidas a letrados do Paço, dura somente três anos e é paga com irregularidade. Daí a lenda das esmolas colhidas por Jau, o javanês seu criado.
A morte de Camões, em 1580, colhe-o na miséria: seu enterro foi feito por uma companhia beneficente, a Companhia dos Cortesãos. Um registro feito por historiador diz: "e o depositaram à porta do mosteiro de Sant'Anna, da banda de fora, chãmente".
O prestígio do poeta só tenderia a crescer após sua morte, perdurando até os dias de hoje. No mesmo ano em que morreu, Portugal passa para o domínio da Espanha e o poema épico Os Lusíadas começa a desempenhar a função de símbolo de vontade nacional, reforçando a reivindicação da independência política. Mas Camões a nada assistiu: "...enfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela".
Na verdade, às experiências de guerra, cadeia, viagens, tempestade, naufrágios, mulheres, pobreza, Camões acrescentara uma grande mágoa pelas injustiças que o império em decadência lhe cometera. Foi o que quis expressar na última estrofe de sua epopeia:
"Não mais, Musa, não mais que a lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
De uma austera, apagada e vil tristeza."



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Fonte:
Luís de Camões: Leitura Comentada. Texto: Nádia Battela Gotlib. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-5.

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