O texto original redefinido
Até aqui,
nossa rápida incursão pelo conto de Borges tentou questionar a visão
tradicional de texto, sugerida pelas teorias da tradução esboçadas no início
deste capítulo. Como sugere nossa leitura de "Pierre Menard, autor dei Quijote", traduzir não pode ser
meramente o trans-porle, ou a transferência, de significados estáveis de uma
língua para outra, porque o próprio significado de uma palavra, ou de um texto,
na língua de partida, somente poderá ser determinado, provisoriamente, através
de uma leitura. Assim, se voltarmos às nossas questões iniciais, referentes ao
próprio título deste livro, parece ficar mais claro que, ao traduzirmos translation workshop por "oficina
de tradução", o que acontece não é uma transferência total de significado,
porque o próprio significado do "original" não é fixo ou estável e
depende do contexto em que ocorre. Assim, antes de traduzir translation workshop por "oficina
de tradução", estabeleceu-se o contexto em que havia originalmente ocorrido:
título de um curso especial e avançado, oferecido por uma universidade
americana. Ao mesmo tempo, a tradução que sugeri, "oficina de
tradução", como o Quixote de Menard em relação ao Quixote de Cervantes,
passa a existir num outro contexto e ganha vida própria, a partir do momento em
que se transforma no título de um livro publicado no Brasil.
O texto,
como o signo, deixa de ser a representação "fiel" de um objeto
estável que possa existir fora do labirinto infinito da linguagem e passa a ser
uma máquina de significados em potencial. A imagem exemplar do texto
"original" deixa de ser, portanto, a de uma sequência de vagões que
contêm uma carga determinável e totalmente resgatável. Ao invés de
considerarmos o texto, ou o signo, como um receptáculo em que algum
"conteúdo" possa ser depositado e mantido sob controle, proponho que
sua imagem exemplar passe a ser a de um palimpsesto.
Segundo os dicionários, o substantivo masculino palimpsesto, do grego palímpsestos
("raspado novamente"), refere-se ao "antigo material de escrita,
principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço,
duas ou três vezes [...] mediante raspagem do texto anterior".
Metaforicamente,
em nossa "oficina", o "palimpsesto" passa a ser o texto que
se apaga, em cada comunidade cultural e em cada época, para dar lugar a outra
escritura (ou interpretação, ou leitura, ou tradução) do "mesmo"
texto. Assim, como nos ilustrou o conto de Borges, o texto de Dom Quixote não
pode ser um conjunto de significados estáveis e imóveis, para sempre
"depositados" nas palavras de Miguel de Cervantes. O que temos, o que
é possível ter, são suas muitas leituras, suas muitas interpretações — seus
muitos "palimpsestos".
A tradução,
como a leitura, deixa de ser, portanto, uma atividade que protege os
significados "originais" de um autor, e assume sua condição de
produtora de significados; mesmo porque protegê-los seria impossível, como tão
bem (e tão contrariadamente) nos demonstrou o borgiano Pierre Menard.
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Fonte:
Oficina de Tradução, por: Rosemary Arrojo. Editora Ática, 2ª Edição. São Paulo, 1992, págs. 22-24.
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