quinta-feira, 7 de julho de 2016

O latim medieval, língua escrita

O latim medieval, língua escrita
A Idade Média apresenta os mesmos caracteres da Idade Latina, mas com os sinais trocados. A primeira grande oposição, que é a central, se encontra na antinomia paganismo x cristianismo. O mundo pagão tem como fulcro o corpo; mas o povo cristão está inteiramente voltado para a alma. Em vez do culto do corpo, a cultura do espírito. O corpo tem de crescer, alimentar-se, busca aumentar o seu espaço físico. Politicamente, o Estado se faz poderoso, alarga-se em império, torna-se cada vez mais imperialista. Mas a Idade Média não é imperial, é universal: o espírito humano é o mesmo em todas as latitudes. O Papa não é imperador, é pai, e a sua Paternidade lhe advém da qualidade de vigário de Cristo. No Ocidente, a ideia imperial não frutificou. Foram empresas fracassadas tanto o Império de Carlos Magno, quanto o Sacro Império Alemão. Não se faziam guerras de conquista, lutava-se pelo espírito. Ora era preciso libertar o Santo Sepulcro da guarda dos infiéis, ora era preciso combater em outras frentes contra os turcos ou os sarracenos. A Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, elevou aos altares, com as labaredas da Inquisição, humilde camponesa de Domrémy. As guerras "leigas", por assim dizer, não tinham caráter imperialista; resultavam de intrigas da Corte, a que se mesclava quase sempre a luta pela sucessão de um trono. Ao contrário do que se dava no Império Romano, a "expansão" não representava nenhuma palavra de ordem, o romano gostava da arena, do anfiteatro, do campo de batalha, da ruidosa agitação da Urbs. O homem medieval, ao contrário, escondia-se, metia-se nas florestas, Fechava-se nos castelos, quando leigos, recolhiam-se aos mosteiros, quando clérigos. Nesse espaço místico, de cânticos e orações, não havia lugar para a sensualidade da palavra. A oralidade, como expressão estética, apesar dos notabilíssimos estudos de Paul Zumthor, não estava no coração do homem medieval. A palavra era órgão, instrumento, meio de comunicação e de expressão do pensamento, a ele servia, a, ele não se sobrepunha: ancilla intellectus. Não havia oradores e sim professores, não se construíam teatros e sim universidades, não se conduzia o povo para as brutalidades da arena e sim para o recolhimento nas catedrais ou para a meditação nos conventos. A palavra não se ataviava na boca de pregadores, mais afeitos a rezar com os fiéis. Refugiava-se no texto, na escrita, no manuscrito, O manuscrito é a casa da palavra medieval. Por isso tinha a sua morada bem defendida, nas bibliotecas conventuais. Umberto Eco captou muito bem, em seu O nome da rosa, esse sentido esotérico do manuscrito medieval. Aqueles que ultrapassavam as fronteiras do espírito de clausura medieval e se punham nas ruas a cantar e declamar o que era para ser lido com discrição e sensibilidade tornavam-se objeto de repulsa e de anátemas. Foi o que se deu com os turbulentos goliardos, dos quais disse Ricardo Árias y Árias
En segundo lugar, tenemos abundantes datos para afirmar Ia existencia de clérigos y estudiantes errabundos que vivían ai marcjnn y luom de toda disciplina, burlando leyes eclesiásticas y civiles, y contra los quales obispos y concilios promulgaron continuosdecretoss sin aparentes resultados. (1970, p. 8.)
A língua latina medieval é a língua sábia dos doutores, a língua das Universidades, língua universal. "Lês mêmes écrits se lisaient partout", salientou Meillet. Sem dúvida, ao lado dessa língua culta, vicejavam os romanços populares. Contudo, embora tivesse optado pelo volgare illustre, Dante Alighieri ainda escreveu um poema teológico.
As coisas profanas ficavam melhor no vozear românico, na fala quotidiana do povo, mais neolatina que latina. Nela é que se exteriorizam os trovadores, para cantar os seus amores, falsos ou verdadeiros, ou para satirizar desafetos ou acontecimentos. Essa literatura não é pagã, mas não tem raízes cristãs; nela colaboram também, e com muito valor, judeus e árabes. E já se vai deslocando dos céus medievais para os raios solares do Renascimento. Da clausura para a abertura.


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Fonte:
A Língua Portuguesa no Mundo, por: Sílvio Elia. Editora Ática. São Paulo, 1989, págs. 59-61.

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