O latim medieval, língua escrita
A Idade
Média apresenta os mesmos caracteres da Idade Latina, mas com os sinais
trocados. A primeira grande oposição, que é a central, se encontra na antinomia
paganismo x cristianismo. O mundo
pagão tem como fulcro o corpo; mas o povo cristão está inteiramente voltado
para a alma. Em vez do culto do
corpo, a cultura do espírito. O corpo tem de crescer, alimentar-se, busca
aumentar o seu espaço físico. Politicamente, o Estado se faz poderoso,
alarga-se em império, torna-se cada
vez mais imperialista. Mas a Idade Média não é imperial, é universal: o
espírito humano é o mesmo em todas as latitudes. O Papa não é imperador, é pai,
e a sua Paternidade lhe advém da qualidade de vigário de Cristo. No Ocidente, a
ideia imperial não frutificou. Foram empresas fracassadas tanto o Império de
Carlos Magno, quanto o Sacro Império Alemão. Não se faziam guerras de
conquista, lutava-se pelo espírito. Ora era preciso libertar o Santo Sepulcro
da guarda dos infiéis, ora era preciso combater em outras frentes contra os
turcos ou os sarracenos. A Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra,
elevou aos altares, com as labaredas da Inquisição, humilde camponesa de
Domrémy. As guerras "leigas", por assim dizer, não tinham caráter
imperialista; resultavam de intrigas da Corte, a que se mesclava quase sempre a
luta pela sucessão de um trono. Ao contrário do que se dava no Império Romano,
a "expansão" não representava nenhuma palavra de ordem, o romano
gostava da arena, do anfiteatro, do campo de batalha, da ruidosa agitação da Urbs. O homem medieval, ao contrário,
escondia-se, metia-se nas florestas, Fechava-se nos castelos, quando leigos,
recolhiam-se aos mosteiros, quando clérigos. Nesse espaço místico, de cânticos
e orações, não havia lugar para a sensualidade da palavra. A oralidade, como
expressão estética, apesar dos notabilíssimos estudos de Paul Zumthor, não
estava no coração do homem medieval. A palavra era órgão, instrumento, meio de
comunicação e de expressão do pensamento, a ele servia, a, ele não se
sobrepunha: ancilla intellectus. Não havia oradores e sim
professores, não se construíam teatros e sim universidades, não se conduzia o
povo para as brutalidades da arena e sim para o recolhimento nas catedrais ou
para a meditação nos conventos. A palavra não se ataviava na boca de
pregadores, mais afeitos a rezar com os fiéis. Refugiava-se no texto, na
escrita, no manuscrito, O manuscrito é a casa da palavra medieval. Por isso
tinha a sua morada bem defendida, nas bibliotecas conventuais. Umberto Eco
captou muito bem, em seu O nome da rosa,
esse sentido esotérico do manuscrito medieval. Aqueles que ultrapassavam as
fronteiras do espírito de clausura medieval e se punham nas ruas a cantar e
declamar o que era para ser lido com discrição e sensibilidade tornavam-se
objeto de repulsa e de anátemas. Foi o que se deu com os turbulentos goliardos, dos quais disse Ricardo Árias
y Árias
En segundo lugar, tenemos abundantes datos
para afirmar Ia existencia de clérigos y estudiantes errabundos que vivían ai
marcjnn y luom de toda disciplina, burlando leyes eclesiásticas y civiles, y contra
los quales obispos y concilios promulgaron continuosdecretoss sin aparentes
resultados. (1970, p. 8.)
A língua
latina medieval é a língua sábia dos doutores, a língua das Universidades,
língua universal. "Lês mêmes écrits se lisaient partout", salientou
Meillet. Sem dúvida, ao lado dessa língua culta, vicejavam os romanços
populares. Contudo, embora tivesse optado pelo volgare illustre, Dante Alighieri ainda escreveu um poema
teológico.
As coisas
profanas ficavam melhor no vozear românico, na fala quotidiana do povo, mais
neolatina que latina. Nela é que se exteriorizam os trovadores, para cantar os
seus amores, falsos ou verdadeiros, ou para satirizar desafetos ou
acontecimentos. Essa literatura não é pagã, mas não tem raízes cristãs; nela
colaboram também, e com muito valor, judeus e árabes. E já se vai deslocando
dos céus medievais para os raios solares do Renascimento. Da clausura para a
abertura.
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Fonte:
A Língua Portuguesa no Mundo, por: Sílvio Elia. Editora Ática. São Paulo, 1989, págs. 59-61.
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