domingo, 10 de julho de 2016

O cronista deve prestar atenção ao banal

O cronista deve prestar atenção ao banal
A crônica de Lourenço Diaféria, tomando por base o cenário paulista, segue outra vertente do humorismo: a precedência do fato sobre os personagens que o vivem. Jornalisticamente, o narrador confere mais importância ao acontecimento em si, porque é a partir dele que depreenderemos o lado risível de cenas que se repetem no dia-a-dia, embora vividas por atores diferentes. É bom lembrar que Stanislaw Ponte Preta assume outra estratégia, representando outra vertente, pois ele é o grande construtor de tipos que representam a índole do povo brasileiro, mostrando ao leitor que os fatos que aqui acontecem são o produto de um caráter diversificado, mas sem o necessário equilíbrio. O caos urbano e visto por Sérgio Porto como consequência de um país formado por moçoilas ávidas de prazer e fama, rapazinhos ingênuos, políticos incultos e altamente corruptíveis, enfim, toda uma galeria de seres sem o conteúdo humano capaz de unificar nosso caráter, tornando-nos mais fortes, mais representativos de uma nação habilitada a governar o seu destino. Um enfoque mais pessimista, sem dúvida, na medida em que o realismo do cronista Ponte Preta revela o quanto é difícil mudar o rumo das coisas onde prevalece uma mentalidade amarrada a insólitos padrões.
Lourenço Diaféria se mostra mais otimista: consciente de que sua função é prestar atenção ao banal, ele deixa de lado os tipos (mais duradouros e, portanto, índices de uma situação difícil de ser mudada) e focaliza os acontecimentos (mais efêmeros e, assim, com possibilidades de não acontecer de novo). Esses acontecimentos são narrados em textos organizados de forma que não haja lacunas impedindo o leitor de visualizar a totalidade cênica. Repórter com pleno domínio da reportagem, ele vai juntando os retalhos da informação, costurando-os com a linha invisível que torna o relato verossímil, uma vez que é estruturado de acordo com as leis da coerência interna do texto, onde as peças são ajustadas como se fizessem parte de um quebra-cabeça montado pelo cronista. B claro que as peças não são reunidas ao acaso, pois o escritor procura sempre explorar a polissemia das palavras e o silêncio do discurso.
Essa predominância do fato sobre os personagens pode ser vista nas cinco crônicas que têm por título "Os gatos pardos da noite", formando o núcleo do livro Um gato na terra do tamborim. Já na apresentação — que Diaféria ironicamente chama de "Curriculurn mortis do autor" — ele afirma que vai "tentar decifrar as besteiras que todos os dias se cometem por aí", atingindo "os desvalidos, os chutados, os amofinados, que se equilibram nos muros da vida, os operários com e sem marmita, e as meninas enfurnadas em salas escuras sobre infinitas costuras — que não têm tempo, nem saco, nem dinheiro para fazer masturbação mental em frente de um copo de uísque".


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Fonte:
A Crônica, por: Jorge de Sá. Editora Ática, 4ª Edição. São Paulo, 1992, págs. 38-39.

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