A Essência do Alcorão
Chama-se
Alcorão ou "Livro por excelência", a obra onde estão consignadas as
doutrinas, os erros e as virtudes do pró fé Ia Maomé. Seus capítulos ou Soaras,
ao todo são cento e quatorze, de comprimento desigual, com títulos especiais,
tirados de algum dos versículos. Em geral são em prosa, mas com frequentes
rimas de um belo lirismo. No início de cada capítulo, com exceção do nono,
lê-se: Em nome do Senhor, clemente e misericordioso (Besm Ellah elrohman el-rahim), fórmula de que os muçulmanos fazem preceder
todos os seus escritos.
O Alcorão
está escrito há tempo imemorial numa mesa que os muçulmanos chamam de
"mesa guardada", em razão dos milhares de "djins" ou anjos
que vigiam em roda, para que os demônios não alterem o seu conteúdo. Ela é tão
comprida como o espaço que separa o céu da terra, tão larga como a distância do
oriente ao ocidente; é feita de uma só pedra preciosa, da maior alvura. Diz a
tradição que o livro de Maomé estava aos pés do trono de Alá no sétimo céu; foi
dali que o anjo Gabriel o levou ao profeta, escrito em papel ornado de seda e
de pedrarias raras.
Porém, como
os versículos lhe fossem revelados de quando em quando, conforme ocorria o fato
importante, a obra não tem unidade de inspiração e de pensamento; o autor, às
vezes, não só repete, como contradiz-se. Se o profeta publicava um versículo
novo, logo seus discípulos o aprendiam de cor, e o escreviam sobre folhas de
palmeira, ou então em pedras brancas ou tiras de couro tiradas das espáduas dos
carneiros. Depois, os versículos foram encerrados num cofre e confiado a uma
das esposas de Maomé. Mais tarde, Zeid, o melhor dos secretários do profeta,
recompilou-os sem ordem de tempo nem de matéria; esse é o motivo por que se
encontra no fim o que evidentemente pertence ao princípio; o que foi revelado a
Maomé na cidade de Medina, está misturado com o que lhe foi revelado na Meca, e
mesmo num só capítulo estão versículos revelados numa e outra cidade. Tudo foi
recompilado sem ordem; cada coisa se acha conforme se apresentou à mão do compilador.
É por isso também que os primeiros capítulos são de extrema extensão, e os
últimos curtíssimos. O IX começa do seguinte modo:
"Este livro é distribuído numa ordem
judiciosa; porque é obra daquele que possui toda sabedoria e ciência."
Independentemente
das dúvidas ocasionadas por esta confusão, nascem outras da obscuridade
intrínseca de várias passagens. Por isso, os teólogos e os comentaristas
tiveram de se fatigar infinitamente para se entenderem com esta misturada de
visões, de contos, de preceitos e de conselhos, que vão do sublime ao absurdo.
A ausência
das vogais no alfabeto árabe, como nos outros idiomas semíticos, e a
circunstância de que a introdução da pontuação foi muito posterior a Maomé,
cooperaram muito para o aumento das dificuldades de interpretação do livro.
Existem sete
edições oficiais deste livro de Maomé: duas publicadas em Medina, uma na Meca,
uma em Kufa, as outras em Bosra e na Síria, sem contar as diversas da Vulgata.
Elas diferem entre si quanto a números de versículos, desde seis mil até seis
mil duzentos e trinta e seis.
O sabeísmo,
antiga religião dos árabes, tinha degenerado num culto supersticioso; o
cristianismo, que penetrava na península, fazia sentir a necessidade de uma
religião de moral e de espírito que soltasse Deus e os homens dos laços da
matéria; porém o sabeísmo tinha, para obstar ao seu triunfo, de um lado o
respeito pela antiga fé, de outro, a oposição dos judeus, finalmente as
heresias. O novo culto não podia, portanto, ser mais do que uma transição entre
estes elementos diversos. Maomé, o profeta iletrado, teve de servir-se de o u
trem para formar um código e obter o conhecimento das outras religiões. A
história designa como seus colaboradores o judeu Abdala-ebn-Salam, o monge
nestoriano Sérgio, e Salvano, mago convertido ao cristianismo; alguns citam
também um tal de Aich, livreiro cristão, que lhe deu a Bíblia de presente.
Estas tradições discordantes não fazem talvez mais do que simbolizar nestas
diversas personagens a tríplice influência das antigas religiões sobre a nova.
Efetivamente, a que na lei de Maomé parece referir-se ao culto dos persas, já
tinha podido ser introduzida na Arábia pelas doutrinas dos sabeus. Dificilmente
parece que Maomé tenha tido conhecimento do Evangelho, o que dele tira é pouca coisa,
faz uso mais frequente do Antigo Testamento, evitando-se expressamente o
Pentateuco e os Salmos, baseando-se nos patriarcas, contando mesmo a sua
história, no intuito de restabelecer os seus ensinos, os seus exemplos.
Há cerca de
doze séculos que o livro de Maomé é venerado por nações poderosas do Oriente
Médio, como código religioso e político, e o respeito pelo seu conteúdo
estende-se até à sua forma exterior. Todo muçulmano é obrigado a tirar ou a
mandar tirar uma cópia do Alcorão. Os sheiks e sultões devem possuir duas
cópias, como fiel e como príncipe. Tais livros são enriquecidos com iluminuras
de ouro incrustadas de pedras preciosas; um muçulmano não lhe tocaria sem ter
purificado o seu corpo com as abluções rituais, e jamais o teria, quando o lesse
mais baixo do que a cintura. Muitos dos versículos do Alcorão são pintados nos
estandartes e nas bandeiras dos príncipes árabes. O livro sagrado vai com eles
para a guerra e consultam-no em casos duvidosos, e considera-se como uma
profanação deixá-lo cair nas mãos dos não-crentes.
Ademais, o
Alcorão é considerado pelos árabes como sendo uma obra-prima literária. Na
verdade há muita beleza e poesia na maioria dos versículos do Alcorão. Podemos
dizer ainda que toda a obra de Maomé, se apoia na certeza de uma vida depois da
morte, uma vida de delícias, passada num verdadeiro paraíso de gênios. O
profeta tirou da beleza da obra uma prova de sua redação divina, desafiando
qualquer mortal ou qualquer anjo a escrever uma página de tão grande mérito.
Os muçulmanos
veneram além do Alcorão, a Sunna ou
tradição que corresponde à Misna dos
judeus. São doutrinas transmitidas de viva voz pelo profeta e recompiladas por
escrito, dois séculos depois, pelo sábio AI-Bochari, que, de trezentas mil
tradições incertas, tirou, depois de as ter examinado, sete mil e duzentas e
sessenta e cinco autênticas. Ele ia todos os dias orar ao templo da Meca e
fazer as suas abluções para ter melhor resultado do seu empenho; e quando o
terminou, depositou a obra sobre a cadeira e depois sobre o túmulo de Maomé.
Ajuntaram-lhe
mais tarde o "Ijmar", decisões unânimes dos irmãos ortodoxos sobre os
pontos controvertidos, e os "Kias", explicação que se tira das
antigas sentenças para os casos novos.
Tais são as
fontes da doutrina maometana, que os sábios do Islã dividem em duas partes: o
"imã" ou a fé, e o "din" ou a prática da religião.
Entre os
dogmas do Alcorão estão encerradas estas palavras que os muçulmanos repetem a
cada instante necessário:
Não existe outro Deus senão Alá; um só Deus
e nenhum outro fora d'Ele. Cada capítulo do Alcorão é uma proclamação desta
verdade na qual Maomé esperava reunir todas as outras religiões. Em suas
pregações o profeta dizia: "Alá
existe por si mesmo, Ele não gera nem é gerado. Reina só, louvor a Ele só. Ele
separa o grão da espiga, o caroço da tâmara; faz sair a vida da morte e a morte
da vida; separa a aurora das trevas, dá a noite para o repouso. Ele coloca os
astros no firmamento, para vos conduzir em meio das trevas, sobre a terra e
sobre os mares. Ele vos formou de um só homem. Ele vos prepara abrigo no seio
de vossas mães, vos forma nos rins de vossos pais; faz descer as chuvas para
fecundar os germes das plantas. Vós lhe deveis as uvas, as oliveiras, as
romeiras dos vossos jardins. Se Ele quer produzir algo, diz apenas: Faça-se — e
é feita".
Cumpre dizer
que o Deus a que se refere Maomé não é esse poder físico do sabeísmo
substancialmente presente sob as mais diversas formas da natureza e da
humanidade, Ele criou o mundo não o tirando de si mesmo, mas do nada; não está
unido a ele por um laço natural e uma continuidade essencial, porém, está só e
separado de tudo, como Jeová dos hebreus.
Para que a
ideia do Deus Uno ficasse bem clara, Maomé excluiu a Santíssima Trindade,
proibiu o culto das imagens e das relíquias; e mesmo ele não aspirou senão ao
título de profeta.
Disse ainda
Maomé que Alá, clemente e misericordioso, justo e bom, criou os anjos, seus
ministros, de uma brilhante alvura, formados da mais pura luz divina, criou
também os gênios ou "djins", raça intermediária entre os homens e os
anjos.
Os
principais anjos são Gabriel, Asrafel, Isafil, que comandam as legiões de
outros anjos que velam pela humanidade. Cada ser humano tem dois deles para o
guardarem e para anotarem todas as suas ações.
No entanto
um dos anjos superiores recusou obediência a Adão; por isso foi expulso do céu
e ficou sendo Eblis ou Satanás.
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Fonte:
Maomé e o Islam, por: Theodore M. R. von Keler. Tradução: Chiang Sing. Ediouro. Rio de Janeiro, 1984, págs. 40-46.
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