Não vejo outra saída a não ser a democracia
É ESTRANHO
MAS, DESDE aqueles três dias de agosto, cada dia que passa me parece uma
semana. Estou acabando de pôr em ordem minhas ideias desde que voltei a Moscou
vindo do sul, e só se passou um mês desde o golpe. Apenas um mês, mas quanta
coisa aconteceu, quanta coisa mudou desde lá.
O golpe foi
esmagado. Os democratas estão comemorando a vitória, mas a vida exige ação,
exige decisões muito bem pensadas e não ortodoxas. O povo está insatisfeito com
a vida difícil, sentindo que não há meio de melhorar. É aí que mora o perigo.
Foi exatamente esse aspecto que os organizadores do golpe tentaram explorar. É
por isso que não temos tempo a perder. Precisamos agir, levar adiante o
processo de reformas e dar liberdade econômica ao povo, e então ele mesmo terá
condições de realizar seu potencial. Temos muito o que aprender — aprender a
lidar com política, economia e com a vida do Estado. E sob esse aspecto os
democratas ainda estão crus.
Todos nós
temos muito o que aprender, para que possamos governar nos moldes da
democracia, da política e, principalmente, do pluralismo econômico.
Caso
contrário, a paciência do povo se esgotará e então haverá uma incontrolável
explosão de descontentamento e desordem: aí sim, poderemos nos preparar para o
pior. Não menos perigosa para a realização dos nossos planos seria a reação
resultante do cansaço do povo, traduzida em sentimentos de frustração,
indiferença e apatia, o que poderia simplesmente bloquear nosso avanço rumo à
economia de mercado.
Eu dividiria
em dois grupos o conjunto de problemas que nos afligem no momento. Um deles é o
grupo dos problemas atuais — abastecimento de alimentos, organização do sistema
de distribuição de energia e combustíveis, e solução para a falta de
medicamentos. O outro bloco de problemas refere-se à criação de condições para
o desenvolvimento da empresa privada e uma efetiva aceleração das reformas econômicas.
Só atuando paralelamente na solução de ambos os grupos de problemas é que
conseguiremos sobreviver ao inverno e à primavera, obter o efeito desejado com
a implementação das reformas e começar a sair da crise.
O mais
importante agora é como sobreviver até a primavera, como atravessar o inverno.
Todo o resto, exceto estes dois grupos de problemas, é uma questão de avançar
mais rapidamente rumo à economia de mercado e estimular a livre empresa.
Mas, para
que as reformas tenham êxito, é preciso que o povo acredite nelas. Sem a
colaboração do povo, as reformas não sairão do chão, tudo continuará na mesma.
Ou então, ao contrário, poderia haver uma forte reação em face da piora das
condições de vida, o que constituiria um duro golpe desferido contra a
democracia.
Lembro-me de
quando, ao voltar de uma reunião com o secretário de Estado dos EUA, fui
abordado por um grupo de pessoas e começamos a conversar. O interessante é que
ninguém se queixou das dificuldades. Diziam, é claro, que elas não eram poucas,
mas que o povo estava disposto a ficar unido, a suportar a experiência e apoiar
a política de reformas até o fim. Esse tipo de apoio nos dá forças.
Nossas
possibilidades são imensas, e este não é um chavão, um mero clichê. Tenho
ouvido esta frase repetidas vezes de estrangeiros que conversam comigo. Eles
dizem: vocês têm tudo — um povo culto e imensos recursos materiais — o que lhes
dá condições de se tornarem um país rico. E nós temos mesmo de nos tornar um
país rico. Repito: temos tudo para isso. Precisamos mudar, e então viveremos de
outra maneira.
O que mais
me preocupa é saber como viverão nossos filhos e netos, e os jovens que estão
hoje com idade entre 15 e 20 anos. É aí que vejo o sentido de meu trabalho,
pois, afinal de contas, foi por causa deles que tudo isso começou. As
dificuldades não conseguiram nos assustar; sabíamos que haveria problemas
sérios e complicados pela frente. Nós nos impusemos um objetivo: fazer com que
as pessoas participassem do processo democrático e se sentissem gente de
verdade. Isso já aconteceu, e é uma conquista da perestroika.
Mas também
devem ser mudados o estilo e as condições de vida. É meu grande desejo que este
povo, que tanto fez por esta terra, sentisse que finalmente seu tempo chegou —
um tempo de felicidade.
Agora,
quando se decide o futuro de nossa grande nação, o que menos penso é em mim
mesmo. Por isso que me foi difícil, e ao mesmo tempo fácil, tomar uma decisão
quando os conspiradores me apresentaram seu ultimato. Eu já havia feito minha
escolha há muito tempo. Conspiradores podem agir sem se preocupar com os meios,
mas eu não posso atingir meus objetivos de outro modo... A opção pela
democracia me impossibilita de usar outros métodos. Caso contrário, seria uma
inevitável repetição do passado, de tudo o que nós condenamos. Por mais
complicados que sejam os problemas, eles devem ser resolvidos democraticamente.
Não vejo outro caminho que não seja o da democracia.
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Fonte:
O Golpe de Agosto: a verdade e as lições, por: Mikhail Gorbachev. Tradução: Regina Amarante. Editora Best Seller. São Paulo, 1991, págs. 93-96.
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