A trajetória de um humorista
Rio de
Janeiro, 16 de agosto de 1924: nasce Milton Fernandes - mais tarde
nacionalmente conhecido como Millôr Fernandes — na rua Isolina, 59, bairro do
Méier, onde vive até os 10 anos; dez anos tão intensamente vividos que valem
metade de sua vida.
A família de
quatro irmãos (dois meninos e duas meninas) vivia num sobrado amplo e sólido,
de estilo colonial português. Mas de português na família só o estilo da casa,
que servia de cenário para a convivência de duas outras raças europeias
igualmente meridionais: a espanhola, pelo lado do pai, e a italiana, por Unha
materna.
O lado
espanhol, aventureiro e irreverente, é sintetizado na figura do pai. Morto aos
36 anos, quando Millôr mal completara 2, a imagem que ficou, fixada nas
centenas de fotografias que encheram as gavetas e a imaginação do menino Millôr,
é a de um homem bonito, garboso, de espírito ousado e irrequieto. Já a parte
italiana era mais convencional e acomodada, mas, em compensação, mais afetiva e
bondosa. Mas ambos os lados, tão diferentes, conviviam harmoniosamente no
sobradão português, sempre cheio de tios, tias, primos, primas, avós. O centro
da reunião era o "puxado", cobertura de telhas onde a família fazia
as refeições, as crianças brincavam e as mulheres conversavam enquanto bordavam
e costuravam.
Com a morte
do pai, a família passa da vida estável de classe média para a condição
proletária. A situação, até certo ponto, era compensada pelo conforto da casa,
pela amplidão do quintal, que se prolongava até os quintais das outras casas,
formando quase um território de ninguém, ou melhor, de todas as crianças que lá
brincavam.
É dessa
época o amor maior de sua vida: sua avó. Sentimento "mais do que
correspondido" (como diz Millôr) por essa mulher que teve 72 netos e
bisnetos e se desdobrou num amor de avó e de mãe (Millôr perdeu a mãe quando
tinha apenas 10 anos).
Outra
lembrança, ainda do Méier, é o Grupo Escolar Enes de Sousa, onde Millôr fez o
curso primário, numa época em que havia grande autonomia no ensino público:
graças talvez à extraordinária personalidade de sua diretora, Isabel Mendes, a
escola era ótima, de um espírito pedagógico inigualável. Hoje, já com o nome de
sua antiga diretora, a escola é chamada por Millôr de Universidade do Méier...
forma bastante carinhosa de reconhecer sua influência e importância.
Todo este
mundo é, para Míllôr Fernandes, só uma lembrança e uma evocação... O antigo
bairro do Méier já não existe mais, transformado que foi pela força
"modernizadora" do progresso, que destrói não só a arquitetura mas
também a memória social de nossas grandes cidades. Hoje, é com certa melancolia
que Millôr revê o bairro de sua infância: "Reconhece-se alguma coisa. Um
pé de manga, um pedaço de muro, um resto de terreno, ainda, milagrosamente,
baldio, mas há uma mutilação geral, irrecuperável. Como li em Paulo Mendes
Campos: 'Todo homem, ao se extinguir, leva no coração duas cidades mortas'. Eu
já levo uma, bem (in)visível" "Volta ao Lar (nostalgia)".
DO MÉIER PARA O MUNDO
Com a morte
da mãe, os quatro irmãos se separam, indo cada um viver em casa de parentes.
Para o Millôr de hoje, essa fase de sua infância lhe faz lembrar os romances de
Dickens: Oliver Twist carioca, órfão de pai e mãe, a cuidar precocemente de sua
própria vida. Muitas vezes, ao voltar tarde para casa, tinha de atravessar
grandes sítios solitários, naqueles bairros ainda rurais da zona norte carioca.
Era então o medo do lobisomem, da mula-sem-cabeça, que provocava súbitas
corridas de perder o fôlego. Mas tudo isso era amenizado pela presença
constante de sua avó, muitas vezes a esperá-lo, tarde da noite, para servir-lhe
uma refeição fora de hora.
Foi em 1938,
aos 13 anos de idade, que Millôr iniciou sua vida profissional, ingressando no
mundo jornalístico graças a seu tio Viola, funcionário da revista O Cruzeiro. E foi nessa revista que o
então garoto Millôr começou a trabalhar no cargo de "office-boy de luxo", desempenhando também tarefas ligadas à
produção jornalística.
É bem
verdade que, três anos antes, aos 10, Millôr já estreara na imprensa quando O Jornal publicou um desenho seu. Mas
esse episódio foi ocasional. O importante foi o fato de a publicação ter sido
paga, o que, para o autor, já prenunciava "uma mentalidade
profissional" que o acompanharia por toda a vida.
No tempo em
que Millôr começou a trabalhar em O
Cruzeiro, o jornalismo brasileiro era ainda muito precário, sem grandes
especialistas. Eram raros os jornalistas que conheciam francês ou inglês. E
Millôr soube abrir seu caminho nessa imprensa acanhada, tomando parte cada vez
mais ativa na produção jornalística: escreve legendas, trabalha em paginação,
etc.
Já com uma
vida profissional engatilhada, Millôr sai da casa de seus parentes e vai viver
numa pensão. Mas... nada de morbidez... nada dos ambientes miseráveis e
mesquinhos das habitações coletivas descritas nos romances de Balzac e Aluísio de
Azevedo. Millôr viveu em pensões confortáveis, "familiares",
tipicamente de classe média, que proporcionaram ao autor uma vivência
comunitária bastante valiosa e até divertida.
Nessa época,
voltara a estudar, matriculando-se no antigo curso propedêutico do Liceu de
Artes e Ofícios. Frequentava o período noturno, depois de trabalhar o dia todo.
A vida era muito corrida; muitas vezes ia estudar com o estômago vazio. Mas o
prestígio profissional que logo chega e o consequente acúmulo de trabalho tiram
Millôr outra vez dos bancos escolares, desta vez para sempre.
Após algum
tempo na revista O Cruzeiro,
desempenhando as mais variadas funções, Millôr, percebe que está marcando
passo. Ë quando resolve mandar um conto seu para um concurso promovido pela
revista A Cigarra. E ganha o primeiro
lugar. Valorizado diante de seus superiores, Millôr consegue um posto mais
condigno em O Cruzeiro. Começa também
a colaborar em outras publicações, como O
Guri, O Detetive e a própria A
Cigarra. E tudo por causa do conto premiado que, aos olhos críticos do
Millôr de hoje em dia, parece "muito, muito fraco", mas é
carinhosamente guardado como uma relíquia histórica.
É a partir
dessa época que ele começa a firmar sua carreira jornalística, atingindo um de
seus pontos altos na fase áurea da revista O
Cruzeiro. De fato, ao lado de companheiros como Fred Chateaubriand,
Franklin de Oliveira, Jean Manzon e outros, Míllôr Fernandes iniciara um
processo de total renovação da revista. E o resultado é realmente admirável: O Cruzeiro, que tinha uma tiragem de 11
mil exemplares em 1945, atinge, em 1954, a marca dos 750 mil exemplares, um
ponto jamais alcançado por qualquer outra publicação do gênero no Brasil. Sua
penetração era tão grande que chegou a ter uma edição em espanhol, circulando
em toda a América Latina e sul dos Estados Unidos.
Nesse
período, MiEôr Fernandes trabalhava intensamente, chegando a escrever dez
seções por semana. E é sobretudo com a seção "O Pif-Paf", sob o pseudônimo
de Vão Gôgo, que o autor ganha prestígio nacional. O menino do Méier
conquistara o seu mundo.
HOJE EM DIA
Na década de
60, Millôr Fernandes editou uma revista humorística, O Pif-Paf. Depois, destacou-se como um dos principais jornalistas
de O Pasquim.
Atualmente
(1980), colabora na revista Veja,
onde escreve toda semana uma seção humorística de duas páginas. Isso sem falar
nos inúmeros livros publicados, como Lições
de um Ignorante, Fábulas Fabulosas, Millôr no Pasquim e muitos outros.
Apesar de
seu largo prestígio como humorista, teatrólogo e desenhista, Millôr é pouco
afeito aos círculos acadêmicos, especialmente àqueles mais conservadores, muito
preocupados com a imortalidade literária. E isto se explica, principalmente,
pela característica essencial de Millôr: um escritor da "antimoral e da
irreverência", como já foi definido mais de uma vez.
Mas, como
toda biografia que se preza termina falando das glórias presentes
e futuras do
autor, vamos passar a palavra ao próprio Millôr que, num lirismo vazado de
ironia, assim imaginou sua posteridade:
POEMINHA ÚLTIMA
VONTADE
Enterrem meu corpo em
qualquer lugar.
Que não seja, porém,
um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca,
em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras
fundas,
Que o tempo não
destrua,
Meu nome gravado
claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade
solitária,
Me descubra entre
folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos
mortos (Como eu).
E, como uma longa
árvore desgalhada
Levantou um pouco a
laje do meu
[túmulo
Com raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na
morada.
Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo
normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu
nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia
infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos,
lagartos,
Sol e chuva
ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim
caia a semente
De onde há de brotar a
flor
Que eu peço que se
chame
Papáverum Millôr.
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Fonte:
Millôr Fernandes: Leitura Comentada. Texto: Maria Célia Rua de Almeida Paulillo. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-5.
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