domingo, 10 de julho de 2016

Biografia de Millôr Fernandes

A trajetória de um humorista
Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1924: nasce Milton Fernandes - mais tarde nacionalmente conhecido como Millôr Fernandes — na rua Isolina, 59, bairro do Méier, onde vive até os 10 anos; dez anos tão intensamente vividos que valem metade de sua vida.
A família de quatro irmãos (dois meninos e duas meninas) vivia num sobrado amplo e sólido, de estilo colonial português. Mas de português na família só o estilo da casa, que servia de cenário para a convivência de duas outras raças europeias igualmente meridionais: a espanhola, pelo lado do pai, e a italiana, por Unha materna.
O lado espanhol, aventureiro e irreverente, é sintetizado na figura do pai. Morto aos 36 anos, quando Millôr mal completara 2, a imagem que ficou, fixada nas centenas de fotografias que encheram as gavetas e a imaginação do menino Millôr, é a de um homem bonito, garboso, de espírito ousado e irrequieto. Já a parte italiana era mais convencional e acomodada, mas, em compensação, mais afetiva e bondosa. Mas ambos os lados, tão diferentes, conviviam harmoniosamente no sobradão português, sempre cheio de tios, tias, primos, primas, avós. O centro da reunião era o "puxado", cobertura de telhas onde a família fazia as refeições, as crianças brincavam e as mulheres conversavam enquanto bordavam e costuravam.
Com a morte do pai, a família passa da vida estável de classe média para a condição proletária. A situação, até certo ponto, era compensada pelo conforto da casa, pela amplidão do quintal, que se prolongava até os quintais das outras casas, formando quase um território de ninguém, ou melhor, de todas as crianças que lá brincavam.
É dessa época o amor maior de sua vida: sua avó. Sentimento "mais do que correspondido" (como diz Millôr) por essa mulher que teve 72 netos e bisnetos e se desdobrou num amor de avó e de mãe (Millôr perdeu a mãe quando tinha apenas 10 anos).
Outra lembrança, ainda do Méier, é o Grupo Escolar Enes de Sousa, onde Millôr fez o curso primário, numa época em que havia grande autonomia no ensino público: graças talvez à extraordinária personalidade de sua diretora, Isabel Mendes, a escola era ótima, de um espírito pedagógico inigualável. Hoje, já com o nome de sua antiga diretora, a escola é chamada por Millôr de Universidade do Méier... forma bastante carinhosa de reconhecer sua influência e importância.
Todo este mundo é, para Míllôr Fernandes, só uma lembrança e uma evocação... O antigo bairro do Méier já não existe mais, transformado que foi pela força "modernizadora" do progresso, que destrói não só a arquitetura mas também a memória social de nossas grandes cidades. Hoje, é com certa melancolia que Millôr revê o bairro de sua infância: "Reconhece-se alguma coisa. Um pé de manga, um pedaço de muro, um resto de terreno, ainda, milagrosamente, baldio, mas há uma mutilação geral, irrecuperável. Como li em Paulo Mendes Campos: 'Todo homem, ao se extinguir, leva no coração duas cidades mortas'. Eu já levo uma, bem (in)visível" "Volta ao Lar (nostalgia)".

DO MÉIER PARA O MUNDO
Com a morte da mãe, os quatro irmãos se separam, indo cada um viver em casa de parentes. Para o Millôr de hoje, essa fase de sua infância lhe faz lembrar os romances de Dickens: Oliver Twist carioca, órfão de pai e mãe, a cuidar precocemente de sua própria vida. Muitas vezes, ao voltar tarde para casa, tinha de atravessar grandes sítios solitários, naqueles bairros ainda rurais da zona norte carioca. Era então o medo do lobisomem, da mula-sem-cabeça, que provocava súbitas corridas de perder o fôlego. Mas tudo isso era amenizado pela presença constante de sua avó, muitas vezes a esperá-lo, tarde da noite, para servir-lhe uma refeição fora de hora.
Foi em 1938, aos 13 anos de idade, que Millôr iniciou sua vida profissional, ingressando no mundo jornalístico graças a seu tio Viola, funcionário da revista O Cruzeiro. E foi nessa revista que o então garoto Millôr começou a trabalhar no cargo de "office-boy de luxo", desempenhando também tarefas ligadas à produção jornalística.
É bem verdade que, três anos antes, aos 10, Millôr já estreara na imprensa quando O Jornal publicou um desenho seu. Mas esse episódio foi ocasional. O importante foi o fato de a publicação ter sido paga, o que, para o autor, já prenunciava "uma mentalidade profissional" que o acompanharia por toda a vida.
No tempo em que Millôr começou a trabalhar em O Cruzeiro, o jornalismo brasileiro era ainda muito precário, sem grandes especialistas. Eram raros os jornalistas que conheciam francês ou inglês. E Millôr soube abrir seu caminho nessa imprensa acanhada, tomando parte cada vez mais ativa na produção jornalística: escreve legendas, trabalha em paginação, etc.
Já com uma vida profissional engatilhada, Millôr sai da casa de seus parentes e vai viver numa pensão. Mas... nada de morbidez... nada dos ambientes miseráveis e mesquinhos das habitações coletivas descritas nos romances de Balzac e Aluísio de Azevedo. Millôr viveu em pensões confortáveis, "familiares", tipicamente de classe média, que proporcionaram ao autor uma vivência comunitária bastante valiosa e até divertida.
Nessa época, voltara a estudar, matriculando-se no antigo curso propedêutico do Liceu de Artes e Ofícios. Frequentava o período noturno, depois de trabalhar o dia todo. A vida era muito corrida; muitas vezes ia estudar com o estômago vazio. Mas o prestígio profissional que logo chega e o consequente acúmulo de trabalho tiram Millôr outra vez dos bancos escolares, desta vez para sempre.
Após algum tempo na revista O Cruzeiro, desempenhando as mais variadas funções, Millôr, percebe que está marcando passo. Ë quando resolve mandar um conto seu para um concurso promovido pela revista A Cigarra. E ganha o primeiro lugar. Valorizado diante de seus superiores, Millôr consegue um posto mais condigno em O Cruzeiro. Começa também a colaborar em outras publicações, como O Guri, O Detetive e a própria A Cigarra. E tudo por causa do conto premiado que, aos olhos críticos do Millôr de hoje em dia, parece "muito, muito fraco", mas é carinhosamente guardado como uma relíquia histórica.
É a partir dessa época que ele começa a firmar sua carreira jornalística, atingindo um de seus pontos altos na fase áurea da revista O Cruzeiro. De fato, ao lado de companheiros como Fred Chateaubriand, Franklin de Oliveira, Jean Manzon e outros, Míllôr Fernandes iniciara um processo de total renovação da revista. E o resultado é realmente admirável: O Cruzeiro, que tinha uma tiragem de 11 mil exemplares em 1945, atinge, em 1954, a marca dos 750 mil exemplares, um ponto jamais alcançado por qualquer outra publicação do gênero no Brasil. Sua penetração era tão grande que chegou a ter uma edição em espanhol, circulando em toda a América Latina e sul dos Estados Unidos.
Nesse período, MiEôr Fernandes trabalhava intensamente, chegando a escrever dez seções por semana. E é sobretudo com a seção "O Pif-Paf", sob o pseudônimo de Vão Gôgo, que o autor ganha prestígio nacional. O menino do Méier conquistara o seu mundo.

HOJE EM DIA
Na década de 60, Millôr Fernandes editou uma revista humorística, O Pif-Paf. Depois, destacou-se como um dos principais jornalistas de O Pasquim.
Atualmente (1980), colabora na revista Veja, onde escreve toda semana uma seção humorística de duas páginas. Isso sem falar nos inúmeros livros publicados, como Lições de um Ignorante, Fábulas Fabulosas, Millôr no Pasquim e muitos outros.
Apesar de seu largo prestígio como humorista, teatrólogo e desenhista, Millôr é pouco afeito aos círculos acadêmicos, especialmente àqueles mais conservadores, muito preocupados com a imortalidade literária. E isto se explica, principalmente, pela característica essencial de Millôr: um escritor da "antimoral e da irreverência", como já foi definido mais de uma vez.
Mas, como toda biografia que se preza termina falando das glórias presentes
e futuras do autor, vamos passar a palavra ao próprio Millôr que, num lirismo vazado de ironia, assim imaginou sua posteridade:
POEMINHA ÚLTIMA VONTADE
Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos (Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu
                                               [túmulo
Com raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr.



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Fonte:
Millôr Fernandes: Leitura Comentada. Texto: Maria Célia Rua de Almeida Paulillo. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-5.

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