Vinícius de Moraes. Profissão: Poeta.
Los Angeles,
1950 — Um telefone toca tarde da noite, na residência do vice-cônsul brasileiro
Marcus Vinícius, da Cruz de Mello Moraes. É dona Lídia, mãe de Vinícius,
chamando do Rio, para comunicar a morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes,
seu marido, pai do poeta. "A morte chegou pelo interurbano em longas
espirais metálicas. Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De
repente, não tinha pai. No escuro de minha casa em Los Angeles procurei
recompor tua lembrança, depois de tantos anos de ausência..." Vinícius ali
se encontrava, desde 1946, em seu primeiro posto diplomático, e a notícia da
morte do pai talvez tenha apressado seu retorno ao Brasil. As circunstâncias
quiseram que o início da carreira no Itamarati coincidisse com o triste acontecimento
— mas a diplomacia não è a única atividade, das várias atividades exercidas por
Vinícius que, de um modo ou de outro, se liga à figura paterna. A poesia, por
exemplo: embora já compusesse as suas quadrinhas desde os oito anos de idade,
Vinícius, adolescente, roubou do pai (ele também poeta, amigo de Bilac) um
soneto com que tentou sensibilizar a primeira namorada. E foi também do velho
Clodoaldo, tocador de violão e cantador de modinhas, que lhe veio a iniciação
musical. Mas não só; veio também do tio mais moço, boêmio e seresteiro, amigo
do compositor Bororó, e ainda da mãe e do avô, hábeis ao piano. Os concorridos
saraus em família insinuaram a música na sensibilidade de Vinícius desde a
infância — no Rio ou na ilha do Governador — e o marcaram por toda a vida.
Música,
poesia, diplomacia — três carreiras de respeito, três ideais suficientes para
ocupar a existência de um homem. Mas sempre que se perguntar a Vinícius de
Moraes (a pergunta lhe foi feita várias vezes): "Quais as três coisas mais
importantes da sua vida?", ele responderá tranquilo mas com um
imperceptível gesto (nas mãos, no olhar) de permanente inquietação:
"Primeiro, mulher; segundo, mulher; e por fim mulher!" E assim será o
poeta para sempre — poeta em todas as profissões e atividades — um eterno
apaixonado à procura do "Supremo Impossível", o amor absoluto e a
mulher ideal ansiosamente buscados em todas as mulheres: "O que é o meu
Amor senão o meu desejo iluminado/ O meu infinito desejo de ser o que sou acima
de mini mesmo? /... O que é a mulher em mim se não o Túmulo / O branco marco da
minha rota peregrina / Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte / Mas
em cujos braços somente tenho vida?"
1933: ano-chave
Rio de Janeiro, 1933 - Vinícius obtém o
diploma de bacharel em Direito, mas não suportou o Fórum por mais de um mês. Os
anos de faculdade lhe valeram pelas amizades (Octávio de Faria, San Tiago
Dantas, Thiers Moreira e tantos outros); pela iniciação nas rodas boêmias e
literárias; pelas perspectivas de vida que então se lhe abriram; por tudo,
menos pelo indesejado saber jurídico. No mesmo ano, pôs letra num fox de J.
Medina e numa valsa de H. Tapajoz, ambos gravados na RCA Victor. Não foi a sua
estreia em música (um ano antes fizera grande sucesso o fox "Loura ou morena",
com letra sua e música dos irmãos Tapajoz), mas 1933 marcou a estreia
literária: nessa data, aos 19 anos de idade, Vinícius publicou sua primeira
coletânea de poemas, O Caminho para a
Distância. A partir daí, embora a música fosse anterior em suas predileções,
o jovem bacharel-contra-a-vontade dedicar-se-á inteiramente à poesia, só
voltando à canção, em rigorosa simetria cronológica, 19 anos depois, com
"Quando tu passas por mim", em parceria com António Maria, gravação
de Dóris Monteiro. O fato é que nos anos 30 e 40 Vinícius conhece a glória
literária.
Foram anos
dos mais conturbados (veja no final do volume "Vinícius e seu
tempo"), mas isso não pareceu afetar o poeta, então no auge da carreira
que escolhera. Em 1938, Vinícius parte para a Inglaterra, para estudar na
Universidade de Oxford, com bolsa do governo britânico. No ano seguinte,
casa-se por procuração — o primeiro casamento de uma longa série — e não chega
a concluir o estágio: em 1940, interrompe as férias em Paris, por causa da
guerra, e regressa ao Rio, via Lisboa. De volta, dedica-se ao jornalismo (A Manhã, Clima, O Jornal), com
literatura e sobretudo crítica cinematográfica, já que o cinema era uma antiga
paixão. De 1936 a 1938, foi censor cinematográfico, junto ao Ministério da
Educação, mas se orgulha de nunca ter censurado nada; no fim dos anos 50,
participou da transposição para a tela de sua peça Orfeu da Conceição, trabalhando no roteiro, e jamais escondeu que
um de seus sonhos sempre foi ser cineasta. Mas como o jornalismo não dava
dinheiro, tratou de arranjai emprego: um cargo burocrático no Instituto dos
Bancários, e, a conselho de Oswaldo Aranha, ministro de Getulio, começou a se
preparar para o Itamarati. E o Estado Novo0 A formação católica e burguesa, ainda
sólida nesta altura, lhe dava a convicção de que não havia nada errado nisso.
Se não chegava a ser a favor da ditadura, era-lhe pelo menos indiferente.
Em 1942, as
coisas começaram a mudar, para ele. Foi quando conheceu o escritor americano
Waldo Frank... e foram encerrar a noitada, bêbados, no Mangue. Depois, Vinícius
acompanhou o amigo numa longa viagem pelo Nordeste, cujo roteiro incluiu
principalmente, as zonas portuárias, favelas, rodas de samba, alagados, e por
aí afora. Um mês depois, foram sair no Amazonas. "Tenho a impressão de
que, de repente, descobri que tudo era besteira. Tomei conhecimento da
realidade brasileira. E quando terminei a viagem, tinha mudado completamente a
minha visão política." E por isso virá a dizer, mais tarde:
"Individualmente, o poeta, ai dele, é um ser em constante busca de
absoluto e, socialmente, um permanente revoltado".
De retorno
ao ambiente carioca, sua vida correrá larga e generosa, em termos da intensa
atividade que exerce junto ao meio artístico e literário. Nessa altura, convive
com uma das mais férteis e diversificadas gerações que já animaram a vida
cultural brasileira (Drummond, Bandeira, Niemeyer, Santa Rosa, Djanira, Aníbal
Machado, e tantos outros) e aí Vinícius é um dos polos de atração: jovem,
brilhante, poeta nacionalmente reconhecido, jornalista, músico, homem afeito ao
trato social, com livre trânsito nos mais diferentes meios — essa fase dourada
será interrompida pelo ingresso na carreira diplomática, em 1946. Mas o gosto
pela vida intensa e variada, aprendida no cenário carioca, o acompanhará
através dos anos, e, a partir de agora, em escala internacional. As raízes
longínquas desse gosto, porém, podem ser procuradas na infância.
Um pequeno infante Sadio e grimpante
Rio de
Janeiro, 1918 - "Vinícius andava então pelos cinco anos. (O depoimento é
da irmã mais moça, Laetitia). Nessa idade, sucumbiu pela primeira vez às graças
femininas, na pessoa de uma amiga de minha mãe, moça bonita e dona de lindas
pernas, que Vinícius conseguiu, certa vez, e escondido debaixo da mesa, sorrateiramente
alisar." Fosse outro o autor da proeza e o fato não suscitaria senão
surpresa momentânea, provavelmente uma repreensão materna e umas boas risadas.
Mas no caso de Vinícius, o gesto ganha uma aura de predestinação. E não foi só
nesse terreno que se manifestou a precocidade do poeta. A partir de 1922, com a
mudança da família para a Ilha do Governador, Vinícius permanece no Rio, sob
cuidados dos avós, para prosseguir nos estudos. Isso lhe permite passar férias
e fins de semana na ilha, onde aprende a nadar sozinho, em convívio com os
filhos de pescadores, de quem logo se torna o líder, arteiro e inventador de
modas — uma delas, as competições de "plantar bananeira", de que foi
campeão inconteste. "Foi ainda na ilha que descobriu o mar e seu mistério
(ainda o mesmo depoimento da irmã), e, como vim a saber mais tarde, foi
iniciado nas folganças do amor."
Ao iniciar
os estudos secundários, no Colégio Santo Inácio, dos jesuítas, suas habilidades
se desenvolveram. De início, ouvido afinado, o coro da igreja; depois, o
futebol (Vinícius jogava na linha, a defesa nunca foi seu forte) e várias
modalidades de atletismo, em que se distinguiu. E também ganhou muitas medalhas
e menções honrosas em Português, História, Ciências... mas nunca em Matemática!
Acima de tudo, porém, o que mais p atraía eram os espetáculos teatrais do
colégio, muitos ao longo do ano, e o filho de dona Lídia participava de todos,
fazendo um pouco de tudo: cantar, tocar, representar, apresentar, dirigir, e
por aí vai. E a coisa continuava em casa, onde inventava sessões de cinema e
desenho animado com lençóis, silhuetas e fazes, e onde organizava quadrilhas,
com os irmãos e a garotada da vizinhança, para roubar moedas durante o dia e, à
noite, transformá-las em sorvetes de casquinha e ingressos para o cinema
"de verdade", nos fins de semana.
Aos catorze
anos, Vinícius é semi-interno no colégio. Com isso, só aparece no fim da tarde
"e era praticamente impossível retê-lo em casa" depois do jantar. E
assim começaram, também precocemente, as suas rondas noturnas, a sua longa
carreira de "grande íntimo da noite". Por isso tudo, ele mais tarde
confessaria, num célebre "Autorretrato": "Infância: pobre mas
linda / Tão linda que mesmo longe / Continua em mini ainda..."
Mas voltemos
a Los Angeles...
Cinema, Samba e Jazz
Entre as
várias ocupações de um diplomata em Los Angeles, uma das mais interessantes,
sem dúvida, é curtir jazz e cinema. Nesses anos, Vinícius conviveu com Orson
Welles, que já conhecia do Brasil, e ouviu dele, quando lhe disse que pretendia
fazer um curso de cinema: "Bobagem! Não faz nada disso. Sempre que eu
fumar eu te chamo e você aprende. . ." E assim foi: Vinícius acompanhou
toda a filmagem de A Dama de Xangai e
de Macbeth, enquanto ao mesmo tempo
se impregnava do grande jazz da época: Stan Kenton, Dizzy Gülespie, Louis
Armstrong, e outros. Mas isso não impediu que sua vivência musical, nos anos de
Los Angeles, incluísse também as irmãs Aurora e Carmen Miranda, o Bando da Lua
e Aloísio de Oliveira. Impossível avaliar (mas fácil adivinhar) a importância
desses contatos para a bossa-nova, prestes a nascer, e em cujo parto Vinícius
exerceria papel preponderante.
Foi logo
depois. Já de volta, compõe sozinho a "Serenata do adeus" e, com
Paulo Soledade, o "Poema dos olhos da amada" e "São
Francisco". Em seguida, parte para Paris, na segunda missão diplomática, e
inicia as primeiras negociações que resultariam no fume Orfeu Negro. De retorno ao Rio, Sérgio Porto, Paulo Mendes Campos e
outros amigos o apresentam a um pianista novo, desconhecido, "que andava
gramando pelos inferninhos" locais. Era António Carlos Jobim. Nascem então
as músicas para Orfeu da Conceição, encenada com sucesso no Municipal carioca,
com cenários (nada mais, nada menos) de Oscar Niemeyer. E nasce também uma das
mais famosas e festejadas parcerias de que já teve notícia a música popular
brasileira. Com isso, o poeta vai decisivamente recuperando a paixão inicial
pela música (corria o ano de 1957, quando foi gravado o primeiro LP da dupla,
com as músicas de Orfeu), ao mesmo tempo em que se afasta da poesia, em seu
sentido estritamente literário. Mas não foi nenhum corte abrupto: a poesia
permanecerá, evidentemente, ganhando um meio muito mais amplo de divulgação (a
ponto de os mais jovens desconhecerem o Vinícius anterior a essa fase) e ganhando
o apoio direto e explícito da melodia, de resto sempre latente na poesia
propriamente dita.
Mas não foi
só da música de Jobim que se alimentou a poesia de Vinícius. Daria para encher
uma página a relação completa de seus parceiros, desde os irmãos Tapajoz, na
adolescência, passando por Paulinho Soledade, Vadico, Pixinguinha, Adoraram
Barbosa, Carlos Lyra, Baden Powell, Francis Hime, Chico Buarque, Cláudio
Santoro (com quem compôs uma série de canções de câmara) e tantos outros. Além
de Toquinho, a parceria atual de mais longa duração, sem contar este outro,
famosíssimo, que nem chegou a tomar conhecimento da coisa, pois morreu antes:
Johann Sebastian Bach.
Entre 1958 e
1960 - justamente o fastígio de uma época: nacionalismo, indústria
automobilística, Juscelino, Brasília, o sonho de uma burguesia forte e otimista
— Vinícius assume o terceiro posto na carreira diplomática, em Montevidéu. Mas
o sucesso do compositor, as múltiplas solicitações do meio artístico, a
"Palma de Ouro" para Orfeu
Negro, em Carmes, e a própria vida particular, algo enredada (o poeta
andava já pelo sexto ou sétimo casamento), tudo isso junto faz com que a
diplomacia e a música se tornem cada vez mais incompatíveis. Desde o início dos
anos 60, Vinícius desenvolve intensa atividade no gênero pocket-shows, o primeiro dos quais na Boate Au Bon Goumert, em 1962; estreia como cantor, em 1963, gravando com
Odete Lara; vê esgotarem-se sucessivas edições da Antologia Poética — atinge,
em suma, uma fama que poucos artistas antes dele haviam conhecido — e continua
ligado ao Itamarati. Nesse mesmo ano de 1963, volta a viajar, para integrar a
Delegação do Brasil junto à UNESCO, em Paris, mas regressa no ano seguinte.
Poeta e diplomata, compositor, cantor, homem-show — Vinícius está no auge. (É o
ano do badaladíssimo show na boate Zum-Zum,
com Dorival Caymmi e o Quarteto em Cy.) Daí para a frente, e por poucos anos,
ele manterá contatos apenas burocráticos com o Itamarati. Antes do fim da
década, desligar-se-á completamente, voltando ao jornalismo (crônicas, artigos,
críticas) e já pode pensar em sobreviver, modestamente, com os direitos
provenientes dos livros e das músicas.
A partir
dessa fase, Vinícius é uma figura de domínio público, alvo de uma notoriedade
que, em várias ocasiões chegou a lhe invadir a intimidade, transformando em
notícia todos os episódios ligados à sua vida particular. De certo modo,
Vinícius — sua obra, sua vida, sua personalidade — pode ser encarado como uma
espécie de símbolo, de uma profunda mudança de valores (não só literários e
artísticos) pela qual vem passando nossa sociedade nas últimas décadas. Na
verdade, poucos como ele souberam traduzir tão bem os anseios e aspirações de
uma variada, moderna e universal experiência amorosa; poucos souberam captar
tão convincentemente os excessos e a generosidade do sentimento comum, para se
tornar o intérprete fiel de uma alma coletiva.
VININHA, SARAVÁ!
São Paulo, 19/10/1979
- Acabo de rematar este breve relato, Vinícius, por coincidência no dia dos
teus 66 anos. Por isso, não só em meu nome, mas acredito que em nome da minha
geração, mais cova que a tua, mas já não tão nova assim; em nome da geração que
veio depois; em nome das gerações que hão de vir — eu te saúdo, Poeta, nós
todos te saudamos, e te desejamos longa vida e longa permanência à tua generosa
poesia!
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Fonte:
Vinícius de Moraes: Leitura Comentada. Texto: Carlos Felipe Moisés. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 5-9.
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