Uma história de sonhos, uma história de
ouro
Por:
Valéria De Marco (da Universidade de São
Paulo)
Há entre nós
e Alencar vários heróis, muitos romances, ilusões, histórias de amor nos livros,
no cinema e na televisão. É preciso ter em mente que mais de cem anos nos
separam e que Alencar é uma figura de muitas faces: jornalista, crítico
literário, cronista, teatrólogo, romancista, advogado deputado e ministro da
Justiça. As múltiplas atividades se alimentavam de um obsessivo desejo de
conhecer a realidade brasileira e de atuar dentro dela e não se pode tomar sua
ficção sem considerá-la como parte do debate político e cultural dos tempos do
Império, das polemicas acaloradas em busca da construção de uma identidade para
a nação que nascia. Um pouco do clima e algumas questões desse debate poderão
ser encontrados nos dois textos escritos por Alencar a propósito de Sonhos
D'Ouro: "Bênção Paterna" e "Os Sonhos D'Ouro". O primeiro
texto se desenvolve como um diálogo entre o autor e seu romance, como
preparação para "aquela crítica sisuda". Na conversa pode-se observar
não só o projeto da ficção alencariana e a classificação de suas obras como
também algumas das questões a eles subjacentes.
Dentre elas,
devem ser ressaltadas a da nacionalidade da literatura e a do papel da tradição
literária. Quanto à nacionalidade, pelas referências que faz o autor, parece
que a crítica da época oscilava entre os extremos de tematizar ou a raça nativa
ou a colonizadora, zelando pela absoluta pureza das línguas. Alencar aponta
para a necessária vinculação entre literatura e realidade e põe em relevo a
constante interação entre o nativo e o estrangeiro: "Não são assim os
povos não feitos: estes tendem como criança ao arremedo; copiam tudo, aceitam o
bom e o mau, o belo e o ridículo, para formarem o amálgama indigesto, limo de
que deve sair mais tarde uma individualidade robusta". A crítica ao
caráter estrangeiro das personagens deste romance não tardou è, dois meses
depois do livro sair do prelo, Alencar rebate-a em "Os Sonhos
D'Ouro", texto que fecha esta edição. Ainda em "Bênção Paterna",
tendo colocado os problemas da nacionalidade e da solidez da literatura,
Alencar tece algumas considerações a respeito do seu papel de autor na História
como contribuição para a formação de um lastro que possibilitaria a vinda dos
grandes escritores: "Sobretudo compreendam os críticos a missão dos
poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de
uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as
feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo".
A história
de Sonhos D'Ouro começa em um verão tropical, sob o sol ardente da Tijuca onde
se encontram Ricardo e Guida. Ele, um jovem bacharel provinciano, com
interesses e dotes artísticos, está no Rio trabalhando honestamente para
conseguir vinte contos de réis, montante que o levaria à felicidade. Guida é a
moça da corte, educada à inglesa, versada em salões e menina mimada, vendo
todos os caprichos satisfeitos, por ser filha de Soares, homem que "de
simples dono de armarinho, se elevara a milionário", a "banqueiro".
A narração do primeiro j encontro das duas personagens l utiliza tantos
recursos teatrais que o leitor logo percebe por onde vai a história e seu motor
é "esta diferença de condições sociais", apontada por António
Cândido, na Formação da Literatura Brasileira, como "uma das molas da
ficção de Alencar" A explicitação dessa diferença social entre as
personagens cria a possibilidade de lermos, neste romance, episódios de uma
história do ouro. Os capítulos VIU e XII trazem algumas maneiras de
enriquecimento e de aquisição de títulos de nobreza, ao apresentarem os
convivas de Soares, mostrando que as relações existentes à mesa de almoço ou de
jogo são tecidas pelo dinheiro. Este aparece também como elemento decisivo na
definição do casamento, problema longamente discutido nos capítulos XXV e XXVI.
O narrador, no capítulo V, atribui a devastação da natureza ao desejo de lucro.
Frequentemente,
esse universo de relações humanas permeado por disputas econômicas serve de
apoio a críticas à atividade política, como nas seguintes palavras de Soares,
referindo-se ao casamento da filha: "eu sou a coroa, a Guida é o
parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-me à sanção ou ao
veto".
Na relação
entre Guida e Ricardo há dois obstáculos: o ouro e a consciência. Observe-se o
caráter metálico das imagens que a ela se referem: o riso "argentino"
de Guida é comparado a "um cofre de pérolas e rubis"; "ela era o
milhão feito anjo; o ouro convertido em luz, a libra esterlina transformada em estrela",
e sonhos d'ouro, a flor que provoca o encontro das personagens, tem a cor do metal.
Ricardo defende a dignidade do trabalho, recusando-se a relacionar-se com o
mundo pela circulação do dinheiro ou do favor. Isola-se em seu pequeno quarto
para preservar a palavra empenhada e a consciência, trabalhando em alguns
processos e traduzindo folhetins e Eugénie Grandet. Intencional ou não, é
interessante a citação desta obra de Balzac: história de uma riqueza que cresce
na medida em que os proprietários se dissolvem, uma trajetória de
desumanização.
Talvez por a
realidade brasileira não apresentar o mesmo grau de complexidade que a
província francesa, talvez por Alencar não conseguir olhá-la com a pupila
impiedosa de Balzac, Sonhos D'Ouro impregna-se do romantismo e nos oferece uma
história de amor. Ricardo, liberado do compromisso de sua palavra, volta à
harmonia natural da Tijuca. A rapidez do desabrochar da flor desata os
sentimentos. Com a mesma pressa, Alencar foi ao prelo acrescentar o
post-scriptum que, apesar de tantas peripécias douradas, acaba forjando um happy-end para a história de sonhos. Talvez
seja esta a que mais cale na memória do leitor.
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Fonte:
Sonhos D'Ouro, por: José de Alencar. Editora Ática. São Paulo, 1981, págs. 5-6.
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