Sejamos vizinhos de Machado
Por:
Fernando Paixão
O leitor tem
em mãos uma seleção de crônicas de Machado de Assis. Isso quer dizer que deve
procurar uma poltrona confortável, num lugar fresco, arejado e sobretudo
tranquilo.
Deve também
deixar correr o livre pensar, escapando às rotas e aos nexos previsíveis;
sobressaem os devaneios do acaso. Da discussão das verbas públicas, o cronista
poderá saltar para o pudor do estômago, e ainda divagar sobre a inconveniência
do ato de jantar, interrompendo o difícil julgamento de réus, no Tribunal do
Júri. Inesperado elo entre justiça e digestão!
Cada crônica
de Machado sucede como uma boa conversa. Aliás, é o próprio autor quem, no
primeiro texto desta seleção, define a origem do gênero como um encontro de
vizinhas a escarafunchar as ocorrências do dia. E quem não gosta de um
bate-papo? É até reconhecido como um jeito brasileiro de discutir política ou
futebol, conhecer melhor pessoas e amigos, e até ciscar questões filosóficas,
sem ferir a normalidade dos fatos, tão necessária ao funcionamento da
sociedade.
Mas, esses
textos não seriam Machado, se a ironia não fosse a sua pedra de toque. Num
diálogo de burros, entra em discussão a liberdade das espécies; após a
alforria, o escravo decide ficar com o seu senhor, ganhando, além do mísero
salário, alguns petelecos... Logo se percebe o quanto no dia-a-dia (da
política, dos hábitos, das ideias prontas) as cenas do homem civilizado
compartilham um sabor de comédia e insensatez.
Machado de
Assis publicou rotineiramente crônicas ao longo de quatro décadas, tendo
iniciado no Diário do Rio de Janeiro (1860), e finalizado na Gazeta
de Notícias (1900), quando já estava consagrado como escritor. Coincidiu,
portanto, com um importante período de consolidação da imprensa brasileira, em
que o folhetim desfrutava aqui de muito sucesso, à maneira da Europa.
É comum os
críticos apontarem o caráter experimental que a crônica desempenhou na obra do
autor, ajudando-o a firmar seu estilo de ficcionista. Faceta menos conhecida, o
fato é que suas centenas de páginas de jornal permanecem como testemunho de uma
época e, mais do que isso, conseguem ainda hoje despertar o riso gostoso e
atiçar o espírito crítico dos leitores.
A antologia
que você lerá a seguir não se pautou por critérios de ordem cronológica ou
literária. Antes, o princípio de organização geral foi o do prazer da leitura,
visando suscitar uma proximidade com o autor, que não intimidasse por se tratar
de um clássico. Assim, foram dados títulos à maioria das crônicas, apenas com o
caráter de indicação temática.
Os
comentários e as máximas de Machado bem podem nos inspirar neste outro fim de
século, em que as transformações técnicas e políticas recentes acenam com
radicais mudanças. Não era diferente no seu tempo. O advento dos primeiros
bondes movidos a eletricidade, num vai-e-vem que aturdia pedestres, causando
até vítimas fatais, é por isso mesmo um dos temas preferidos do escritor,
atento simultaneamente ao futuro da eletricidade e à melancolia dos animais de
tração, desprestigiados pelo progresso.
Então: o
melhor é não ter pressa ou ansiedade na leitura destas crônicas. Antes de
avizinhar-se de Machado, procure mesmo uma boa poltrona e esqueça os relógios.
Boas
conversas!
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Fonte:
Crônicas Escolhidas, por: Machado de Assis. Editora Ática. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1994, págs. 9-10.
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