terça-feira, 5 de julho de 2016

Sejamos vizinhos de Machado

Sejamos vizinhos de Machado
Por: Fernando Paixão
O leitor tem em mãos uma seleção de crônicas de Machado de Assis. Isso quer dizer que deve procurar uma poltrona confortável, num lugar fresco, arejado e sobretudo tranquilo.
Deve também deixar correr o livre pensar, escapando às rotas e aos nexos previsíveis; sobressaem os devaneios do acaso. Da discussão das verbas públicas, o cronista poderá saltar para o pudor do estômago, e ainda divagar sobre a inconveniência do ato de jantar, interrompendo o difícil julgamento de réus, no Tribunal do Júri. Inesperado elo entre justiça e digestão!
Cada crônica de Machado sucede como uma boa conversa. Aliás, é o próprio autor quem, no primeiro texto desta seleção, define a origem do gênero como um encontro de vizinhas a escarafunchar as ocorrências do dia. E quem não gosta de um bate-papo? É até reconhecido como um jeito brasileiro de discutir política ou futebol, conhecer melhor pessoas e amigos, e até ciscar questões filosóficas, sem ferir a normalidade dos fatos, tão necessária ao funcionamento da sociedade.
Mas, esses textos não seriam Machado, se a ironia não fosse a sua pedra de toque. Num diálogo de burros, entra em discussão a liberdade das espécies; após a alforria, o escravo decide ficar com o seu senhor, ganhando, além do mísero salário, alguns petelecos... Logo se percebe o quanto no dia-a-dia (da política, dos hábitos, das ideias prontas) as cenas do homem civilizado compartilham um sabor de comédia e insensatez.
Machado de Assis publicou rotineiramente crônicas ao longo de quatro décadas, tendo iniciado no Diário do Rio  de Janeiro (1860), e finalizado na Gazeta de Notícias (1900), quando já estava consagrado como escritor. Coincidiu, portanto, com um importante período de consolidação da imprensa brasileira, em que o folhetim desfrutava aqui de muito sucesso, à maneira da Europa.
É comum os críticos apontarem o caráter experimental que a crônica desempenhou na obra do autor, ajudando-o a firmar seu estilo de ficcionista. Faceta menos conhecida, o fato é que suas centenas de páginas de jornal permanecem como testemunho de uma época e, mais do que isso, conseguem ainda hoje despertar o riso gostoso e atiçar o espírito crítico dos leitores.
A antologia que você lerá a seguir não se pautou por critérios de ordem cronológica ou literária. Antes, o princípio de organização geral foi o do prazer da leitura, visando suscitar uma proximidade com o autor, que não intimidasse por se tratar de um clássico. Assim, foram dados títulos à maioria das crônicas, apenas com o caráter de indicação temática.
Os comentários e as máximas de Machado bem podem nos inspirar neste outro fim de século, em que as transformações técnicas e políticas recentes acenam com radicais mudanças. Não era diferente no seu tempo. O advento dos primeiros bondes movidos a eletricidade, num vai-e-vem que aturdia pedestres, causando até vítimas fatais, é por isso mesmo um dos temas preferidos do escritor, atento simultaneamente ao futuro da eletricidade e à melancolia dos animais de tração, desprestigiados pelo progresso.
Então: o melhor é não ter pressa ou ansiedade na leitura destas crônicas. Antes de avizinhar-se de Machado, procure mesmo uma boa poltrona e esqueça os relógios.
Boas conversas!


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Fonte:
Crônicas Escolhidas, por: Machado de Assis. Editora Ática. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1994, págs. 9-10.

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