Conheçamos Lima Barreto, um descobridor do
Brasil
Por:
João Antônio
Esta
coletânea de crônicas é uma boa entrada para se conhecer Lima Barreto, escritor
que foi um dos descobridores do Brasil, um país praticamente inédito antes da
chegada de homens como Lima, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha... Lima Barreto
escreveu em Marginália:
"A
minha alma é de bandido tímido".
Paradoxo dos
paradoxos neste mulato dos mulatos: sua alma era de bandido tímido, mas seus
arroubos comovem e convencem até hoje. E se ele, em certos momentos, era quase
um carbonário, seu personagem Manuel Joaquim Gonzaga de Sá recomendava a doçura
como a maior força do mundo. Também dizia:
"A mais
estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia.
Abre aí um jornaleco, desses de bonecos, e logo dás com os clichês muito
negros... Olha que ninguém quer ser negro no Brasil!..."
Lima Barreto
pertence a uma família universal de escritores cuja marca é o humanismo que se
agita por um permanente espírito de luta: Cervantes, Gogol, Dickens, Gorki...
Mesmo na crônica
mais despretensiosa ou rápida vemos um Lima Barreto aguerrido e de tope. Para
azucrinar Copacabana chamava a sua casa modesta, em Todos os Santos, no
subúrbio carioca, de Vila Quilombo. Carregava consigo uma chave e não escondia
o segredo, atirava franco, limpo e atirava grande.
Mesmo nas
páginas breves, entendia, sentia e amava as criaturas mais insignificantes e
comuns, os esquecidos, os lesados e os evitados pelo establishment. Ali estavam, para ele, as pessoas mais importantes
do seu tempo, mexendo-se no mutirão de pingentes urbanos, sobreviventes
escorraçados lá no "refúgio dos infelizes", o subúrbio — gentes que
não deram certo em canto nenhum do Rio de Janeiro. Mas eram o povo carioca, a
periferia da corte que se dizia civilizada.
Há
escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma sapientia, uma sofisticação intelectual,
uma aflição estética, antes de ver os personagens. E há escritores atrás, e
mesmo ao lado, dos quais logo se vê, de pronto, um povo — com suas caras,
roupas, cheiros, as maneiras todas de ser. Assim era e é Lima Barreto. E no
cronista, devido ao trato com o cotidiano, essa característica cresce e excede.
E vamos conhecendo um Brasil evitado pelo establishment.
O sofrimento
pessoal de Lima também transparece nessas crônicas. Foram seus sofrimentos 41
anos de solidão, preenchidos pela produção, em vertigem, de 17 livros e mais
atribulação, entradas e saídas no sanatório, calvário e porres.
Sim e não.
Sim-não. Jogou grande, atirou alto e largo, enquanto outros jogaram as regras
apenas vigentes. Lima tinha consciência disso. De algum modo sabia que estava
erguendo uma obra vingadora.
Muita vez o
cronista se trai e se revela o romancista e é novamente um homem a serviço do
seu sonho. Como o próprio Isaías Caminha ou o major Policarpo Quaresma. E nessa
coisa não podia entrar mesquinharia. Escritor ou homem, era especial, não
admitia "o silêncio é ouro". Partia para o ataque direto, era
inconveniente e indesejado pela chamada elite. Tinha amor ou ódio pelos seus
personagens e, para ele, acima de outras, obra superior f exigia uma condição:
"A mais cega e absoluta sinceridade".
Apesar de
algumas tentativas sérias de redescobri-mento de Lima Barreto, em principal
após a publicação de sua biografia famosa, a de Francisco de Assis Barbosa a
primeira edição é de agosto de 1952—, há sempre pontos a ressaltar na
importância do mulato de Todos os Santos, pois vão sendo esquecidos novamente,
logo após esses "redescobrimentos". Daí também a boa oportunidade da
publicação de uma antologia de suas crônicas.
Afinal,
pudor e memória são qualidades de Lima dentro de um país em que essas virtudes
são curtas e precárias, um país de nome com seis letras inteiramente
diferentes. E que Lima Barreto ajudou a descobrir.
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Fonte:
Crônicas Escolhidas, por: Lima Barreto. Editora Ática. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1995, págs. 9-11.
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