terça-feira, 5 de julho de 2016

Conheçamos Lima Barreto, um descobridor do Brasil

Conheçamos Lima Barreto, um descobridor do Brasil
Por: João Antônio
Esta coletânea de crônicas é uma boa entrada para se conhecer Lima Barreto, escritor que foi um dos descobridores do Brasil, um país praticamente inédito antes da chegada de homens como Lima, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha... Lima Barreto escreveu em Marginália:
"A minha alma é de bandido tímido".
Paradoxo dos paradoxos neste mulato dos mulatos: sua alma era de bandido tímido, mas seus arroubos comovem e convencem até hoje. E se ele, em certos momentos, era quase um carbonário, seu personagem Manuel Joaquim Gonzaga de Sá recomendava a doçura como a maior força do mundo. Também dizia:
"A mais estúpida mania dos brasileiros, a mais estulta e lorpa, é a da aristocracia. Abre aí um jornaleco, desses de bonecos, e logo dás com os clichês muito negros... Olha que ninguém quer ser negro no Brasil!..."
Lima Barreto pertence a uma família universal de escritores cuja marca é o humanismo que se agita por um permanente espírito de luta: Cervantes, Gogol, Dickens, Gorki...
Mesmo na crônica mais despretensiosa ou rápida vemos um Lima Barreto aguerrido e de tope. Para azucrinar Copacabana chamava a sua casa modesta, em Todos os Santos, no subúrbio carioca, de Vila Quilombo. Carregava consigo uma chave e não escondia o segredo, atirava franco, limpo e atirava grande.
Mesmo nas páginas breves, entendia, sentia e amava as criaturas mais insignificantes e comuns, os esquecidos, os lesados e os evitados pelo establishment. Ali estavam, para ele, as pessoas mais importantes do seu tempo, mexendo-se no mutirão de pingentes urbanos, sobreviventes escorraçados lá no "refúgio dos infelizes", o subúrbio — gentes que não deram certo em canto nenhum do Rio de Janeiro. Mas eram o povo carioca, a periferia da corte que se dizia civilizada.
Há escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma sapientia, uma sofisticação intelectual, uma aflição estética, antes de ver os personagens. E há escritores atrás, e mesmo ao lado, dos quais logo se vê, de pronto, um povo — com suas caras, roupas, cheiros, as maneiras todas de ser. Assim era e é Lima Barreto. E no cronista, devido ao trato com o cotidiano, essa característica cresce e excede. E vamos conhecendo um Brasil evitado pelo establishment.
O sofrimento pessoal de Lima também transparece nessas crônicas. Foram seus sofrimentos 41 anos de solidão, preenchidos pela produção, em vertigem, de 17 livros e mais atribulação, entradas e saídas no sanatório, calvário e porres.
Sim e não. Sim-não. Jogou grande, atirou alto e largo, enquanto outros jogaram as regras apenas vigentes. Lima tinha consciência disso. De algum modo sabia que estava erguendo uma obra vingadora.
Muita vez o cronista se trai e se revela o romancista e é novamente um homem a serviço do seu sonho. Como o próprio Isaías Caminha ou o major Policarpo Quaresma. E nessa coisa não podia entrar mesquinharia. Escritor ou homem, era especial, não admitia "o silêncio é ouro". Partia para o ataque direto, era inconveniente e indesejado pela chamada elite. Tinha amor ou ódio pelos seus personagens e, para ele, acima de outras, obra superior f exigia uma condição: "A mais cega e absoluta sinceridade".
Apesar de algumas tentativas sérias de redescobri-mento de Lima Barreto, em principal após a publicação de sua biografia famosa, a de Francisco de Assis Barbosa a primeira edição é de agosto de 1952—, há sempre pontos a ressaltar na importância do mulato de Todos os Santos, pois vão sendo esquecidos novamente, logo após esses "redescobrimentos". Daí também a boa oportunidade da publicação de uma antologia de suas crônicas.
Afinal, pudor e memória são qualidades de Lima dentro de um país em que essas virtudes são curtas e precárias, um país de nome com seis letras inteiramente diferentes. E que Lima Barreto ajudou a descobrir.


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Fonte:
Crônicas Escolhidas, por: Lima Barreto. Editora Ática. Folha de S. Paulo. São Paulo, 1995, págs. 9-11.

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