Elos perdidos
"Quem acredita que cada ser foi criado
como agora nós o vemos deve, de vez em quando, ter-se surpreendido ao encontrar
um animal com hábitos e estrutura de forma alguma concordantes entre si."
(Darwin, 1859.)
Darwin
considerava-se um homem de ciência. Via as repercussões da Origem, fora do
mundo científico, como extraordinárias. Mas os biólogos estavam muito divididos
sobre o que seria, afinal, uma teoria biológica, bem como o público em geral.
Hooker e
Huxley, prevenidos, converteram-se imediatamente à teoria Darwin-Wallace da
evolução pela seleção natural, sustentada pela massa considerável de fatos
constantes em Origem. James Lubbock
(Lord Avebury), Henry Bates, Asa Gray, Robert Chambers — autor de Vestígios — e Herbert Spencer logo se
juntaram a eles. Lyell — de quem dependiam as teorias geológicas da Origem — estava em dúvida. Não era
contrário mas, também, não era a favor. Não estava convencido de que as forças
naturais — semelhantes àquelas que mudaram a força da Terra — pudessem
responder pelas mudanças biológicas. Contra a Origem, como Darwin disse para Hooker, em março de 1860, estava
"uma grande classe de homens e, mais especialmente, eu suspeito dos
naturalistas, que nunca vão se importar com qualquer
questão geral, de que o velho Gray, do Museu Britânico, possa ser tomado como
exemplo; e em segundo lugar, quase todos os homens que passaram da idade
moderada, tanto em anos reais quanto em mente, são — estou plenamente
convencido — incapazes de olhar para os fatos de um novo ponto de vista".
Darwin percebeu que iria ser uma "luta árdua".
"O
querido velho" Adam Sedgwick escreveu a Darwin uma carta indignada, e
criticou-o no Spectator, chamando-o
de "selvagem e intuito". Louis Agassiz - o paleontologista suíço —
considerava a teoria da transmutação "um equívoco científico".
Richard Owen não se declarou, mas forneceu a outros munição contra a teoria.
O
darwinismo, habilidosamente orientado por Haeckel, persuadiu os biólogos
alemães — menos von Baer. Na França, lê danvinisme
nunca se tornou respeitável.
Finalmente,
no entanto, a teoria da evolução pela seleção natural unificou a biologia e
tornou-se uma hipótese de trabalho para os empreendimentos futuros. Em abril de
1880, Huxley podia dizer em "A chegada da era da origem das espécies"
— uma conferência em Londres, feita na Royal Institution — que "a evolução
não é mais uma especulação, mas uma declaração de fato".
Mas os
paleontologistas continuaram a ter problemas e o problema maior era "a
imperfeição do registro geológico". Os elos perdidos estavam perdidos
porque não haviam sido encontrados ou eram lacunas genuínas que existiam entre
grupos de animais? Os elos perdidos haviam sido uma prova útil para o
catastrofísmo. Para Cuvier, teria havido várias criações, cada uma delas
destruída por uma catástrofe: fogo, terremoto ou inundação. Não havia nenhuma
conexão entre cada criação a não ser a mão do Criador. "Raças inteiras
foram destruídas para sempre, deixando apenas umas poucas relíquias que os
naturalistas quase não conseguem reconhecer." Havia mastodontes em uma
criação, extintos pela inundação. Os elefantes os substituíram na criação
seguinte. Não havia conexão linear entre os dois.
Darwin
estava bem a par de que, sem um registro da transformação gradual que
atravessasse as rochas, o registro paleontológico não í seria uma boa prova da
evolução. Mas, argumentava, a ausência de uma série nítida podia ser
responsabilizada de várias maneiras. Podia não haver, por exemplo, nenhum
intermediário entre os dois animais porque cada um deles teria derivado
independentemente do mesmo ancestral. Podia não haver intermediário aparente
porque a mudança podia ter ocorrido em muitos traços morfológicos ao mesmo
tempo, na hipótese da correlação de fatos. Podia não haver nenhum intermediário
porque um grupo havia migrado de algum outro lugar. Mas Darwin acreditava que,
na análise final, os elos perdidos eram o resultado da imperfeição do registro
fóssil e estava confiante em que os intermediários pudessem finalmente ser
descobertos para preencher as lacunas. Mamíferos ancestrais perdidos haviam
aparecido no Jurássico (150 milhões de anos atrás) — na ardósia de Stonesfield,
próxima a Oxford, em 1820.
A respeito
das lacunas, Huxley não estava convencido. Conquanto o homem pudesse parecer-se
muito com o gorila, havia, por exemplo, uma considerável lacuna entre eles: uma
lacuna semelhante às existentes no registro de fósseis. As lacunas evitaram que
Huxley aceitasse sinceramente a evolução gradual.
Talvez houvesse
ocasiões, preocupava-se ele, em que tivessem ocorrido saltos repentinos,
exatamente como afirmava em Vestígios.
"Você se sobrecarregou com uma dificuldade desnecessária" — escreveu
ele para Darwin, em novembro de 1859 — "ao adotar o Natura non facit saltum de forma tão pouco reservada". Huxley
ficava intrigado, querendo saber como os modernos cavalos de um só dedo, o Equus, podiam ter evoluído de um fóssil
de três dedos, conhecido como Anchitherium,
"animal mais próximo", do mioceno (25 milhões de anos atrás), e como
esse animal, por sua vez, podia ter evoluído do Hyracotherium, "animal coelho" descrito por Owen. Havia
lacunas. Mas, no exemplo de Huxley, a situação era esclarecida da mesma forma
como Darwin havia feito a previsão. As descobertas na América do Norte — por O.
C. Marsh — começaram a preencher as lacunas na década de 1870 e, à medida que
apareciam cada vez mais fósseis, uma direção evolucionista podia ser
discernível: dos pequenos cavalos com quatro dedos e com dentes de coroa baixa,
passando pelos cavalos com três dedos e com dentes de coroa alta, até os
cavalos com apenas um dos três dedos (o do meio) tocando o chão e os dentes
crescendo constantemente cerrados, até chegar-se, finalmente, ao grande cavalo
moderno, com apenas um dedo e dentes ainda maiores. Os pequenos cavalos de três
dedos evoluíram numa linha direta até os grandes cavalos de um só dedo. Lá
estava — nos cavalos — o gradualismo que Darwin e Huxley estavam procurando:
uma linha direta do desenvolvimento evolucionista.
As linhas
diretas nunca foram encontradas em todas as espécies de linhagens de fósseis. A
ortogênese, ou linha direta de evolução, tornou-se parte importante da teoria
evolucionista. Havia os extintos titanoteres, relacionados com os cavalos,
"animais gigantes" que, de pequenos começos, no eoceno (50 milhões de
anos atrás), na América do Norte, cresceram cada vez mais e desenvolveram
chifres rombudos nos narizes. Não havia nenhum chifre nos primeiros animais
pequenos; depois, apareceram os pequenos botões nasais; mais tarde, no começo
do oligoceno (35 milhões de anos atrás), os botões tornaram-se chifres e
alcançaram a sua forma maior e mais complexa no Brontotherium, do tamanho de um elefante, um "animal
retumbante". Era o fim da linhagem. O alce irlandês seguiu um modelo
semelhante na Europa: foi ficando cada vez maior desde o piloceno (7 milhões de
anos atrás) até o pleistoceno (l milhão de anos atrás), com aspas cada vez
maiores até que não mais podia manter a cabeça erguida, e caiu morto — assim
diz a história. Essas direções espetaculares não foram confirmadas com relação
aos mamíferos. Várias linhagens de ostras haviam se desenvolvido enrolando-se
numa concha. O enrolamento aumentou com constância até que a concha enrolada
comprimiu tão firmemente a outra concha que a ostra não mais pôde abrir, e a
linhagem extinguiu-se.
A ortogênese
— levando numa linha direta até a extinção — não podia ser adaptativa. Era,
argumentavam muitos, uma indicação de uma força inata — um exemplo de evolução
desassociada da seleção natural —, a "força da vida", que o filósofo
francês Henri Bergson havia descrito em L'evolution
créatice, em 1907. O élan vital
era a causa de toda a evolução. Mas cada vez mais os fósseis apareciam e —
através da interpretação das novas descobertas — a linha direta foi modificada
para uma árvore ramificada.
Durante a
década de 1940, G. G. Simpson estava capacitado para mostrar uma árvore
ramificada, ao invés da linha direta, na evolução do cavalo. O pequeno cavalo
norte-americano original deu nascimento a muitas formas novas pela divergência.
Eles se espalharam pelo mundo, uns maiores, outros menores. O Hyracotherium evoluiu para os cavalos
com três dedos e dentes de coroa alta. Mas, de novo, alguns eram maiores,
enquanto outros eram menores. E assim continuou até chegar aos cavalos maiores:
cavalos com apenas um dedo e com dentes de coroa alta, bem cerrados. Mas nem
todos estavam evoluindo exatamente da mesma forma e exatamente ao mesmo tempo.
Havia uma
direção ortogênica, mas essa direção total, mostrava Simpson, era uma média de
muitas direções e uma interpretação superficial dos fatos. Não havia nenhuma
indicação de um impulso íntimo — ou élan vital - mas um modelo de adaptação
pela seleção natural. Os primeiros cavalos, previu ele, viviam na floresta,
comendo frutas e folhas soltas, como o trágulo da Malásia. As condições mudaram
— a floresta diminuiu ou então, dentro da floresta, a competição aumentou — e
os cavalos afeiçoaram-se à vida na pastagem aberta, comendo folhas duras. A
seleção favoreceu os tamanhos maiores (para alcançar os ramos) e melhores
dentes (para mastigar as folhas duras). Depois, o pasto levou os cavalos para o
céu aberto — para as planícies — expostos aos carnívoros. Começou a ser
vantajoso poder correr rápido. As pernas longas eram melhores do que as pernas
curtas, mas pernas longas eram mais pesadas; apenas um dedo dava menos peso, no
entanto. O pasto era duro, logo, dentes grandes e grossos seriam favorecidos.
Simpson
rejeitou o élan vital e a ortogênese como descrição da evolução do cavalo. A
especiação divergente pela seleção natural era a responsável por aquela
evolução.
Mas as
rochas registram muitos animais com tendência para um tamanho maior — os
titanoteres, o alce irlandês, os tigres-de-dentes-de-sabre —, e muitos deles se
extinguiram. Todas as tendências poderiam ser explicadas pelo modelo de Simpson
- a seleção adaptando-se a novas circunstâncias?
Existe certa
justificativa em se supor que um tamanho maior pode ser uma adaptação à
independência fisiológica do meio ambiente. Quanto maior o animal, menor a
perda de calor e menos energia é consumida, por exemplo. Quanto maior o animal,
mais células ele tem. O tamanho maior combina com uma vida mais longa e pequeno
número de descendentes. O tamanho grande é uma boa coisa, conquanto exista
abundância de comida e de espaço. Mas, e se o meio ambiente muda? A fonte
alimentar pode ser restringida, o animal grande não tem nada para comer nem
lugar algum para ir. Pior, uma rotatividade lenta de descendentes não fornecerá
variedades em tempo suficiente para a seleção adaptar a população às novas
condições.
Mudança de
clima, mudança de suprimentos alimentares deve ter-se abatido sobre os
titanoteres, o alce irlandês e os dentes-de-sabre é melhor ser menor.
A ortogênese
— reformada como o gradualismo darwiniano — é provocada pela seleção natural,
sem qualquer força inata desobstrutível a dirigir uma linhagem até seu declínio
final.
A ortogênese
pode ter uma explicação darwiniana, mas as linhagens nem sempre mostram uma
mudança gradual: algumas parecem permanecer exatamente as mesmas durante
milhões de anos. Alguns besouros europeus não têm mostrado nenhuma mudança
durante os últimos milhões de anos. Os moluscos — que vivem na lama aquecida —
não mudam há 500 mil anos. O molusco pode ter sobrevivido porque o seu meio
ambiente enlameado sempre esteve disponível em algum lugar do seu círculo. Os
besouros podem ter sobrevivido porque, se o clima mudava em um lugar, eles
passavam a outro, sempre se locomovendo para permanecerem na mesma espécie de
condições. Dada uma força seletiva estável e um mesmo meio ambiente, nenhuma
mudança seria esperada no molusco ou no besouro, de acordo com a estrita teoria
darwiniana.
Outras
singularidades do registro fóssil podem ser resolvidas sem recurso a qualquer
coisa mais espetacular do que a evolução pela seleção natural. As lacunas, como
Darwin predisse, foram preenchidas. Mas não todas as lacunas: algumas estão
ainda "perdidas". E algumas situações curiosas têm ocorrido. Uma espécie
que permanece constante há milhares de anos muda de repente para outra forma —
e de novo permanece constante por milhares de anos. Em 1857, H. Bronn sugeriu
que isso seria um modelo comum.
---
As Ideias de Darwin, por: Wilma George. Tradução: Sônia Régis. Editora Culturix. São Paulo, 1985, págs. 109-114.
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