domingo, 10 de julho de 2016

Biografia de Lygia Fagundes Telles

Signo: áries. Cor: vermelho
Lygia é alta, morena, cabelos pretos. Movimentos elegantes, grandes olhos escuros e curiosos. Afetuosa, cheia de pequenas delicadezas para as pessoas de que gosta. Mãos longas e magras, que se mexem sem parar, principalmente quando fala do que gosta: por exemplo, de literatura. Costuma dizer que há três coisas em processo de extinção rápida: o índio, a árvore e o escritor. É na defesa do último, em particular do escritor brasileiro, que Lygia se desdobra, movendo céus e terras.
Sua palavra é fácil e geralmente empolga auditórios, na sua maioria constituídos por jovens estudantes. Sua casa é cheia de livros, quadros e plantas. Vive em São Paulo, mas já viajou muito. As mesas, estantes e paredes de seu apartamento guardam coisas que se foram acumulando nessas viagens: caixinhas do Irã, camelos da Tunísia, figuras de barro do nordeste brasileiro, enfim, um pouco de cada lugar por onde ela passou.
Lygia faz ginástica regularmente (diz que adora praticar esportes), faz feira toda semana, compra em supermercados. Veste-se com discrição, tem um filho e um gato. É, enfim, uma mulher que vive o dia-a-dia de uma dona de casa paulistana. Mas Lygia nem sempre viveu em cidade grande.
Seu pai, o Dr. Durval de Azevedo Fagundes, era delegado e promotor público; a profissão fez dele uma espécie de viajante. Passava algum tempo numa cidade, depois era transferido para outra, depois para outra... e lá ia a família atrás: malas, sacolas, pacotes, a tralha toda. Até hoje Lygia se lembra dos cacarecos das mudanças, principalmente de um penico azul de um fogareiro a álcool e de um piano com grandes castiçais dourados, onde sua mãe costumava tocar. Estes objetos, com a família, percorreram várias cidades do interior de São Paulo: Areias, Assis, Apiaí. Sertãozinho e outras mais. Foi por esse interior que Lygia fez o curso primário.
 O ginásio, depois, foi feito em São Paulo, no Instituto de Educação Caetano de Campos, na época uma escola tida como modelo. Lygia conta que, nesse tempo de ginásio no Caetano de Campos, já escrevia suas primeiras histórias. Conta também que era péssima aluna em matemática, mas desforrava em português, cujo professor gostava de seu jeito de escrever. Pudera!

ENTROU POR UMA PORTA E SAIU PELA OUTRA; QUEM QUISER QUE CONTE OUTRA.
Hoje, relembrando os alinhavos de sua profissão de escritora, Lygia se lembra de que sua infância foi pontilhada de histórias, contadas por uma pajem, a Maricota. Fadas, bruxas, assombrações, sacis, florestas encantadas e mulas-sem-cabeça povoaram sua mente de menina. Eram histórias contadas à noite, na hora de dormir. Às vezes histórias de medo, às vezes de fadas boas, que davam sonhos luminosos. Mas sempre histórias que ficaram retidas na memória (e às vezes nos cadernos) e que, mais tarde, iriam alimentar seus contos e romances, onde fadas e bruxas são substituídas por gente comum, de carne e osso, gente com quem se pode esbarrar na rua.
Ainda criança, Lygia ouvia histórias e depois as contava para um auditório de crianças do quarteirão, arrebanhadas nas escadas da porta de casa. Diz ela que, quando contava, não sentia o medo que a penetrava quando as ouvia. Então contava histórias para espantar o medo, para transferi-lo aos outros, aos que a ouviam. Preocupada com sua responsabilidade de contadora de histórias — pois não podia alterar nomes de personagens, nem a ordem em que as coisas aconteciam —, escrevia-as nas folhas finais dos cadernos, enfeitadas com cromos e gravuras. E tomava pito, porque estragava os cadernos. Quem diria...
Deixando para trás o ginásio e o normal (um dos poucos permitidos às mocinhas de antigamente), ela entrou na Escola Superior de Educação Física e depois na Faculdade de Direito de São Paulo, tornando-se aluna das famosas Arcadas do largo de São Francisco.
O curso de educação física foi para tranquilizar a mãe, D. Maria do Rosário, que a achava magrinha demais e provável candidata a uma tuberculose. E também apedido da mãe, que tocava piano, Lygia recitava, muito compenetrada, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac e Guilherme de Almeida. Foi ao som destes poetas e ao lado de livros de belas e coloridíssimas capas que Lygia foi crescendo.

LYGIA FAGUNDES, QUE AINDA NÃO ERA TELLES
A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco ocorreu na vida de Lygia por volta da década de quarenta. Por esse tempo, já se delineavam seus caminhos literários: ela participava e acompanhava o pessoal da escola ligado em arte. Lygia pertencia à Academia de Letras da Faculdade de Direito e colaborava em revistas e jornais da faculdade (Arcádia, A Balança, por exemplo) com contos e poemas.
Frequentava a Jaraguá, misto de livraria, salão de chá e galeria de arte, onde se reuniam escritores, pintores e outros artistas. Lá era ponto de encontro de grupos intelectuais e boêmios, entre os quais o pessoal da Faculdade de Filosofia de São Paulo, que então funcionava em salas cedidas pelo Instituto de Educação Caetano de Campos, uma antiga escola de primeiro e segundo graus do centro de São Paulo. Era nessa livraria que se reuniam os fundadores da revista Clima, e foi também lá que surgiu um Clube de Cinema. Era ainda na Jaraguá que se encontravam alguns escritores já famosos, como Mário e Oswald de Andrade, e outros ainda desconhecidos, como Lygia, que ainda não era Telles, era de Azevedo Fagundes.
Mocinha bonita, comprida e magricela, Lygia rodopiava da faculdade para a livraria, numa São Paulo ainda pacata, com bondes cortando as ruas largas e tranquilas, e com a garoa caindo em noites frias de inverno.
Os frequentadores da Jaraguá e os estudantes do largo de São Francisco, porém, tinham problemas maiores do que o fino chuvisco da São Paulo da garoa: o Brasil do Estado Novo, a ditadura de Vargas e as reuniões proibidas, a censura à imprensa, a perseguição a estudantes. Tudo isso oprimia, tudo isso tornava perigosa e subversiva a atividade intelectual. Os intelectuais que se reuniam na Jaraguá eram uma espécie de resistência. Resistiram, sobreviveram, desabrocharam.
Os anos quarenta são anos importantes na vida de Lygia. Marcam seu primeiro casamento e seu primeiro livro. Casou-se com Goffredo da Silva Telles, professor da Faculdade de Direito, e, em 1944, teve seu primeiro livro publicado: os contos de Praia Viva. No fim dessa mesma década, em 1949, publica sua segunda obra, outros contos reunidos no livro O Cacto Vermelho.
Falando hoje destes seus primeiros contos, Lygia vê alguns deles como quem vê os primeiros e inseguros voos: mais para experimentar as asas, mais para medir as forças. Já outros contos destes primeiros livros, retrabalhados por Lygia, estão republicados numa recente obra que, por sinal, tem um título muito significativo: Filhos Pródigos, reunindo contos "que estavam perdidos e se acharam (...). Os contos desgarrados. Recolhidos e tosquiados. O pastor junta seu rebanho."
Mas, se algumas destas primeiras histórias não satisfazem o exigente gosto da escritora de hoje, satisfizeram plenamente a crítica do tempo. Lygia foi premiada pela Academia Brasileira de Letras pelo seu livro O Cacto Vermelho, ganhando o Prêmio Afonso Arinos. Histórias do Desencontro, livro de contos de 1958, também foi obra premiada, agora pelo Instituto Nacional do Livro. Em 1969 foi laureada mais uma vez na Europa (em Paris), com o Grande Prêmio Internacional Feminino para Estrangeiros, atribuído a Antes do Baile Verde.
O casamento de Lygia com Goffredo não deu certo. Desfez-se. O segundo casamento foi com Paulo Emílio Salles Gomes, professor e crítico de cinema. Um dos melhores livros de Lygia é dedicado a ele. Trata-se de As Meninas, romance publicado em 1973. A escritora conta que este livro, que se passa num pensionato de moças, foi, de certa maneira, inspirado nos amigos do filho, Goffredo. Naquela época, sua casa vivia cheia de jovens, que entravam e saíam o tempo todo. Lygia ouvia suas conversas, suas "transas", sua vida. Incorporava tudo: onda de tóxicos, de drogas, o vocabulário restrito; a radicalização política dos anos setenta, a repressão violenta, a ação armada, os sequestros políticos, o terrorismo, os conflitos dos que optaram e dos que não conseguiram optar; a liberdade sexual, as mudanças de costumes. Tudo, enfim, que delineava o caminho da juventude universitária brasileira posterior a sessenta e quatro, Lygia ouvia, registrava. Escreveu então As Meninas, e recebeu vários prêmios: Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras; Prêmio Ficção, da Associação Paulista de Críticos de Arte; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

LYGIA FAGUNDES TELLES, ESCRITORA PROFISSIONAL
Qual é a medida de um bom escritor? Difícil de responder. Os críticos brigam entre si, os professores brigam com eles, enquanto o público, geralmente desinteressado de tantas querelas, vai elegendo seus preferidos, sem prestar muita atenção nem a professores, nem a críticos. E por esse público parece que Lygia foi bem recebida. Seu romance As Meninas, além de ter sido premiado, teve muito sucesso junto aos leitores. Tanto sucesso, que já está na décima edição, em vias de ser traduzido para o espanhol.
Assim é Lygia. Da vida para a literatura, e daí para a vida de novo. Atualmente, ela se empenha de corpo e alma em campanhas pela difusão do autor nacional, na luta pela profissionalização do escritor. Faz conferências, visita escolas, participa de seminários e semanas de estudo. Em 1977, por exemplo, participou da Comissão Organizadora do Congresso Internacional de Escritores. Em 1979, da Semana do Escritor Brasileiro. Pertence também ao Corpo Deliberativo de Cultura do Estado de São Paulo. Tudo isso, numa tentativa de assegurar o lugar do escritor brasileiro no nosso mercado, invadido por uma literatura estrangeira de baixa qualidade.
De uns tempos para cá, o mercado de livros brasileiros tem sofrido algumas alterações significativas e alvissareiras. Não é mais apenas o escritor que, com a pasta de originais debaixo do braço, sai correndo atrás dos editores. Para alguns escritores, evidentemente os de maior renome, a relação editor/autor parece ter virado ao avesso: o editor é que vai atrás dos autores, encomendando-lhes trabalhos.
Estamos vivendo um tempo em que as antologias se multiplicam; há antologias para todos os gostos: antologias de contos eróticos, de contos escritos por mulheres, de mineiros, de gaúchos, de contos escritos por publicitários e assim por diante.
Estamos também no tempo da produção encomendada de textos para antologias que, em conjunto, têm uma determinada proposta: a Editora Civilização Brasileira, por exemplo, publicou em 1954 um livro intitulado Os Sete Pecados Capitais. Em 1979, a Editora Cultura enfeixou em Criança Brinca, não Brinca? contos que giram em tomo de brincadeiras infantis. Em ambas as antologias Lygia foi chamada a participar, como também participou do livro de reescrituras de "A Missa do Galo" (famoso conto de Machado de Assis), organizado em 1977 por Osman Lins e editado pela Summus Editorial. Esta revisão do velho Machado está transcrita nesta antologia, onde você poderá ler a misteriosa e instigante conversa noturna entre Conceição e seu hóspede, tal como a concebeu Lygia.
A participação de Lygia em tantas e tão diferentes antologias é uma prova do realce de seu nome entre os escritores brasileiros contemporâneos mais conhecidos do público. Outra medida de seu sucesso é a frequência com que textos seus são adaptados para a televisão. "A Caçada" e "O Jardim Selvagem" são exemplos disso.
Mas essa "fecundidade" editorial brasileira não deve levar ninguém apensar que é fácil viver de literatura. Não é fácil; aliás, é quase impossível. Lygia, por exemplo, é prosaicamente funcionária pública: procuradora do Instituto Nacional de Previdência Social.
Lidar com literatura, enfim, é uma guerra em nosso país, mas algumas batalhas já foram ganhas. Uma delas, talvez a mais recente, foi contra a censura que, a partir de meados da década de sessenta, mutilou e desfigurou a produção literária brasileira, proibindo obras a torto e a direito. Muito embora Lygia nunca tivesse obras proibidas, foi sempre soldado de primeira linha, comparecendo a atos públicos, assinando manifestos e abaixo-assinados que pediam a queda da censura, em nome do livre exercício da profissão do escritor.
Para encerrar, com a palavra Lygia, e sua definição de escritor:
"A função do escritor? Escrever por aqueles que muitas vezes esperam ouvir de nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e, se possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-lo no seu sofrimento. Na sua fé. Isso requer amor — o amor e a piedade que o escritor deve ter no coração".
Até que ponto Lygia cumpre seu propósito de amor e solidariedade é o que se pretende mostrar através dos textos selecionados para esta antologia.


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Fonte:
Lygia Fagundes Telles: Literatura Comentada. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-6.

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