Signo: áries. Cor: vermelho
Lygia é
alta, morena, cabelos pretos. Movimentos elegantes, grandes olhos escuros e
curiosos. Afetuosa, cheia de pequenas delicadezas para as pessoas de que gosta.
Mãos longas e magras, que se mexem sem parar, principalmente quando fala do que
gosta: por exemplo, de literatura. Costuma dizer que há três coisas em processo
de extinção rápida: o índio, a árvore e o escritor. É na defesa do último, em
particular do escritor brasileiro, que Lygia se desdobra, movendo céus e
terras.
Sua palavra
é fácil e geralmente empolga auditórios, na sua maioria constituídos por jovens
estudantes. Sua casa é cheia de livros, quadros e plantas. Vive em São Paulo,
mas já viajou muito. As mesas, estantes e paredes de seu apartamento guardam
coisas que se foram acumulando nessas viagens: caixinhas do Irã, camelos da
Tunísia, figuras de barro do nordeste brasileiro, enfim, um pouco de cada lugar
por onde ela passou.
Lygia faz
ginástica regularmente (diz que adora praticar esportes), faz feira toda
semana, compra em supermercados. Veste-se com discrição, tem um filho e um
gato. É, enfim, uma mulher que vive o dia-a-dia de uma dona de casa paulistana.
Mas Lygia nem sempre viveu em cidade grande.
Seu pai, o
Dr. Durval de Azevedo Fagundes, era delegado e promotor público; a profissão
fez dele uma espécie de viajante. Passava algum tempo numa cidade, depois era
transferido para outra, depois para outra... e lá ia a família atrás: malas,
sacolas, pacotes, a tralha toda. Até hoje Lygia se lembra dos cacarecos das
mudanças, principalmente de um penico azul de um fogareiro a álcool e de um
piano com grandes castiçais dourados, onde sua mãe costumava tocar. Estes
objetos, com a família, percorreram várias cidades do interior de São Paulo:
Areias, Assis, Apiaí. Sertãozinho e outras mais. Foi por esse interior que Lygia
fez o curso primário.
O ginásio, depois, foi feito em São Paulo, no
Instituto de Educação Caetano de Campos, na época uma escola tida como modelo.
Lygia conta que, nesse tempo de ginásio no Caetano de Campos, já escrevia suas
primeiras histórias. Conta também que era péssima aluna em matemática, mas
desforrava em português, cujo professor gostava de seu jeito de escrever.
Pudera!
ENTROU POR UMA PORTA E SAIU PELA OUTRA; QUEM QUISER QUE CONTE OUTRA.
Hoje,
relembrando os alinhavos de sua profissão de escritora, Lygia se lembra de que
sua infância foi pontilhada de histórias, contadas por uma pajem, a Maricota.
Fadas, bruxas, assombrações, sacis, florestas encantadas e mulas-sem-cabeça
povoaram sua mente de menina. Eram histórias contadas à noite, na hora de
dormir. Às vezes histórias de medo, às vezes de fadas boas, que davam sonhos
luminosos. Mas sempre histórias que ficaram retidas na memória (e às vezes nos
cadernos) e que, mais tarde, iriam alimentar seus contos e romances, onde fadas
e bruxas são substituídas por gente comum, de carne e osso, gente com quem se
pode esbarrar na rua.
Ainda
criança, Lygia ouvia histórias e depois as contava para um auditório de
crianças do quarteirão, arrebanhadas nas escadas da porta de casa. Diz ela que,
quando contava, não sentia o medo que a penetrava quando as ouvia. Então
contava histórias para espantar o medo, para transferi-lo aos outros, aos que a
ouviam. Preocupada com sua responsabilidade de contadora de histórias — pois
não podia alterar nomes de personagens, nem a ordem em que as coisas aconteciam
—, escrevia-as nas folhas finais dos cadernos, enfeitadas com cromos e
gravuras. E tomava pito, porque estragava os cadernos. Quem diria...
Deixando
para trás o ginásio e o normal (um dos poucos permitidos às mocinhas de
antigamente), ela entrou na Escola Superior de Educação Física e depois na
Faculdade de Direito de São Paulo, tornando-se aluna das famosas Arcadas do
largo de São Francisco.
O curso de
educação física foi para tranquilizar a mãe, D. Maria do Rosário, que a achava
magrinha demais e provável candidata a uma tuberculose. E também apedido da
mãe, que tocava piano, Lygia recitava, muito compenetrada, Casimiro de Abreu,
Olavo Bilac e Guilherme de Almeida. Foi ao som destes poetas e ao lado de
livros de belas e coloridíssimas capas que Lygia foi crescendo.
LYGIA FAGUNDES, QUE AINDA NÃO ERA TELLES
A Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco ocorreu na vida de Lygia por volta da
década de quarenta. Por esse tempo, já se delineavam seus caminhos literários:
ela participava e acompanhava o pessoal da escola ligado em arte. Lygia
pertencia à Academia de Letras da Faculdade de Direito e colaborava em revistas
e jornais da faculdade (Arcádia, A Balança, por exemplo) com contos e
poemas.
Frequentava
a Jaraguá, misto de livraria, salão de chá e galeria de arte, onde se reuniam
escritores, pintores e outros artistas. Lá era ponto de encontro de grupos
intelectuais e boêmios, entre os quais o pessoal da Faculdade de Filosofia de
São Paulo, que então funcionava em salas cedidas pelo Instituto de Educação
Caetano de Campos, uma antiga escola de primeiro e segundo graus do centro de
São Paulo. Era nessa livraria que se reuniam os fundadores da revista Clima, e foi também lá que surgiu um
Clube de Cinema. Era ainda na Jaraguá que se encontravam alguns escritores já
famosos, como Mário e Oswald de Andrade, e outros ainda desconhecidos, como
Lygia, que ainda não era Telles, era de Azevedo Fagundes.
Mocinha
bonita, comprida e magricela, Lygia rodopiava da faculdade para a livraria,
numa São Paulo ainda pacata, com bondes cortando as ruas largas e tranquilas, e
com a garoa caindo em noites frias de inverno.
Os
frequentadores da Jaraguá e os estudantes do largo de São Francisco, porém,
tinham problemas maiores do que o fino chuvisco da São Paulo da garoa: o Brasil
do Estado Novo, a ditadura de Vargas e as reuniões proibidas, a censura à
imprensa, a perseguição a estudantes. Tudo isso oprimia, tudo isso tornava
perigosa e subversiva a atividade intelectual. Os intelectuais que se reuniam
na Jaraguá eram uma espécie de resistência. Resistiram, sobreviveram,
desabrocharam.
Os anos
quarenta são anos importantes na vida de Lygia. Marcam seu primeiro casamento e
seu primeiro livro. Casou-se com Goffredo da Silva Telles, professor da Faculdade
de Direito, e, em 1944, teve seu primeiro livro publicado: os contos de Praia Viva. No fim dessa mesma década,
em 1949, publica sua segunda obra, outros contos reunidos no livro O Cacto Vermelho.
Falando hoje
destes seus primeiros contos, Lygia vê alguns deles como quem vê os primeiros e
inseguros voos: mais para experimentar as asas, mais para medir as forças. Já
outros contos destes primeiros livros, retrabalhados por Lygia, estão republicados
numa recente obra que, por sinal, tem um título muito significativo: Filhos Pródigos, reunindo contos
"que estavam perdidos e se acharam (...). Os contos desgarrados.
Recolhidos e tosquiados. O pastor junta seu rebanho."
Mas, se
algumas destas primeiras histórias não satisfazem o exigente gosto da escritora
de hoje, satisfizeram plenamente a crítica do tempo. Lygia foi premiada pela
Academia Brasileira de Letras pelo seu livro O Cacto Vermelho, ganhando o Prêmio Afonso Arinos. Histórias do Desencontro, livro de
contos de 1958, também foi obra premiada, agora pelo Instituto Nacional do
Livro. Em 1969 foi laureada mais uma vez na Europa (em Paris), com o Grande Prêmio
Internacional Feminino para Estrangeiros, atribuído a Antes do Baile Verde.
O casamento
de Lygia com Goffredo não deu certo. Desfez-se. O segundo casamento foi com
Paulo Emílio Salles Gomes, professor e crítico de cinema. Um dos melhores
livros de Lygia é dedicado a ele. Trata-se de As Meninas, romance publicado em 1973. A escritora conta que este
livro, que se passa num pensionato de moças, foi, de certa maneira, inspirado
nos amigos do filho, Goffredo. Naquela época, sua casa vivia cheia de jovens,
que entravam e saíam o tempo todo. Lygia ouvia suas conversas, suas
"transas", sua vida. Incorporava tudo: onda de tóxicos, de drogas, o
vocabulário restrito; a radicalização política dos anos setenta, a repressão
violenta, a ação armada, os sequestros políticos, o terrorismo, os conflitos
dos que optaram e dos que não conseguiram optar; a liberdade sexual, as
mudanças de costumes. Tudo, enfim, que delineava o caminho da juventude
universitária brasileira posterior a sessenta e quatro, Lygia ouvia,
registrava. Escreveu então As Meninas,
e recebeu vários prêmios: Prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras;
Prêmio Ficção, da Associação Paulista de Críticos de Arte; Prêmio Jabuti, da
Câmara Brasileira do Livro.
LYGIA FAGUNDES TELLES, ESCRITORA PROFISSIONAL
Qual é a
medida de um bom escritor? Difícil de responder. Os críticos brigam entre si,
os professores brigam com eles, enquanto o público, geralmente desinteressado
de tantas querelas, vai elegendo seus preferidos, sem prestar muita atenção nem
a professores, nem a críticos. E por esse público parece que Lygia foi bem
recebida. Seu romance As Meninas,
além de ter sido premiado, teve muito sucesso junto aos leitores. Tanto
sucesso, que já está na décima edição, em vias de ser traduzido para o
espanhol.
Assim é
Lygia. Da vida para a literatura, e daí para a vida de novo. Atualmente, ela se
empenha de corpo e alma em campanhas pela difusão do autor nacional, na luta
pela profissionalização do escritor. Faz conferências, visita escolas,
participa de seminários e semanas de estudo. Em 1977, por exemplo, participou
da Comissão Organizadora do Congresso Internacional de Escritores. Em 1979, da
Semana do Escritor Brasileiro. Pertence também ao Corpo Deliberativo de Cultura
do Estado de São Paulo. Tudo isso, numa tentativa de assegurar o lugar do
escritor brasileiro no nosso mercado, invadido por uma literatura estrangeira
de baixa qualidade.
De uns
tempos para cá, o mercado de livros brasileiros tem sofrido algumas alterações
significativas e alvissareiras. Não é mais apenas o escritor que, com a pasta
de originais debaixo do braço, sai correndo atrás dos editores. Para alguns
escritores, evidentemente os de maior renome, a relação editor/autor parece ter
virado ao avesso: o editor é que vai atrás dos autores, encomendando-lhes
trabalhos.
Estamos
vivendo um tempo em que as antologias se multiplicam; há antologias para todos
os gostos: antologias de contos eróticos, de contos escritos por mulheres, de
mineiros, de gaúchos, de contos escritos por publicitários e assim por diante.
Estamos
também no tempo da produção encomendada de textos para antologias que, em
conjunto, têm uma determinada proposta: a Editora Civilização Brasileira, por
exemplo, publicou em 1954 um livro intitulado Os Sete Pecados Capitais. Em 1979, a Editora Cultura enfeixou em Criança Brinca, não Brinca? contos que
giram em tomo de brincadeiras infantis. Em ambas as antologias Lygia foi
chamada a participar, como também participou do livro de reescrituras de
"A Missa do Galo" (famoso conto de Machado de Assis), organizado em
1977 por Osman Lins e editado pela Summus Editorial. Esta revisão do velho
Machado está transcrita nesta antologia, onde você poderá ler a misteriosa e
instigante conversa noturna entre Conceição e seu hóspede, tal como a concebeu
Lygia.
A
participação de Lygia em tantas e tão diferentes antologias é uma prova do
realce de seu nome entre os escritores brasileiros contemporâneos mais
conhecidos do público. Outra medida de seu sucesso é a frequência com que
textos seus são adaptados para a televisão. "A Caçada" e "O
Jardim Selvagem" são exemplos disso.
Mas essa
"fecundidade" editorial brasileira não deve levar ninguém apensar que
é fácil viver de literatura. Não é fácil; aliás, é quase impossível. Lygia, por
exemplo, é prosaicamente funcionária pública: procuradora do Instituto Nacional
de Previdência Social.
Lidar com
literatura, enfim, é uma guerra em nosso país, mas algumas batalhas já foram
ganhas. Uma delas, talvez a mais recente, foi contra a censura que, a partir de
meados da década de sessenta, mutilou e desfigurou a produção literária
brasileira, proibindo obras a torto e a direito. Muito embora Lygia nunca
tivesse obras proibidas, foi sempre soldado de primeira linha, comparecendo a
atos públicos, assinando manifestos e abaixo-assinados que pediam a queda da
censura, em nome do livre exercício da profissão do escritor.
Para
encerrar, com a palavra Lygia, e sua definição de escritor:
"A
função do escritor? Escrever por aqueles que muitas vezes esperam ouvir de
nossa boca a palavra que gostariam de dizer. Comunicar-se com o próximo e, se
possível, mesmo por caminhos ambíguos, ajudá-lo no seu sofrimento. Na sua fé.
Isso requer amor — o amor e a piedade que o escritor deve ter no coração".
Até que
ponto Lygia cumpre seu propósito de amor e solidariedade é o que se pretende
mostrar através dos textos selecionados para esta antologia.
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Fonte:
Lygia Fagundes Telles: Literatura Comentada. Abril Educação. São Paulo, 1980, págs. 3-6.
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