sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Carisma de Flávio Cavalcanti

O Carisma de Flávio Cavalcanti
Se for contar nos dedos os apresentadores revelados desde a inauguração do canal 6, pode-se preencher duas mãos bem cheias. Quase a maioria oriunda do rádio. Eles tinham a noção perfeita da postura do mestre de cerimônias, a elegância, a identidade masculina e a boa emissão vocal. Carlos Frias, J. Silvestre, Paulo Max, Murilo Nery, Hilton Gomes, Corrêa de Araújo, Urbano Lóes, Aérton Perlingeiro, Jorge Perlingeiro, Paulo Monte e Mauro Montalvão, entre outros, são nomes marcantes que brilharam na tarefa de conduzir programas de auditório ou de estúdio.
Flávio Cavalcanti ia mais longe no conceito do apresentador classudo que emanava aquela simpatia contagiante. Ele era jornalista, e com isso o mix de mestre de cerimônias com repórter aconteceu plenamente. Isso dava uma dinâmica às suas performances, uma teatralidade, ele encenava a notícia, e sempre usando sua verve inquieta, polêmica, instigante. Batia uma identificação imediata com o público, concordasse ou não com suas afirmações. O carisma de Flávio atravessava a tela.

Esse Coqueiro que Dá Coco? ...
Foi em 1957 que Flávio Cavalcanti estreou na Tupi apresentando e produzindo o programa Um Instante, Maestro!, que de cara agradou em cheio. Vindo da Rádio Mayrink Veiga, onde além de Discos Impossíveis o inspirador do programa da televisão também produziu com o amigo Jacinto de Thormes, o Maneco Muller, Nós os Gatos – sobre a noite carioca, ele pisava pela primeira vez naquele veículo que dominaria como poucos a seguir. Um Instante, Maestro! comentava discos, recebia cantores e dava uma geral no mundo fonográfico com personalidade. Como crítico, Flávio quebrava discos, que considerava ruins, na beira da estante, o que dava um impacto forte, e rendia comentários entre o público, imprensa e músicos durante o resto da semana.
Casado com a mineira Belinha e pai de três filhos, Marzinha, Flávio e Fernanda, deixou quatro netos (Jarbinhas, Rafael, Flavinha e Isabel) e quatro bisnetos (Luisa, Thiago, João Flávio e Antônio Pedro). Flávio Cavalcanti Jr. seguiu os passos do pai, tornando-se figura indispensável em sua equipe, e mais tarde homem das telecomunicações, trabalhando com os empresários Adolpho Bloch e Silvio Santos na implantação de suas emissoras de televisão.
Flavinho, como é conhecido entre os colegas, está acabando de escrever o livro Juro que Vi, de memórias e aventuras com Flávio, e está viabilizando comercialmente os filmes e vídeos do produtor Nelson Hoineff.
Ao falar de seu pai, sua expressão se ilumina e aparece uma semelhança impressionante em suas expressões:
– Ele escrevia nos jornais O Jornal e Diário da Noite, quando conseguiu entrevistar o Getúlio Vargas numa recepção oferecida pelo Alencastro Guimarães, figura importante na época, se disfarçando de garçom! Ele penetrou na festa, pegou uma bandeja e chegou até o Getúlio. Esta matéria colocou o velho como um jornalista ousado e criativo. Foi quando o Jacinto de Thormes (que além do programa de rádio, fazia na televisão um programa de colunismo social com entrevistas) pediu ao papai que o substituísse porque ele ia acompanhar a Seleção Brasileira nos jogos preliminares da Copa de 1958 na Europa. Quando o Maneco voltou, o Adhemar Casé, que patrocinava o programa, falou para ele: você tem bossa para televisão, bola um programa que a gente bota no ar. Aí nasceu o Um Instante, Maestro!. O programa foi o melhor passaporte para Flávio adentrar à televisão, falava de música, criticava discos, apresentava cantores e compositores que estavam no mercado carioca, lançando sua marca registrada de apresentador: a polêmica. Prossegue Flavinho:
– Ele achava que a facilidade que o telespectador tinha para mudar de canal era muito grande, mesmo só com outra emissora no ar (a TV Rio), por isso ele tinha de despertar a polêmica, até que fosse para o sujeito descordar ou esculhambar ele. Isso prendia a atenção, e aumentava o interesse daqueles que também concordavam com suas opiniões. Papai achava que tinha músicas com letras inimagináveis, horrorosas, que deviam ser expurgadas, como aquela do Teixerinha, Churrasquinho de Mãe. Com o Ary Barroso ele provocou: como é, Ary, esse coqueiro que dá coco?
Ele também começou a fazer campanhas na área da política e do bem-estar social, por exemplo: foi um guerrilheiro contra os fogos de artifício no Rio de Janeiro. Ele achava aquilo um absurdo. Tinha um lobby da indústria produtora que queria matá-lo.
Com rigor crítico e bom gosto, Flávio apresentava também compositores e intérpretes que produziam o fino da MPB. Dolores Duran tinha suas canções comentadas e cantadas com destaque. Flávio exaltou os versos de Orestes Barbosa em Chão de Estrelas, parceria com Sylvio Caldas: A porta do barraco era sem trinco, / Mas a lua furando o nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão, / Tu pisavas nos astros distraída, / Sem saber que a aventura dessa vida / Era a cabrocha, o luar e o violão...
Flávio saboreava cada verso, declamando a letra e acompanhando depois na melodia. Suas expressões emocionadas em close faziam vibrar o telespectador que também viajava na maionese. Depois de dissecar a letra, apresentava o próprio Sylvio Caldas, figura rara na televisão, cantando a obra que ele considerava como uma das mais belas do cancioneiro popular. Delírio na Urca. Mas além do tradicional, ele passeava com inteligência pelo som dos jovens que estavam dando uma renovada na abrangente música da terra. Assim, apresentou o ainda desconhecido Raul Seixas, alavancando seu primeiro hit, Ouro de Tolo, onde o inconformismo fala mais alto:... Eu é que não me sento no fundo de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar... Comentando a letra com admiração, Flávio lançou Raulzito na televisão. Em retribuição, o baiano citou Flávio em uma de suas emblemáticas canções, Tu és o MDC da minha vida.

As Reportagens
Noite de Gala, o luxuoso musical jornalístico de Geraldo Casé, dirigido por Carlos Thiré, teve em Flávio Cavalcanti uma das principais estrelas. Apresentado pela bela Márcia de Windsor, ele fazia as reportagens na parte final do programa. Depois de uma temporada na TV Rio, o empresário Abrahão Medina, dono do Rei da Voz, que patrocinava o programa, se mudou de malas e bagagens para a Tupi. Prossegue Flávio Cavalcanti Jr.:
– Noite de Gala foi o primeiro grande programa da televisão. Thiré, Casé, a Márcia, o maestro era o Tom Jobim novinho. Por trás estava o Medina, uma figura muito importante na Guanabara daquela época, especialmente na área do turismo. O velho fazia as reportagens: raspou a barba do Tenório Cavalcanti, líder importante de Caxias, entrevistou o presidente Kennedy na Casa Branca, sentou nos ponteiros do relógio da Central do Brasil para mostrar ao vivo como era o seu funcionamento, fez várias maluquices. Esta reportagem teve uma precisão fantástica, porque ele estava todo amarrado, sentado no ponteiro do relógio, e tudo tinha de acontecer às 10h10, porque senão ele caía! E assim foi feito, começou a entrevista com o maquinista no horário, o relógio foi andando, e cinco minutos depois ele fechou o papo. Mas, por que isso? Ele logo falava: mas não é um barato?
A amizade de Flávio Cavalcanti com Carlos Lacerda era absoluta. Se os dois se pareciam fisicamente, ideologicamente, então, era lance de almas gêmeas. Flávio foi importante nas ascensão do governador udenista, e comprou muita briga pela causa do não menos polêmico Lacerda, relembra Flavinho.
– O Lacerda, então governador, denunciou que a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro era uma roubalheira. Papai então abriu espaço no Noite de Gala. O Lacerda dava aquelas entrevistas incandescentes, e ele empolgou tanto o público que colocou a opinião pública contra a Câmara. Resolveram fechar a Câmara de madrugada, e depois do programa foi uma multidão para Cinelândia. O Lacerda colocou o apelido de gaiola das loucas! Você vê que o Brasil não mudou tanto... Mas o velho me dizia que tinha nojo de político, ele achava que os bastidores da política não era coisa de família. Foi convidado diversas vezes para se candidatara deputado, senador, mas ele achava que não era o espaço dele. Apesar de amigo do Lacerda, ele achou a revolução militar uma coisa horrorosa, ele rompeu com os generais que eram amigos dele, todos eles: vocês estão dando um golpe no País, não é isso que a gente queria. As pessoas não falam, por má-fé ou por ignorância, mas o que se queria naquele instante era abrir eleições diretas onde os dois candidatos colocados seriam Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. O Juscelino tinha acabado de deixar a presidência com aquela simpatia, papai queria que o povo escolhesse entre duas figuras decentes, honestas, patriotas. Esta história foi jogada na lata do lixo. Em casa era uma disputa ótima, mamãe como boa mineira era apaixonada pelo Juscelino, e achava o Lacerda um radical. Mas isso é democracia, vamos nessa.

Via Embratel
Foi em 1970, a convite de Antônio Lucena, superintendente da emissora, que Flávio aceitou juntar dois programas num só, para brigar pelos domingos, então divididos entre Silvio Santos e Chacrinha, ambos arrebentando na TV Globo.
A televisão entrava neste ano em outro ciclo, o das transmissões via satélite, e além da Copa do Mundo transmitida pela Embratel com entusiasmo e sucesso, estreava em setembro o Programa Flávio Cavalcanti, com quatro horas de duração ao vivo para toda a rede associada.
A essa altura, Flávio já tinha inventado o júri televisivo no programa A Grande Chance, um programa de calouros black-tie, que deu um banho de loja no gênero.
Assim, ele abriu sua empresa TV Studio Produções, presidida pelo Flavinho, numa casa ali mesmo na Urca, e montou equipe de primeira: Eduardo Sidney na direção, José Messias e Ghiaroni na criação e redação, e mais: Gilda Muller, maestro Erlon Chaves, Jorge (Pavão) Bernardo, Léa Penteado e outros. O júri dividia com Flávio as atenções, e recebia os convidados com charme e competência. Nomes como Marisa Urban, Maysa, Sérgio Bitencourt, Mr. Eco, Carlos Renato, Marisa Raja Gabaglia, Márcia de Windsor, Nelson Motta, Mariozinho Rocha, Ronaldo Bôscoli, Denner e a misse Brasil eleita Vera Fischer deram brilho especial ao programa. Entre as atrações, Marcos Lázaro garantia a presença de artistas do top de Elis Regina, Wilson Simonal e Roberto Carlos com exclusividade, bombou geral.
Com uma vibrante e popular pauta jornalística (e bem produzida), pano de fundo de seu programa, a questão polêmica em torno da figura de Flávio cresceu muito. Ele liderou a audiência aos domingos diversas vezes, batendo a concorrente TV Globo com força em algumas faixas de horário, comprava brigas e fazia campanhas, criando sempre desdobramentos nos assuntos abordados. Inimigos e detratores aos montes, que ele colecionava, e encarava com coragem, sofrendo ameaças e até suspensão.
– Ele não tinha medo nenhum, até hoje eu fico perplexo com a maneira que ele enfrentava as situações. Na fase pré-revolução, e depois também, a gente recebia ameaças de morte, principalmente pelo aval que dava ao Carlos Lacerda. Ele sofreu dois atentados: um pneu estourado e um tiro que felizmente não o atingiu. Nunca teve seguranças, a ousadia dele se aproximava da irresponsabilidade. Ele dizia: ah, se tiver que acontecer, vai acontecer, segurança o Kennedy tinha, e mataram ele, não adianta. O velho gostava dessa tensão, de esticar a corda, ele achava importante para carreira e para o ego. Era uma figuraça! Sofrendo censura e perseguições, ele só se abateu quando foi suspenso por dois meses porque levou ao programa um assunto que saiu na imprensa, sobre uma mulher que foi ganha numa aposta, uma bobagem. Isso foi usado como pretexto para tirá-lo do ar. Aí ele quebrou. A volta já não foi a mesma coisa, perdeu patrocinadores, contratos ficaram difíceis de segurar. O Marcos Lázaro ficou até o fim, foi grande amigo, e nos ajudou a manter o programa forte de atrações. O programa ficou no ar nesse formato até 1974. Depois só voltou em 1978, mas a Tupi estava mal, ele voltou enfraquecido.
Flávio circulou pelas TVs Excelsior, Rio, Bandeirantes e SBT, sua última casa de trabalho onde veio a falecer depois da apresentação do seu programa em 1986, aos 63 anos.


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Fonte:
TV Tupi do Rio de Janeiro: Uma Viagem Afetiva (Livro Digital), por: Luís Sérgio Lima e Silva. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo,  2010, págs. 176-183.

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