O Carisma de Flávio Cavalcanti
Se for
contar nos dedos os apresentadores revelados desde a inauguração do canal 6,
pode-se preencher duas mãos bem cheias. Quase a maioria oriunda do rádio. Eles
tinham a noção perfeita da postura do mestre de cerimônias, a elegância, a
identidade masculina e a boa emissão vocal. Carlos Frias, J. Silvestre, Paulo
Max, Murilo Nery, Hilton Gomes, Corrêa de Araújo, Urbano Lóes, Aérton
Perlingeiro, Jorge Perlingeiro, Paulo Monte e Mauro Montalvão, entre outros,
são nomes marcantes que brilharam na tarefa de conduzir programas de auditório
ou de estúdio.
Flávio
Cavalcanti ia mais longe no conceito do apresentador classudo que emanava
aquela simpatia contagiante. Ele era jornalista, e com isso o mix de mestre de
cerimônias com repórter aconteceu plenamente. Isso dava uma dinâmica às suas
performances, uma teatralidade, ele encenava a notícia, e sempre usando sua
verve inquieta, polêmica, instigante. Batia uma identificação imediata com o
público, concordasse ou não com suas afirmações. O carisma de Flávio atravessava
a tela.
Esse Coqueiro que Dá Coco? ...
Foi em
1957 que Flávio Cavalcanti estreou na Tupi apresentando e produzindo o programa
Um Instante, Maestro!, que de cara agradou em cheio. Vindo da Rádio Mayrink
Veiga, onde além de Discos Impossíveis o inspirador do programa da televisão
também produziu com o amigo Jacinto de Thormes, o Maneco Muller, Nós os Gatos –
sobre a noite carioca, ele pisava pela primeira vez naquele veículo que
dominaria como poucos a seguir. Um Instante, Maestro! comentava discos, recebia
cantores e dava uma geral no mundo fonográfico com personalidade. Como crítico,
Flávio quebrava discos, que considerava ruins, na beira da estante, o que dava
um impacto forte, e rendia comentários entre o público, imprensa e músicos
durante o resto da semana.
Casado
com a mineira Belinha e pai de três filhos, Marzinha, Flávio e Fernanda, deixou
quatro netos (Jarbinhas, Rafael, Flavinha e Isabel) e quatro bisnetos (Luisa,
Thiago, João Flávio e Antônio Pedro). Flávio Cavalcanti Jr. seguiu os passos do
pai, tornando-se figura indispensável em sua equipe, e mais tarde homem das
telecomunicações, trabalhando com os empresários Adolpho Bloch e Silvio Santos
na implantação de suas emissoras de televisão.
Flavinho,
como é conhecido entre os colegas, está acabando de escrever o livro Juro que
Vi, de memórias e aventuras com Flávio, e está viabilizando comercialmente os
filmes e vídeos do produtor Nelson Hoineff.
Ao falar
de seu pai, sua expressão se ilumina e aparece uma semelhança impressionante em
suas expressões:
– Ele
escrevia nos jornais O Jornal e Diário da Noite, quando conseguiu entrevistar o
Getúlio Vargas numa recepção oferecida pelo Alencastro Guimarães, figura
importante na época, se disfarçando de garçom! Ele penetrou na festa, pegou uma
bandeja e chegou até o Getúlio. Esta matéria colocou o velho como um jornalista
ousado e criativo. Foi quando o Jacinto de Thormes (que além do programa de
rádio, fazia na televisão um programa de colunismo social com entrevistas)
pediu ao papai que o substituísse porque ele ia acompanhar a Seleção Brasileira
nos jogos preliminares da Copa de 1958 na Europa. Quando o Maneco voltou, o
Adhemar Casé, que patrocinava o programa, falou para ele: você tem bossa para
televisão, bola um programa que a gente bota no ar. Aí nasceu o Um Instante,
Maestro!. O programa foi o melhor passaporte para Flávio adentrar à televisão,
falava de música, criticava discos, apresentava cantores e compositores que
estavam no mercado carioca, lançando sua marca registrada de apresentador: a polêmica.
Prossegue Flavinho:
– Ele
achava que a facilidade que o telespectador tinha para mudar de canal era muito
grande, mesmo só com outra emissora no ar (a TV Rio), por isso ele tinha de
despertar a polêmica, até que fosse para o sujeito descordar ou esculhambar
ele. Isso prendia a atenção, e aumentava o interesse daqueles que também
concordavam com suas opiniões. Papai achava que tinha músicas com letras
inimagináveis, horrorosas, que deviam ser expurgadas, como aquela do
Teixerinha, Churrasquinho de Mãe. Com o Ary Barroso ele provocou: como é, Ary,
esse coqueiro que dá coco?
Ele
também começou a fazer campanhas na área da política e do bem-estar social, por
exemplo: foi um guerrilheiro contra os fogos de artifício no Rio de Janeiro.
Ele achava aquilo um absurdo. Tinha um lobby da indústria produtora que queria
matá-lo.
Com rigor
crítico e bom gosto, Flávio apresentava também compositores e intérpretes que
produziam o fino da MPB. Dolores Duran tinha suas canções comentadas e cantadas
com destaque. Flávio exaltou os versos de Orestes Barbosa em Chão de Estrelas,
parceria com Sylvio Caldas: A porta do barraco era sem trinco, / Mas a lua
furando o nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão, / Tu pisavas nos astros
distraída, / Sem saber que a aventura dessa vida / Era a cabrocha, o luar e o
violão...
Flávio
saboreava cada verso, declamando a letra e acompanhando depois na melodia. Suas
expressões emocionadas em close faziam vibrar o telespectador que também
viajava na maionese. Depois de dissecar a letra, apresentava o próprio Sylvio
Caldas, figura rara na televisão, cantando a obra que ele considerava como uma
das mais belas do cancioneiro popular. Delírio na Urca. Mas além do
tradicional, ele passeava com inteligência pelo som dos jovens que estavam
dando uma renovada na abrangente música da terra. Assim, apresentou o ainda
desconhecido Raul Seixas, alavancando seu primeiro hit, Ouro de Tolo, onde o
inconformismo fala mais alto:... Eu é que não me sento no fundo de um
apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar...
Comentando a letra com admiração, Flávio lançou Raulzito na televisão. Em
retribuição, o baiano citou Flávio em uma de suas emblemáticas canções, Tu és o
MDC da minha vida.
As Reportagens
Noite de
Gala, o luxuoso musical jornalístico de Geraldo Casé, dirigido por Carlos
Thiré, teve em Flávio Cavalcanti uma das principais estrelas. Apresentado pela
bela Márcia de Windsor, ele fazia as reportagens na parte final do programa.
Depois de uma temporada na TV Rio, o empresário Abrahão Medina, dono do Rei da
Voz, que patrocinava o programa, se mudou de malas e bagagens para a Tupi.
Prossegue Flávio Cavalcanti Jr.:
– Noite
de Gala foi o primeiro grande programa da televisão. Thiré, Casé, a Márcia, o
maestro era o Tom Jobim novinho. Por trás estava o Medina, uma figura muito
importante na Guanabara daquela época, especialmente na área do turismo. O
velho fazia as reportagens: raspou a barba do Tenório Cavalcanti, líder
importante de Caxias, entrevistou o presidente Kennedy na Casa Branca, sentou
nos ponteiros do relógio da Central do Brasil para mostrar ao vivo como era o
seu funcionamento, fez várias maluquices. Esta reportagem teve uma precisão
fantástica, porque ele estava todo amarrado, sentado no ponteiro do relógio, e
tudo tinha de acontecer às 10h10, porque senão ele caía! E assim foi feito,
começou a entrevista com o maquinista no horário, o relógio foi andando, e
cinco minutos depois ele fechou o papo. Mas, por que isso? Ele logo falava: mas
não é um barato?
A amizade
de Flávio Cavalcanti com Carlos Lacerda era absoluta. Se os dois se pareciam
fisicamente, ideologicamente, então, era lance de almas gêmeas. Flávio foi
importante nas ascensão do governador udenista, e comprou muita briga pela
causa do não menos polêmico Lacerda, relembra Flavinho.
– O
Lacerda, então governador, denunciou que a Câmara dos Vereadores do Rio de
Janeiro era uma roubalheira. Papai então abriu espaço no Noite de Gala. O
Lacerda dava aquelas entrevistas incandescentes, e ele empolgou tanto o público
que colocou a opinião pública contra a Câmara. Resolveram fechar a Câmara de
madrugada, e depois do programa foi uma multidão para Cinelândia. O Lacerda
colocou o apelido de gaiola das loucas! Você vê que o Brasil não mudou tanto...
Mas o velho me dizia que tinha nojo de político, ele achava que os bastidores
da política não era coisa de família. Foi convidado diversas vezes para se
candidatara deputado, senador, mas ele achava que não era o espaço dele. Apesar
de amigo do Lacerda, ele achou a revolução militar uma coisa horrorosa, ele
rompeu com os generais que eram amigos dele, todos eles: vocês estão dando um
golpe no País, não é isso que a gente queria. As pessoas não falam, por má-fé
ou por ignorância, mas o que se queria naquele instante era abrir eleições
diretas onde os dois candidatos colocados seriam Juscelino Kubitschek e Carlos
Lacerda. O Juscelino tinha acabado de deixar a presidência com aquela simpatia,
papai queria que o povo escolhesse entre duas figuras decentes, honestas, patriotas.
Esta história foi jogada na lata do lixo. Em casa era uma disputa ótima, mamãe
como boa mineira era apaixonada pelo Juscelino, e achava o Lacerda um radical.
Mas isso é democracia, vamos nessa.
Via Embratel
Foi em
1970, a convite de Antônio Lucena, superintendente da emissora, que Flávio
aceitou juntar dois programas num só, para brigar pelos domingos, então
divididos entre Silvio Santos e Chacrinha, ambos arrebentando na TV Globo.
A
televisão entrava neste ano em outro ciclo, o das transmissões via satélite, e
além da Copa do Mundo transmitida pela Embratel com entusiasmo e sucesso,
estreava em setembro o Programa Flávio Cavalcanti, com quatro horas de duração
ao vivo para toda a rede associada.
A essa
altura, Flávio já tinha inventado o júri televisivo no programa A Grande
Chance, um programa de calouros black-tie, que deu um banho de loja no gênero.
Assim,
ele abriu sua empresa TV Studio Produções, presidida pelo Flavinho, numa casa
ali mesmo na Urca, e montou equipe de primeira: Eduardo Sidney na direção, José
Messias e Ghiaroni na criação e redação, e mais: Gilda Muller, maestro Erlon
Chaves, Jorge (Pavão) Bernardo, Léa Penteado e outros. O júri dividia com
Flávio as atenções, e recebia os convidados com charme e competência. Nomes
como Marisa Urban, Maysa, Sérgio Bitencourt, Mr. Eco, Carlos Renato, Marisa
Raja Gabaglia, Márcia de Windsor, Nelson Motta, Mariozinho Rocha, Ronaldo
Bôscoli, Denner e a misse Brasil eleita Vera Fischer deram brilho especial ao
programa. Entre as atrações, Marcos Lázaro garantia a presença de artistas do
top de Elis Regina, Wilson Simonal e Roberto Carlos com exclusividade, bombou
geral.
Com uma
vibrante e popular pauta jornalística (e bem produzida), pano de fundo de seu
programa, a questão polêmica em torno da figura de Flávio cresceu muito. Ele
liderou a audiência aos domingos diversas vezes, batendo a concorrente TV Globo
com força em algumas faixas de horário, comprava brigas e fazia campanhas,
criando sempre desdobramentos nos assuntos abordados. Inimigos e detratores aos
montes, que ele colecionava, e encarava com coragem, sofrendo ameaças e até
suspensão.
– Ele não
tinha medo nenhum, até hoje eu fico perplexo com a maneira que ele enfrentava
as situações. Na fase pré-revolução, e depois também, a gente recebia ameaças
de morte, principalmente pelo aval que dava ao Carlos Lacerda. Ele sofreu dois
atentados: um pneu estourado e um tiro que felizmente não o atingiu. Nunca teve
seguranças, a ousadia dele se aproximava da irresponsabilidade. Ele dizia: ah,
se tiver que acontecer, vai acontecer, segurança o Kennedy tinha, e mataram
ele, não adianta. O velho gostava dessa tensão, de esticar a corda, ele achava
importante para carreira e para o ego. Era uma figuraça! Sofrendo censura e
perseguições, ele só se abateu quando foi suspenso por dois meses porque levou
ao programa um assunto que saiu na imprensa, sobre uma mulher que foi ganha
numa aposta, uma bobagem. Isso foi usado como pretexto para tirá-lo do ar. Aí
ele quebrou. A volta já não foi a mesma coisa, perdeu patrocinadores, contratos
ficaram difíceis de segurar. O Marcos Lázaro ficou até o fim, foi grande amigo,
e nos ajudou a manter o programa forte de atrações. O programa ficou no ar
nesse formato até 1974. Depois só voltou em 1978, mas a Tupi estava mal, ele voltou
enfraquecido.
Flávio
circulou pelas TVs Excelsior, Rio, Bandeirantes e SBT, sua última casa de
trabalho onde veio a falecer depois da apresentação do seu programa em 1986,
aos 63 anos.
---
Fonte:
TV Tupi do Rio de Janeiro: Uma Viagem Afetiva (Livro Digital), por: Luís Sérgio Lima e Silva. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, 2010, págs. 176-183.
Fonte:
TV Tupi do Rio de Janeiro: Uma Viagem Afetiva (Livro Digital), por: Luís Sérgio Lima e Silva. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, 2010, págs. 176-183.
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