A figura mais eminente de nossas letras
Não podia
ter sido mais feliz o "Clube do Livro" ao publicar, neste grandioso
ano de comemorações do IV Centenário da gloriosa Cidade de São Sebastião do Rio
de Janeiro, obras dos dois maiores escritores cariocas, Lima Barreto e Machado
de Assis, que tantos pontos de contacto têm entre si. Ambos triunfantes no
conto e no romance, ambos mestiços, ambos doentes, ambos funcionários públicos,
ambos meninos pobres. E ambos, ainda, igualados pelo amor à sua, cidade natal,
não a trocando por nenhuma outra do mundo! Machado chegou a dizer, mesmo, em
carta a Magalhães de Azeredo, que o convidava para visitar Roma: "Terei
vivido e morrido neste meu recanto, velha cidade carioca, sabendo unicamente de
oitiva e de leitura o que há por fora e por longe".
Onde se
diversificam, porém, é no estilo, nos tipos que fotografaram, nos ambientes em
que se movem seus personagens, talvez, devido ao meio que ambos frequentavam e
ao modo de vida que levavam. Machado de Assis encontrou, no casamento, na sua
adorada portuguesa, Carolina de Novais, uma companheira ideal, que muito o
confortou, principalmente nas fases de depressão, e que o compreendia
perfeitamente, ao passo que Afonso Henriques Lima Barreto (1881-1922), entregue
ao álcool e à boêmia, levou vida agitada e por vezes foi recolhido ao
sanatório. Aos 40 anos, já era velho, cansado e descrente de tudo. Com apenas
22 anos, foi obrigado a interromper os seus estudos, já na 3.a série da Escola
Politécnica, devido à demência do pai, e a assumir o encargo de numerosa
família. Mas como conhecia ele a alma popular, a vida das ruas! Em seus livros,
escritos, quase sempre, num banco de trem de subúrbio, à mesa de um botequim,
desfila uma heterogênea e pitoresca multidão, onde vemos pequenos funcionários
públicos, vendeiros, capadócios, seresteiros, cabrochas, malandros, enfim,
espécimes representativos da populaça humana, que é o "underground"
dos arrabaldes e dos momos, com, as suas fraquezas e os seus heroísmos.
"Clara dos Anjos", "O triste fim de Policarpo Quaresma",
"Memórias do escrivão Isaías Caminha", "O homem que sabia
javanês", "Bruzundanga", e tantos outros são um espelho fiel de
uma época, de uma cidade do começo do século, desenvolvendo-se entre as
maravilhas da Natureza e os percalços e as alegrias de seu incomparável povo.
Joaquim
Maria Machado de Assis (1839-1908), embora tenha vivido, também, uma grande
parte dessa época, nos apresenta um panorama bem diferente. Fino e arguto
psicólogo, sarcasta, irônico, por vezes impiedoso com os seus personagens, não
deixa de ser clássico, ático no estilo e na forma. Escritor equilibradíssimo',
controlado, policiado na linguagem, nota-se nele um fino "humour",
peculiar aos britânicos, tendo-lhe alguns críticos percebido um quê de Stern e
de Swift, embora outros o comparem ao francês Stendhal. Seus personagens são
quase todos céticos, introvertidos, bem distantes daquela estupenda jovialidade
que caracteriza os filhos do ex-Distrito Federal. Suas mulheres nada apresentam
da vulcânica paixão das latinas, pois são reservadas, meio apáticas,
dissimuladas. Paisagem, então, é o que menos se encontra em suas páginas. Tudo
isso, aliás, reflete o estado de espírito do autor, que nem mesmo aos íntimos
se abria de todo. Mas, quando se afeiçoava a alguém — que grande amigo! era-o
para sempre, podiam, contar com seu válido apoio. Como funcionário público e
como esposo, seu comportamento foi deveras exemplar. Uma das suas grandes
paixões foi, sempre, a Academia Brasileira de Letras, da qual foi fundador e
seu primeiro presidente, cargo que exerceu até ao fim dos seus dias. Deu-lhe
amor, deu-lhe casa e dirigiu-a magistralmente, levando para lá as maiores expressões
da nossa literatura.
Mais
conhecido como romancista e contista, Machado de Assis foi, ainda, finíssimo
poeta, tendo deixado sonetos e poesias do mais fino lavor, realmente
antológicos.
No conto,
aliás, poucos o igualaram. Difícil saber qual o melhor deles: "Missa do galo",
"O alienista", "A cartomante", "Uns braços",
"Noite de almirante", "O medalhão", e tantos mais, podem
figurar nas maiores antologias do mundo.
Segundo José
Veríssimo, Machado de Assis foi a figura mais eminente de nossas letras.
Sobre o
imortal carioca, escreveram-se inúmeros trabalhos, assinados por nomes dos mais
representativos, tais como Alfredo Pujol, Lúcia Miguel Pereira, Mário Matos,
Elói Pontes, Alcides Maia, Eugênio Gomes, José Barreto Filho, Augusto Meyer, R.
Magalhães Júnior, Agripino Grieco (focalizando-lhe a doença), Gondim da
Fonseca, Josué Montello e, por último, Luís Viana Filho, a nosso ver, o seu
maior biógrafo, comi o belíssimo livro "A vida de Machado de Assis",
publicado, em princípios deste ano, pela Livraria Martins Editora, e Francisco
Pati com o seu "Dicionário de Machado de Assis", editado pela Rede
Latina.
De parabéns,
portanto, "o Clube do Livro", com essas publicações, que proporcionam
aos seus inúmeros leitores obras de imenso valor e de grande interesse para
enriquecer e aprimorar a cultura de cada um, sem a qual os homens não se
emancipam e não alcançam o clima da fraternidade humana.
JACOB PENTEADO
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Fonte:
O Medalhão, por: Machado de Assis. Clube do Livro. São Paulo, 1965, págs. 1-3.
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