terça-feira, 5 de julho de 2016

Leitura de José de Alencar

Leitura de José de Alencar
Por: João Alexandre Barbosa
(da Universidade de São Paulo)
A obra de José de Alencar, como já se disse muitas vezes, é tão variada em seus valores e intenções que o leitor menos avisado, sem uma leitura global de seus textos, perde a orientação e não sabe por onde começar o julgamento.
Nela há de tudo: desde o exercício mais ou menos etnográfico, onde a análise psicológica se rarefaz e o personagem enquanto personagem quase desaparece por entre o mapeamento linguístico e antropológico (Ubirajara, 1874), até o propósito de análise social e psicológica, por onde o escritor antecipava modos narrativos urbanos de grande fortuna em nossa literatura (Senhora, 1875).
Regionalista, histórico, social, psicológico são termos mais ou menos arbitrários que não chegam a definir um romance, muito menos um romancista. Este — para o leitor que pretenda uma compreensão menos esquemática — fica sempre aquém ou além das designações dos manuais de História Literária e só se esclarece sob uma lente menos rotulativa e mais fina: a que busque o seu modo de relacionamento com a própria linguagem por meio da qual chega à realidade. E sob uma lente assim, José de Alencar é muito mais interessante do que, em geral, nos fizeram acreditar as fórmulas batidas das esquematizações didáticas.
Na verdade, todo escritor é passível de reduções sumárias que, servindo aos desígnios da classificação, têm por objetivo mais profundo preencher o vazio de uma crítica parcial. Diz-se, por exemplo, que Machado de Assis foi um grande escritor (grifando-se o termo), mas que teve uma imaginação (esgarçando-se o termo) limitada pelos valores psicológicos, conhecendo a alma humana com o rigor de um Dostoievsky, mas sofrendo de uma certa miopia (a expressão foi usada por Eça de Queirós) para ver o grande espetáculo da luta entre a natureza e o homem. E, como era de esperar num espaço crítico assim afeito ao vezo manlqueista, o contrário daria José de Alencar. Imaginoso, fantasista, empenhado na construção de uma literatura brasileira americanista diferenciada da europeia, mas escritor apressado, desajeitado mesmo em lidar com personagens e situações. Será assim? Acredito que não e, em seguida, veremos por quê. Penso que foi Augusto Meyer quem, escrevendo sobre o presente livro ("Nota Preliminar" a O guarani, na edição Aguilar), pôs melhor o dedo no suspiro: viu José de Alencar como escritor, escolhendo os seus temas, esforçando-se por achar aquilo que é o objetivo de todo escritor de raça, isto é, a sua linguagem com a qual pudesse dar conta do tema que escolhesse. E, num desabafo de leitor crítico, querendo desvencilhar-se da mesmice das classificações, chega a afirmar:
"Eu por mim confesso humildemente que não vejo indígenas na obra de Alencar, nem personagens históricas, nem romances históricos; vejo uma poderosa imaginação que transfigura tudo, a Indo atribui um sentido fabuloso c não sabe criar senão dentro de um clima de intemperança fantasista. Poeta de do romance, romanceava tudo. Se teve a intenção de criar o nosso romance histórico, ficou só na intenção, e de qualquer modo não lograria fazê-lo, pois era demasiado genial para poder adaptar o seu fogoso temperamento a um gênero tão medíocre, que pede paciência aturada na imitação servil da crônica histórica, pouca imaginação criadora e acúmulo de minudências pitorescas (...)".
É, de fato, esta aposição mais adequada para que o leitor de hoje, familiarizado com as técnicas mais sofisticadas da narrativa, possa ler ainda José de Alencar: captar, por sob as intenções regionalistas ou americanistas que o romancista f azia vibrar na face de seus críticos mais mordazes, o esforço de quem, no romance, encontrava um veículo adequado para a objetivação de sua inquieta e poderosa capacidade fabuladora. Poucos escritores brasileiros, mesmo aqueles mais bem dotados tecnicamente, servem melhor ao estudo do que seja a própria arte da ficção, sobretudo no que diz respeito ao problema tão antigo quanto o próprio Aristóteles, o da verossimilhança. Em Alencar, a cada passo, em seus livros mais ambiciosos, pode ir o leitor de hoje rastreando elementos que conduzem ao cerne daquilo a que um crítico (Martin Price) chamou de "contrato ficcional", isto é, uma espécie de acordo tácito entre o autor e o leitor no que se refere às experiências do imaginário concretizadas pela narrativa.
Tropeçando nos erros de sua ignorância etnográfica, esbarrando por entre as armadilhas da selva selvaggia de uma terminologia "brasileira" ainda não bastante esclarecida em sua época (e tudo isso os seus críticos menos argutos e mais caturras, de ontem e de hoje, fizeram e f agem valer como condenação geral de sua obra), Alencar foi afirmando a supremacia de uma realidade ficcional sobre a chateia das minudências de ordem histórica ou geográfica com o mesmo ardor e imprudência da maioria de seus personagens heroicos.
Veja-se bem, no entanto: José de Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa. Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o inverosímil, isto se dá por um momento fugaz, f o leitor termina pacificado. Tudo acaba por explicar-se convenientemente desde que a imaginação funciona como elemento controlador e organizador.
Este processo de compensação, que está em toda a sua obra, começou a ganhar foro de estilo (o "estilo José de Alencar") a partir deste "romance brasileiro", depois das tímidas experiências de romance urbano (a que ele mesmo chamava de romanceies) representadas por Cinco minutos (1856) e A viuvinha (1857).
Escrito em folhetins para o Diário do Rio de Janeiro entre janeiro e abril de 1857, o romance neste mesmo ano era publicado em quatro fascículos (as quatro partes que o compõem) "e que aproveitava a composição dos folhetins", conforme indica Darcy Damasceno na "Introdução" que escreveu para a sua edição crítica da obra (Instituto Nacional do Livro, 1958) e que vou utilizando nesta minha leitura.
Que José de Alencar julgava ser este o seu primeiro romance é fácil de verificar pelo "Prólogo" que antecedeu à publicação em folhetim. Ali, a "prima", que aparecia como interlocutora nas duas primeiras narrativas, é nomeada como responsável pela fé depositada no escritor:
"Gostou da minha história, e
pede-me um romance; acha que
posso fazer alguma coisa neste ramo
de literatura".
Ao contrário do que acontecia nas duas ohms anteriores, entretanto, a "prima" conserva-se no pórtico do romance, deixando de ser aquele expediente mais ou menos fácil com que Alencar conduzia as intrigas superficiais em Cinco minutos e A viuvinha.
Deixada no "Prólogo", transformada em depositária da obra, a mudança com relação à "prima" é fato mais substancial: revela uma deslocação de foco narrativo que, na verdade, inaugura o romance na obra literária de José de Alencar. De autor conivente ele passa a autor onisciente — assumindo a perspectiva épica por meio da qual podia soltar as rédeas de sua imaginação saturada pelas leituras adolescentes de Chateaubriand, Dumas, Hugo, Sue, Scott, Cooper, Marryat, Arlincourl, Soulié, Balzac, autores todos citados por ele mesmo em Como e porque sou romancista.
Na verdade, aquele leitor juvenil dos serões na chácara do pai, o Senador Alencar, quando lia e relia para a sua mãe e amigas Armanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas e Celestina, fazendo-as chegar até às lágrimas, encontrava agora, antes de atingir os trinta anos, o modo de transformar todas aquelas experiências em objeto capaz de aglutinar, pela ficção, aprofundando-as portanto, as emoções e sensações do leitor sensível. Não mais a história, em contraposição ao romance, a que ele se refere no período de abertura de sua primeira obra ("É uma história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não um romance"): agora tratava-se de, munido de umas escassas notas extraídas de crônicas históricas e do que a fantasia, mais do que o registro verdadeiro, lhe dizia dos sertões brasileiros, enfrentar a ambição que, segundo o próprio romancista, alentava-o desde anos, quando escrevera Os contrabandistas, destruído pelo fogo (mais uma de suas ficções?!). E é curioso observar como, pela leitura do "Prólogo", é ainda o personagem, não o autor, dos romanceies anteriores que envia à "prima" a cópia de um hipotético manuscrito realizada por ele e Carlota (a jovem romântica do primeiro romanceie, como se sabe) "nos longos serões das nossas noites de inverno", como ali está dito. A ficção dentro da ficção, portanto, e não assumindo ares de crônica verdadeira como nos livros iniciais, é que vinha estabelecer a distinção entre história e romance por ele requerida.
Em sua curta, mas preciosa autobiografia, as origens do presente romance estão mencionadas a partir de 1848, quando, voltando ao Nordeste, viajando pelo interior do Ceará e Bahia, lendo cronistas da era colonial em Olinda, José de Alencar afirma a certa altura de suas reminiscências:
"Uma coisa vaga e indecisa, que devia parecer-me com o primeiro broto do Guarani ou de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo menos um protagonista, uma cena e uma época".
O romance que se vai ler em seguida é o testemunho desse achado que o leitor deve apreender sem desprezar o que permaneceu daquela fantasia flutuante mencionada pelo escritor. Organizado em torno de quatro partes ("Os aventureiros", "Peri", "Os Aimorés" e "A catástrofe"), o romance possui aquilo que, em 1848, Alencar buscava sofregamente: passa-se no século XVII, às margens do Paraíba, e tem por protagonista o índio Peri, portanto uma época, uma cena e um herói. Divididas em curtos capítulos, as quatro partes dão, de fato, aquela impressão de estrutura cinematográfica anotada, com argúcia, por Augusto Meyer no estudo já referido. (Decorrente, talvez, em grande parte, da enorme plasticidade alcançada pelo escritor na elaboração das ações e cenas do romance.) Quanto ao outro elemento mencionado por Alencar em sua autobiografia — o tema, a sua detecção neste romance não c tão fácil quanto possa parecer àqueles que se habituaram a chamá-Io de histórico ou indianista.
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Fonte:
O Guarani, por: José de Alencar. Editora Ática, 17ª Edição. São Paulo, 1992, págs. 3-6.

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