Leitura de José de Alencar
Por:
João Alexandre Barbosa
(da Universidade de São Paulo)
(da Universidade de São Paulo)
A obra de
José de Alencar, como já se disse muitas vezes, é tão variada em seus valores e
intenções que o leitor menos avisado, sem uma leitura global de seus textos,
perde a orientação e não sabe por onde começar o julgamento.
Nela há de
tudo: desde o exercício mais ou menos etnográfico, onde a análise psicológica
se rarefaz e o personagem enquanto personagem quase desaparece por entre o
mapeamento linguístico e antropológico (Ubirajara,
1874), até o propósito de análise social e psicológica, por onde o escritor
antecipava modos narrativos urbanos de grande fortuna em nossa literatura (Senhora, 1875).
Regionalista,
histórico, social, psicológico são termos mais ou menos arbitrários que não
chegam a definir um romance, muito menos um romancista. Este — para o leitor
que pretenda uma compreensão menos esquemática — fica sempre aquém ou além das
designações dos manuais de História Literária e só se esclarece sob uma lente
menos rotulativa e mais fina: a que busque o seu modo de relacionamento com a
própria linguagem por meio da qual chega à realidade. E sob uma lente assim,
José de Alencar é muito mais interessante do que, em geral, nos fizeram
acreditar as fórmulas batidas das esquematizações didáticas.
Na verdade,
todo escritor é passível de reduções sumárias que, servindo aos desígnios da
classificação, têm por objetivo mais profundo preencher o vazio de uma crítica
parcial. Diz-se, por exemplo, que Machado de Assis foi um grande escritor
(grifando-se o termo), mas que teve uma imaginação (esgarçando-se o termo)
limitada pelos valores psicológicos, conhecendo a alma humana com o rigor de um
Dostoievsky, mas sofrendo de uma certa miopia (a expressão foi usada por Eça de
Queirós) para ver o grande espetáculo da luta entre a natureza e o homem. E,
como era de esperar num espaço crítico assim afeito ao vezo manlqueista, o
contrário daria José de Alencar. Imaginoso, fantasista, empenhado na construção
de uma literatura brasileira americanista diferenciada da europeia, mas
escritor apressado, desajeitado mesmo em lidar com personagens e situações.
Será assim? Acredito que não e, em seguida, veremos por quê. Penso que foi
Augusto Meyer quem, escrevendo sobre o presente livro ("Nota
Preliminar" a O guarani, na edição Aguilar), pôs melhor o dedo no suspiro:
viu José de Alencar como escritor, escolhendo os seus temas, esforçando-se por
achar aquilo que é o objetivo de todo escritor de raça, isto é, a sua linguagem
com a qual pudesse dar conta do tema que escolhesse. E, num desabafo de leitor
crítico, querendo desvencilhar-se da mesmice das classificações, chega a
afirmar:
"Eu por mim confesso humildemente que
não vejo indígenas na obra de Alencar, nem personagens históricas, nem romances
históricos; vejo uma poderosa imaginação que transfigura tudo, a Indo atribui
um sentido fabuloso c não sabe criar senão dentro de um clima de intemperança fantasista.
Poeta de do romance, romanceava tudo. Se teve a intenção de criar o nosso
romance histórico, ficou só na intenção, e de qualquer modo não lograria
fazê-lo, pois era demasiado genial para poder adaptar o seu fogoso temperamento
a um gênero tão medíocre, que pede paciência aturada na imitação servil da crônica
histórica, pouca imaginação criadora e acúmulo de minudências pitorescas
(...)".
É, de fato,
esta aposição mais adequada para que o leitor de hoje, familiarizado com as
técnicas mais sofisticadas da narrativa, possa ler ainda José de Alencar:
captar, por sob as intenções regionalistas ou americanistas que o romancista f
azia vibrar na face de seus críticos mais mordazes, o esforço de quem, no
romance, encontrava um veículo adequado para a objetivação de sua inquieta e
poderosa capacidade fabuladora. Poucos escritores brasileiros, mesmo aqueles
mais bem dotados tecnicamente, servem melhor ao estudo do que seja a própria
arte da ficção, sobretudo no que diz respeito ao problema tão antigo quanto o
próprio Aristóteles, o da verossimilhança. Em Alencar, a cada passo, em seus
livros mais ambiciosos, pode ir o leitor de hoje rastreando elementos que
conduzem ao cerne daquilo a que um crítico (Martin Price) chamou de
"contrato ficcional", isto é, uma espécie de acordo tácito entre o
autor e o leitor no que se refere às experiências do imaginário concretizadas
pela narrativa.
Tropeçando
nos erros de sua ignorância etnográfica, esbarrando por entre as armadilhas da
selva selvaggia de uma terminologia "brasileira" ainda não bastante esclarecida
em sua época (e tudo isso os seus críticos menos argutos e mais caturras, de
ontem e de hoje, fizeram e f agem valer como condenação geral de sua obra),
Alencar foi afirmando a supremacia de uma realidade ficcional sobre a chateia
das minudências de ordem histórica ou geográfica com o mesmo ardor e
imprudência da maioria de seus personagens heroicos.
Veja-se bem,
no entanto: José de Alencar jamais perde a visão de conjunto de sua narrativa.
Se a ação de seus personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o
inverosímil, isto se dá por um momento fugaz, f o leitor termina pacificado.
Tudo acaba por explicar-se convenientemente desde que a imaginação funciona
como elemento controlador e organizador.
Este
processo de compensação, que está em toda a sua obra, começou a ganhar foro de
estilo (o "estilo José de Alencar") a partir deste "romance
brasileiro", depois das tímidas experiências de romance urbano (a que ele
mesmo chamava de romanceies) representadas por Cinco minutos (1856) e A
viuvinha (1857).
Escrito em
folhetins para o Diário do Rio de Janeiro entre janeiro e abril de 1857, o
romance neste mesmo ano era publicado em quatro fascículos (as quatro partes
que o compõem) "e que aproveitava a composição dos folhetins", conforme
indica Darcy Damasceno na "Introdução" que escreveu para a sua edição
crítica da obra (Instituto Nacional do Livro, 1958) e que vou utilizando nesta
minha leitura.
Que José de
Alencar julgava ser este o seu primeiro romance é fácil de verificar pelo
"Prólogo" que antecedeu à publicação em folhetim. Ali, a
"prima", que aparecia como interlocutora nas duas primeiras
narrativas, é nomeada como responsável pela fé depositada no escritor:
"Gostou da minha história, e
pede-me um romance; acha que
posso fazer alguma coisa neste ramo
de literatura".
pede-me um romance; acha que
posso fazer alguma coisa neste ramo
de literatura".
Ao contrário
do que acontecia nas duas ohms anteriores, entretanto, a "prima"
conserva-se no pórtico do romance, deixando de ser aquele expediente mais ou
menos fácil com que Alencar conduzia as intrigas superficiais em Cinco minutos
e A viuvinha.
Deixada no
"Prólogo", transformada em depositária da obra, a mudança com relação
à "prima" é fato mais substancial: revela uma deslocação de foco
narrativo que, na verdade, inaugura o romance na obra literária de José de
Alencar. De autor conivente ele passa a autor onisciente — assumindo a
perspectiva épica por meio da qual podia soltar as rédeas de sua imaginação
saturada pelas leituras adolescentes de Chateaubriand, Dumas, Hugo, Sue, Scott,
Cooper, Marryat, Arlincourl, Soulié, Balzac, autores todos citados por ele
mesmo em Como e porque sou romancista.
Na verdade,
aquele leitor juvenil dos serões na chácara do pai, o Senador Alencar, quando
lia e relia para a sua mãe e amigas Armanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas e
Celestina, fazendo-as chegar até às lágrimas, encontrava agora, antes de
atingir os trinta anos, o modo de transformar todas aquelas experiências em
objeto capaz de aglutinar, pela ficção, aprofundando-as portanto, as emoções e
sensações do leitor sensível. Não mais a história, em contraposição ao romance,
a que ele se refere no período de abertura de sua primeira obra ("É uma
história curiosa a que lhe vou contar, minha prima. Mas é uma história, e não
um romance"): agora tratava-se de, munido de umas escassas notas extraídas
de crônicas históricas e do que a fantasia, mais do que o registro verdadeiro,
lhe dizia dos sertões brasileiros, enfrentar a ambição que, segundo o próprio
romancista, alentava-o desde anos, quando escrevera Os contrabandistas,
destruído pelo fogo (mais uma de suas ficções?!). E é curioso observar como,
pela leitura do "Prólogo", é ainda o personagem, não o autor, dos
romanceies anteriores que envia à "prima" a cópia de um hipotético
manuscrito realizada por ele e Carlota (a jovem romântica do primeiro
romanceie, como se sabe) "nos longos serões das nossas noites de
inverno", como ali está dito. A ficção dentro da ficção, portanto, e não assumindo
ares de crônica verdadeira como nos livros iniciais, é que vinha estabelecer a
distinção entre história e romance por ele requerida.
Em sua
curta, mas preciosa autobiografia, as origens do presente romance estão
mencionadas a partir de 1848, quando, voltando ao Nordeste, viajando pelo
interior do Ceará e Bahia, lendo cronistas da era colonial em Olinda, José de
Alencar afirma a certa altura de suas reminiscências:
"Uma
coisa vaga e indecisa, que devia parecer-me com o primeiro broto do Guarani ou
de Iracema, flutuava-me na fantasia. Devorando as páginas dos alfarrábios de
notícias coloniais, buscava com sofreguidão um tema para o meu romance; ou pelo
menos um protagonista, uma cena e uma época".
O romance
que se vai ler em seguida é o testemunho desse achado que o leitor deve
apreender sem desprezar o que permaneceu daquela fantasia flutuante mencionada
pelo escritor. Organizado em torno de quatro partes ("Os
aventureiros", "Peri", "Os Aimorés" e "A
catástrofe"), o romance possui aquilo que, em 1848, Alencar buscava
sofregamente: passa-se no século XVII, às margens do Paraíba, e tem por
protagonista o índio Peri, portanto uma época, uma cena e um herói. Divididas
em curtos capítulos, as quatro partes dão, de fato, aquela impressão de
estrutura cinematográfica anotada, com argúcia, por Augusto Meyer no estudo já
referido. (Decorrente, talvez, em grande parte, da enorme plasticidade alcançada
pelo escritor na elaboração das ações e cenas do romance.) Quanto ao outro
elemento mencionado por Alencar em sua autobiografia — o tema, a sua detecção
neste romance não c tão fácil quanto possa parecer àqueles que se habituaram a
chamá-Io de histórico ou indianista.
[...]
---
Fonte:
O Guarani, por: José de Alencar. Editora Ática, 17ª Edição. São Paulo, 1992, págs. 3-6.
Nenhum comentário:
Postar um comentário