Freud e a herança de caracteres adquiridos
Como
referimos anteriormente, a herança de caracteres adquiridos não foi
completamente rejeitada por biólogos até 1930. Freud aparentemente não teve
ciência da mudança até 1938, quando Jones chamou sua atenção para a mudança
resultante na "atual atitude da ciência biológica, que se recusa a ouvir
falar em herança de caracteres adquiridos por sucessivas gerações". Até
então, Freud não "estivera claramente ciente de minha ousadia em descuidar"
de fazer uma "distinção entre... uma tradição herdada" e "uma
transmitida por comunicação" (1939 [1934-38] SE 23:110). Ele reconheceu
que "com maior reflexão devo admitir que me comportei por muito tempo como
se a herança de traços de memória da experiência de nossos ancestrais,
independentemente de comunicação direta e da influência da educação pelo
estabelecimento de um exemplo, estivesse estabelecida de modo
inquestionável" (23: 99).
Confrontado
no fim da vida com essa mudança no pensamento biológico, daquilo que lhe era
familiar a partir dos textos de Darwin e de sua formação universitária em
biologia evolucionista (a ser abordada na parte II), Freud percebeu que não
podia "trabalhar sem esse fator da evolução biológica". Necessitava
dele para transpor o hiato entre a psicologia individual e a de grupo. Utilizara-o
para esse propósito em Totem e Tabu (1913) e em Psicologia de Grupo e a Análise
do Ego (1921) aparentemente sem objeção de ninguém. "Se supusermos a
sobrevivência desses traços de memória na herança arcaica, teremos transposto o
hiato entre a psicologia individual e a de grupo: podemos lidar com povos como
lidamos com neuróticos isolados." Sem isto, "não avançaremos um passo
sequer ao longo do caminho que seguimos, seja na análise seja na psicologia de
grupo. A ousadia não pode ser evitada".
E assim, a
despeito de apelos de seus colegas, Freud continuou em Moisés e o Monoteísmo
com a linha de pensamento com que ele iniciara esse livro — sob a forma de
conferência, em Viena, em 1934 — até que o completou, na condição de refugiado
de Hitler, em Londres, em 1938. A mais forte evidência que podia oferecer em
apoio da "presença de traços de memória na herança arcaica" eram
"os fenômenos residuais do trabalho de análise que pedem uma derivação
filogenética" (23: 100). Ele sustentou sua alegação com um parágrafo que
tem associações com a teoria darwiniana da descendência, a qual, na concepção
de Freud, demole a barreira que fora arrogantemente erguida entre o homem e o
animal (1925, SE 19: 221). Supondo a presença de traços de memória na herança
arcaica, "estamos diminuindo o hiato que períodos anteriores de arrogância
humana alargaram excessivamente entre a humanidade e os animais". Essa
passagem também revela a aceitação por parte de Freud do instinto animal, tal
como definido e tratado por
Darwin em A
Expressão das Emoções no Homem e nos Animais: "Se há alguma explicação a
ser encontrada para os chamados instintos [instinkt]
dos animais, que lhes permite comportarem-se desde o início em uma nova
situação na vida, como se fosse antiga e conhecida — se há alguma explicação
afinal a ser encontrada para essa vida instintiva dos animais, só pode ser a de
que trazem as experiências de suas espécies com eles para sua nova existência —
isto é, preservaram lembranças do que foi experimentado por seus ancestrais. A situação
no animal humano no fundo não seria diferente. Sua própria herança arcaica
corresponde aos instintos dos animais, embora seja diferente em seu âmbito e
conteúdo" (SE 23: 100).
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Fonte:
A influência de Darwin sobre Freud: Um conto de duas ciências", por: Lucille B. Ritvo. Tradução: Júlio César Castañon Guimarães. Imago Editora. Rio de Janeiro, 1992, págs. 99-101.
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