A Poesia Dramática de Anchieta
Por:
Leodegário A. de Azevedo Filho
A poesia
dramática de Anchieta se compõe de peças de circunstâncias, escritas por
ocasião de efemérides religiosas, para atender aos fins didáticos da catequese.
O seu público era constituído de indígenas, soldados, colonos, marujos e
comerciantes, ou seja, habitantes permanentes ou eventuais das primitivas
aldeias, criadas sobretudo por Mem de Sá, nas origens de nossa civilização. Daí
a razão por que, em geral, os autos e peças jocosas eram polilíngües, pois se
dirigiam a um público lingüistica-mente heterogéneo. Importantes também são os
autos apenas em tupi, especialmente dedicados ao silvícola, que era o objeto
principal da catequese. Sabido é. com efeito, que o índio brasileiro
manifestava, como qualquer povo primitivo, acentuado gosto pelas
representações, pela dança e pelo canto acompanhados de instrumentos
rudimentares. Habilmente, pois, Anchieta explorou essas tendências naturais do
habitante da terra, incutindo nele, através de pequenos jogos dramáticos, não
apenas a moral católica, mas o respeito aos principais dogmas da Igreja. A
propósito, escreve Claude Henri Freches: "En somme, c'est une leçon de
catéchisme en images, dynamique plus que savante, mais non dépourvue
d'habilite. On pourrait encore avancer que cês drames constítuent dês embryons
de pièces à thèse ou de comédies de moeurs: cês deux aspects se réunissént d'aüleurs
volontiérs en un même auto."
A mesma
observação, no que se refere ao gosto dos índios pelas representações, se
encontra em livro ainda inédito do professor Joaquim Ribeiro, intitulado A Estética Jesuítica, cujos originais
tivemos a honra de examinar, e também no livro Estética da Língua Portuguesa, do mesmo autor, em particular no
capítulo intitulado "Teatro Sacro no Período Colonial" (2). Aí se lê,
que não foram Aspicuelta Navarro e José de Anchieta os únicos dramaturgos de
nosso primeiro século, como se pensa. Já um cronista antigo se referia assim a
autos de Anchieta: "E foi desta maneira, desejando o Padre Provincial
Manuel da Nóbrega evitar alguns abusos que com autos pouco decentes se faziam nas
Igrejas, encomendou ao irmão José que fizesse uma obra devota, para se
representar na véspera da Circuncisão, e como entre os portugueses, tinham
alguns passos na língua da terra, ajuntou-se a ouvi-la toda a capitania"
(p. 262).
Vê-se portanto,
que havia autos pouco decentes que eram representados, inclusive nas Igrejas,
nos teatros da época, talvez escritos por leigos. Nasce o teatro anchietano,
conseqüentemente, para substituir as peças leigas, com finalidade moralizadora.
Eram os autos de catequese simples variantes dos autos de devoção, vindo estes
últimos da tradição medieval. Também foram escritos, por Gil Vicente, autor
pré-clássico, que aliás exerceu visível influência na técnica de Anchieta.
Mas o que o
jesuíta explorava, antes de tudo, era o ritual dramático do silvícola, em particular
dos tupis-guaranis. Atualmente, observa Joaquim Ribeiro, através dos estudos do
ilustre antropólogo Alfred Métraux (La
réügion dês tupinamba et sés rapports avec celle dês autres tríbus tupi-guarani
e La civilization materíelle dês tríbus tupi-guarani), dispomos de fontes
científicas que nos levam ao levantamento dos traços principais da cultura
tupi-guarani. Em tais obras, em particular na primeira, vemos que os índios
eram dados a práticas mágicas, entre elas um verdadeiro espetáculo de
"marionettes" feito por um pajé (feiticeiro) com o fim mágico da
multiplicação das sementes; uma espécie de procissão ou dança para vir a chuva,
que os tupinambás do Maranhão praticavam a conselho do pajé; e, por fim, uma cerimônia
mágica que favorecia a produção de algodão, uma espécie de magia imitativa.
Alie-se a isso a tendência espontânea do selvagem, também assinalada por
Métraux, para o canto e para a dança, e temos os principais fatos de que os
jesuítas tiraram o máximo proveito nos autos de catequese. É a pré-história do
teatro brasileiro. E, na tradição da coreografia dramática dos indígenas, o
nosso folclore registra o folguedo denominado "Os Caboclinhos", numa
área que vai do Nordeste a Minas Gerais. Eis a descrição da dança, no
Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho: "Entre esses folguedos
típicos, convém destacar os Caboclinhos, restos de diversão indígena: dezesseis
ou vinte figuras com os rostos pintados a açafrão, ostentando trajes de cores
berrantes, com enfeites de espelhinhos e penachos à cabeça, empunham arcos com
flechas, que são manejados ao som de um tambor e de uma gaita. Simulam um
combate, como tribos inimigas." E observa Joaquim Ribeiro, em livro inédito
já citado: "A esse leitmotiv ameríndio aliaram-se diversos influxos de
elementos portugueses e elementos negro-africanos; aparecem rei, rainha, o matroá
(bobo), o birica e cantos em língua bunda. Em Diamantina, os principais
personagens dos Caboclinhos são:
cacique, caciquinho, cacicona, mamãe-vovó, papai-vovô e capitão-pó.
Nada mais
fizeram os jesuítas, portanto, através dos autos de catequese, do que explorar
tendências naturais espontâneas dos silvícolas, exercendo indiscutível
influência no sentido da moralização dos costumes e da implantação da fé
católica nas aldeias. Nos adros das igrejas, identificaram-se a demonologia
tupi e a demonologia medieval, com proveito para a catequese, desviando-se a
assombração do selvagem para uma valorização cristã. Nem faltava aos autos o
ilusionismo cênico próprio do Barroco, inclusive com tiro de arcabuz no palco,
como no Auto de Santa Úrsula. E se os autos de catequese, em relação aos autos
de devoção do período medieval, empobreceram-se do ponto de vista das
discussões teológicas, nem por isso deixaram de exercer profunda influência
moralizadora no seio das populações agrupadas em aldeias, condenando os
costumes dissolutos e difundindo a fé religiosa. Era uma espécie de teatro-catecismo,
simples em seu conteúdo, mais dinâmico que erudito, sem deixar de ser hábil,
como assinala Freches, em trecho já transcrito.
Os dogmas da
Igreja e a moral católica, através de pequenos jogos dramáticos, se tornaram
mais acessíveis à compreensão do silvícola. E neles o espírito Barroco se
reflete no sentido da revalorização do medievo, no que este tinha de mais
puramente espiritual, em face dos costumes dissolutos de colonos e degredados
do reino, em promiscuidade com a poligamia indígena. As penas do inferno, o
medo da morte com pecado na alma, o demônio, tudo isso concorria para formar o
dualismo conflitual próprio do Barroco, traços que se depreendem nos autos de
catequese, como já assinalou Afrânio
Coutinho.
Eis o que
escreve, baseado em conclusões de Sérgio Buarque de Hollanda: 1) As
raízes da literatura jesuítica mergulham no fundo tradicional da literatura
peninsular, quer no que tange às formas poéticas quer às dramáticas, estas
últimas ligando-se à escola de Gil Vicente, e as primeiras participando do
ambiente espiritual da Idade Média por suas características externas — metro e
estrofe — e pela natureza de sua inspiração. Essas formas tradicionais eram
adaptadas pelos jesuítas onde o exigiam as necessidades da catequese e do
ensino, mas serviam de instrumento admirável para atingir as almas simples não
contaminadas do italianismo erudito do Renascimento. (É bem de ver que essa
observação do escritor brasileiro coincide com as de Croll, Sommerfeld e
outros, a respeito da herança medieval de muitas formas que a literatura
barroca expôs na Europa); 2) Esse caráter tradicional aparente não é
incompatível com o espírito da sociedade e da literatura barrocas. Ao
contrário, esse tradicionalismo adapta-se às finalidades precisas e urgentes da
Companhia, à propagação da Fé; 3) Com esse intuito, os jesuítas lançaram mão de
recitativos e representações dramáticas, hábeis veículos de penetração nas
almas, para exacerbar,a devoção no crente, suscitar o remorso no pecador, a
regeneração dos infiéis, a conversão dos gentios e pagãos. (A técnica foi usada
em toda parte, e, se não teve em Portugal, Espanha e França repercussão fora do
âmbito escolar, já vimos que na Alemanha influiu na vida literária geral e na
própria criação poética e dramática. No Brasil, não será demais afirmar a
importância que teve, agindo sobre toda a população, criando o gosto literário
e certas qualidades perduráveis de nossa mentalidade, ao introduzir, como
assinala Buarque de Hollanda, na nossa cultura espiritual, o pendor para a
pompa, o luxo, o brilho exterior e o artifício); 4) Inspirada nos ensinamentos
de Santo Inácio, a arte dos jesuítas consistiu acima de tudo em tocar
diretamente os corações sem precisar convencer por meio de raciocínios
abstratos, falando a língua chã do povo, e até recorrendo às palavras e ritos
dos infiéis, quando não em desacordo com as normas católicas. O intuito era
conquistar a imaginação primeiro, predispondo-a a aceitar os argumentos
intelectuais; a imaginação conquistava-se através dos sentidos, pela
representação visível, audível, tangível, da morte, dos pecados, do demônio, do
castigo perpétuo, despertando nos ouvintes e catecúmenos o temor e o terror da
morte e do inferno, a fim de os levar à aceitação das verdades da Fé. Para
isso, as formas literárias tradicionais eram metamorfoseadas pela pompa, o
luxo, o aparato, o artifício; 5) Ao lado da conquista para a Igreja, essa
literatura teve o efeito de incutir uma concepção do mundo: ao mesmo tempo que
expõe o grandioso e o pomposo das coisas terrenas, procura mostrar a inanidade
destas coisas. Fritz Etrich dá como o ponto de partida da arte e literatura
barrocas o sentimento da fugacidade do tempo acompanhado da nostalgia da
eternidade. E para conquistar os corações humanos à ideia da vanitas, usam a mesma vanitas pela pomposa ostentação de
aparências perecíveis. Mas a noção da vaidade e caducidade das coisas mundanas
tem por corolário a ideia da morte, o medo de morrer e o pavor do inferno, que
essa literatura procura manter acesos nos corações. (Eis aí aquilo que no curso
deste trabalho foi definido como o dualismo barroco, a contradição inerente à
alma barroca, atraída sempre por forças contrárias. No caso, essas forças são o
Céu e a Terra, que enchem de sua polaridade a literatura espanhola barroca, e
que são tão importantes, por exemplo, no pensamento do nosso Vieira. Por outro
lado, a noção da vaidade das coisas mundanas é bem típica da literatura
barroca, particularmente da espanhola, para a qual — Calderón à frente — a vida
é um sonho, senão um pesadelo, e deve-se insistir no exemplo espanhol por ser
ele de valor geminai no barroco, e pela atração que exerce na mente
luso-brasileira da época)." (Págs. 132/133.)
Nenhuma
influência do Renascimento, por conseguinte, o teatro de Anchieta revela. As
suas fontes vêm da tradição medieval, como provou Joaquim Ribeiro, e se
exprimem através do espírito barroco, que a Companhia de Jesus, aliada à
Contra-Reforma, implantou na mentalidade jesuítica. Apenas não aparece na
simplicidade da língua literária de Anchieta, em peças destinadas sobretudo aos
indígenas, muita ênfase na pompa e no brilho a que se referem Sérgio Buarque de
Hollanda e Afrânio Coutinho. Os fins didáticos da catequese exigiam
simplicidade de expressão. Pompa, brilho e artifício, entretanto, aparecem nos
grandes poemas latinos, um dedicado à Virgem e outro à consagração dos feitos
de Mem de Sá, como já demonstramos. O teatro, naturalmente, se filia à vertente
inicial da Contra-Reforma, no sentido de repopularização das artes para levar o
Catolicismo ao seio do povo. Arte, para o teatro jesuítico, é um instrumento
didático, mais próximo da simplicidade que da complexidade, porque se trata de
um teatro engagé, deliberadamente
comprometido com os fins religiosos da catequese. Nem seria possível que os
autos excedessem a capacidade intelectual de seu público primitivo, composto de
índios, colonos, soldados, marujos e comerciantes. Trata-se, pois, de um teatro
popular por excelência, marcado pelo sincretismo de duas culturas bem diversas.
E isso afinal lhe dá essência brasileira, embora redigido em técnica
hispano-portuguesa.
José de
Anchieta nasceu em São Cristóvão de La Laguna, Capital de Tenerife, nas
Canárias, em 19 de março de 1534, filho de Juan de Anchieta, biscainho de
Guipúzcoa, e D. Meneia Dias de Clavicko Llarena. Em 1551, entrou para o Colégio
dos Jesuítas, em Coimbra. Em 1553, por motivos de saúde, veio para o Brasil com
Duarte da Costa. No ano seguinte, 25 de janeiro de 1534, auxiliou o padre
Manuel da Nóbrega na fundação oficial do Colégio de São Paulo, em São Vicente.
Considerado o "Santo do Brasil", dedicou toda a sua vida à catequese
do silvícola, aprendendo a língua dos índios — que foi primeiramente estudada
pelo padre Aspicuelta Navarro — dela deixando pequena gramática. Recorreu,
sobretudo, aos autos de catequese, para a conversão do gentio. Em 1563, ao lado
do Padre Manuel da Nóbrega, foi refém dos Tamoios em Iperoig, onde se afirma
ter composto, na areia da praia, o seu monumental poema dedicado à Virgem
Santíssima. Em 1567, tomou parte ativa na expulsão dos franceses do Rio de
Janeiro, tendo exercido vários cargos administrativos, em São Vicente, até o
ano de 1577. Foi elevado a provincial, na Bahia, em 1578. Da Bahia foi a
Pernambuco, voltou a São Vicente, e passou a residir no Rio de Janeiro. Em
1585, já bem doente, deixou o cargo de provincial, voltando ao Rio de Janeiro
em 1586. Logo depois, seria enviado ao Espírito Santo, fixando-se em Reritiba,
hoje Anchieta, onde faleceu, no dia 9 de junho de 1597, com 63 anos de idade.
Viveu, portanto, 44 anos no Brasil, incorporando-se definitivamente às raízes
de nossa civilização cristã.
Por fim,
cumpre-nos dizer que o Serviço Nacional de Teatro, tão bem dirigido por D.
Bárbara Heliodora, está de parabéns pela ideia de representar o Auto na
"Festa de São Lourenço", sendo incumbido da atualização do texto o
escritor Walmir Ayala, que soube pôr amor e dedicação no trabalho, nem sempre
fácil, em virtude dos arcaísmos da língua literária do poeta que fundou a nossa
literatura. E a "Ediouro", por sua vez, difundindo o teatro anchietano.
presta inestimável serviço à cultura brasileira.
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Fonte:
O Auto de São Lourenço, por: José de Anchieta. Prefácio de: Leodegário A. de Azevedo Filho. Ediouro. Rio de Janeiro, 1981.
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