terça-feira, 5 de julho de 2016

A Poesia Dramática de Anchieta

A Poesia Dramática de Anchieta
Por: Leodegário A. de Azevedo Filho
A poesia dramática de Anchieta se compõe de peças de circunstâncias, escritas por ocasião de efemérides religiosas, para atender aos fins didáticos da catequese. O seu público era constituído de indígenas, soldados, colonos, marujos e comerciantes, ou seja, habitantes permanentes ou eventuais das primitivas aldeias, criadas sobretudo por Mem de Sá, nas origens de nossa civilização. Daí a razão por que, em geral, os autos e peças jocosas eram polilíngües, pois se dirigiam a um público lingüistica-mente heterogéneo. Importantes também são os autos apenas em tupi, especialmente dedicados ao silvícola, que era o objeto principal da catequese. Sabido é. com efeito, que o índio brasileiro manifestava, como qualquer povo primitivo, acentuado gosto pelas representações, pela dança e pelo canto acompanhados de instrumentos rudimentares. Habilmente, pois, Anchieta explorou essas tendências naturais do habitante da terra, incutindo nele, através de pequenos jogos dramáticos, não apenas a moral católica, mas o respeito aos principais dogmas da Igreja. A propósito, escreve Claude Henri Freches: "En somme, c'est une leçon de catéchisme en images, dynamique plus que savante, mais non dépourvue d'habilite. On pourrait encore avancer que cês drames constítuent dês embryons de pièces à thèse ou de comédies de moeurs: cês deux aspects se réunissént d'aüleurs volontiérs en un même auto."
A mesma observação, no que se refere ao gosto dos índios pelas representações, se encontra em livro ainda inédito do professor Joaquim Ribeiro, intitulado A Estética Jesuítica, cujos originais tivemos a honra de examinar, e também no livro Estética da Língua Portuguesa, do mesmo autor, em particular no capítulo intitulado "Teatro Sacro no Período Colonial" (2). Aí se lê, que não foram Aspicuelta Navarro e José de Anchieta os únicos dramaturgos de nosso primeiro século, como se pensa. Já um cronista antigo se referia assim a autos de Anchieta: "E foi desta maneira, desejando o Padre Provincial Manuel da Nóbrega evitar alguns abusos que com autos pouco decentes se faziam nas Igrejas, encomendou ao irmão José que fizesse uma obra devota, para se representar na véspera da Circuncisão, e como entre os portugueses, tinham alguns passos na língua da terra, ajuntou-se a ouvi-la toda a capitania" (p. 262).
Vê-se portanto, que havia autos pouco decentes que eram representados, inclusive nas Igrejas, nos teatros da época, talvez escritos por leigos. Nasce o teatro anchietano, conseqüentemente, para substituir as peças leigas, com finalidade moralizadora. Eram os autos de catequese simples variantes dos autos de devoção, vindo estes últimos da tradição medieval. Também foram escritos, por Gil Vicente, autor pré-clássico, que aliás exerceu visível influência na técnica de Anchieta.
Mas o que o jesuíta explorava, antes de tudo, era o ritual dramático do silvícola, em particular dos tupis-guaranis. Atualmente, observa Joaquim Ribeiro, através dos estudos do ilustre antropólogo Alfred Métraux (La réügion dês tupinamba et sés rapports avec celle dês autres tríbus tupi-guarani e La civilization materíelle dês tríbus tupi-guarani), dispomos de fontes científicas que nos levam ao levantamento dos traços principais da cultura tupi-guarani. Em tais obras, em particular na primeira, vemos que os índios eram dados a práticas mágicas, entre elas um verdadeiro espetáculo de "marionettes" feito por um pajé (feiticeiro) com o fim mágico da multiplicação das sementes; uma espécie de procissão ou dança para vir a chuva, que os tupinambás do Maranhão praticavam a conselho do pajé; e, por fim, uma cerimônia mágica que favorecia a produção de algodão, uma espécie de magia imitativa. Alie-se a isso a tendência espontânea do selvagem, também assinalada por Métraux, para o canto e para a dança, e temos os principais fatos de que os jesuítas tiraram o máximo proveito nos autos de catequese. É a pré-história do teatro brasileiro. E, na tradição da coreografia dramática dos indígenas, o nosso folclore registra o folguedo denominado "Os Caboclinhos", numa área que vai do Nordeste a Minas Gerais. Eis a descrição da dança, no Cancioneiro do Norte, de Rodrigues de Carvalho: "Entre esses folguedos típicos, convém destacar os Caboclinhos, restos de diversão indígena: dezesseis ou vinte figuras com os rostos pintados a açafrão, ostentando trajes de cores berrantes, com enfeites de espelhinhos e penachos à cabeça, empunham arcos com flechas, que são manejados ao som de um tambor e de uma gaita. Simulam um combate, como tribos inimigas." E observa Joaquim Ribeiro, em livro inédito já citado: "A esse leitmotiv ameríndio aliaram-se diversos influxos de elementos portugueses e elementos negro-africanos; aparecem rei, rainha, o matroá (bobo), o birica e cantos em língua bunda. Em Diamantina, os principais personagens dos Caboclinhos são: cacique, caciquinho, cacicona, mamãe-vovó, papai-vovô e capitão-pó.
Nada mais fizeram os jesuítas, portanto, através dos autos de catequese, do que explorar tendências naturais espontâneas dos silvícolas, exercendo indiscutível influência no sentido da moralização dos costumes e da implantação da fé católica nas aldeias. Nos adros das igrejas, identificaram-se a demonologia tupi e a demonologia medieval, com proveito para a catequese, desviando-se a assombração do selvagem para uma valorização cristã. Nem faltava aos autos o ilusionismo cênico próprio do Barroco, inclusive com tiro de arcabuz no palco, como no Auto de Santa Úrsula. E se os autos de catequese, em relação aos autos de devoção do período medieval, empobreceram-se do ponto de vista das discussões teológicas, nem por isso deixaram de exercer profunda influência moralizadora no seio das populações agrupadas em aldeias, condenando os costumes dissolutos e difundindo a fé religiosa. Era uma espécie de teatro-catecismo, simples em seu conteúdo, mais dinâmico que erudito, sem deixar de ser hábil, como assinala Freches, em trecho já transcrito.
Os dogmas da Igreja e a moral católica, através de pequenos jogos dramáticos, se tornaram mais acessíveis à compreensão do silvícola. E neles o espírito Barroco se reflete no sentido da revalorização do medievo, no que este tinha de mais puramente espiritual, em face dos costumes dissolutos de colonos e degredados do reino, em promiscuidade com a poligamia indígena. As penas do inferno, o medo da morte com pecado na alma, o demônio, tudo isso concorria para formar o dualismo conflitual próprio do Barroco, traços que se depreendem nos autos de catequese, como já assinalou Afrânio Coutinho.
Eis o que escreve, baseado em conclusões de Sérgio Buarque de Hollanda: 1) As raízes da literatura jesuítica mergulham no fundo tradicional da literatura peninsular, quer no que tange às formas poéticas quer às dramáticas, estas últimas ligando-se à escola de Gil Vicente, e as primeiras participando do ambiente espiritual da Idade Média por suas características externas — metro e estrofe — e pela natureza de sua inspiração. Essas formas tradicionais eram adaptadas pelos jesuítas onde o exigiam as necessidades da catequese e do ensino, mas serviam de instrumento admirável para atingir as almas simples não contaminadas do italianismo erudito do Renascimento. (É bem de ver que essa observação do escritor brasileiro coincide com as de Croll, Sommerfeld e outros, a respeito da herança medieval de muitas formas que a literatura barroca expôs na Europa); 2) Esse caráter tradicional aparente não é incompatível com o espírito da sociedade e da literatura barrocas. Ao contrário, esse tradicionalismo adapta-se às finalidades precisas e urgentes da Companhia, à propagação da Fé; 3) Com esse intuito, os jesuítas lançaram mão de recitativos e representações dramáticas, hábeis veículos de penetração nas almas, para exacerbar,a devoção no crente, suscitar o remorso no pecador, a regeneração dos infiéis, a conversão dos gentios e pagãos. (A técnica foi usada em toda parte, e, se não teve em Portugal, Espanha e França repercussão fora do âmbito escolar, já vimos que na Alemanha influiu na vida literária geral e na própria criação poética e dramática. No Brasil, não será demais afirmar a importância que teve, agindo sobre toda a população, criando o gosto literário e certas qualidades perduráveis de nossa mentalidade, ao introduzir, como assinala Buarque de Hollanda, na nossa cultura espiritual, o pendor para a pompa, o luxo, o brilho exterior e o artifício); 4) Inspirada nos ensinamentos de Santo Inácio, a arte dos jesuítas consistiu acima de tudo em tocar diretamente os corações sem precisar convencer por meio de raciocínios abstratos, falando a língua chã do povo, e até recorrendo às palavras e ritos dos infiéis, quando não em desacordo com as normas católicas. O intuito era conquistar a imaginação primeiro, predispondo-a a aceitar os argumentos intelectuais; a imaginação conquistava-se através dos sentidos, pela representação visível, audível, tangível, da morte, dos pecados, do demônio, do castigo perpétuo, despertando nos ouvintes e catecúmenos o temor e o terror da morte e do inferno, a fim de os levar à aceitação das verdades da Fé. Para isso, as formas literárias tradicionais eram metamorfoseadas pela pompa, o luxo, o aparato, o artifício; 5) Ao lado da conquista para a Igreja, essa literatura teve o efeito de incutir uma concepção do mundo: ao mesmo tempo que expõe o grandioso e o pomposo das coisas terrenas, procura mostrar a inanidade destas coisas. Fritz Etrich dá como o ponto de partida da arte e literatura barrocas o sentimento da fugacidade do tempo acompanhado da nostalgia da eternidade. E para conquistar os corações humanos à ideia da vanitas, usam a mesma vanitas pela pomposa ostentação de aparências perecíveis. Mas a noção da vaidade e caducidade das coisas mundanas tem por corolário a ideia da morte, o medo de morrer e o pavor do inferno, que essa literatura procura manter acesos nos corações. (Eis aí aquilo que no curso deste trabalho foi definido como o dualismo barroco, a contradição inerente à alma barroca, atraída sempre por forças contrárias. No caso, essas forças são o Céu e a Terra, que enchem de sua polaridade a literatura espanhola barroca, e que são tão importantes, por exemplo, no pensamento do nosso Vieira. Por outro lado, a noção da vaidade das coisas mundanas é bem típica da literatura barroca, particularmente da espanhola, para a qual — Calderón à frente — a vida é um sonho, senão um pesadelo, e deve-se insistir no exemplo espanhol por ser ele de valor geminai no barroco, e pela atração que exerce na mente luso-brasileira da época)." (Págs. 132/133.)
Nenhuma influência do Renascimento, por conseguinte, o teatro de Anchieta revela. As suas fontes vêm da tradição medieval, como provou Joaquim Ribeiro, e se exprimem através do espírito barroco, que a Companhia de Jesus, aliada à Contra-Reforma, implantou na mentalidade jesuítica. Apenas não aparece na simplicidade da língua literária de Anchieta, em peças destinadas sobretudo aos indígenas, muita ênfase na pompa e no brilho a que se referem Sérgio Buarque de Hollanda e Afrânio Coutinho. Os fins didáticos da catequese exigiam simplicidade de expressão. Pompa, brilho e artifício, entretanto, aparecem nos grandes poemas latinos, um dedicado à Virgem e outro à consagração dos feitos de Mem de Sá, como já demonstramos. O teatro, naturalmente, se filia à vertente inicial da Contra-Reforma, no sentido de repopularização das artes para levar o Catolicismo ao seio do povo. Arte, para o teatro jesuítico, é um instrumento didático, mais próximo da simplicidade que da complexidade, porque se trata de um teatro engagé, deliberadamente comprometido com os fins religiosos da catequese. Nem seria possível que os autos excedessem a capacidade intelectual de seu público primitivo, composto de índios, colonos, soldados, marujos e comerciantes. Trata-se, pois, de um teatro popular por excelência, marcado pelo sincretismo de duas culturas bem diversas. E isso afinal lhe dá essência brasileira, embora redigido em técnica hispano-portuguesa.
José de Anchieta nasceu em São Cristóvão de La Laguna, Capital de Tenerife, nas Canárias, em 19 de março de 1534, filho de Juan de Anchieta, biscainho de Guipúzcoa, e D. Meneia Dias de Clavicko Llarena. Em 1551, entrou para o Colégio dos Jesuítas, em Coimbra. Em 1553, por motivos de saúde, veio para o Brasil com Duarte da Costa. No ano seguinte, 25 de janeiro de 1534, auxiliou o padre Manuel da Nóbrega na fundação oficial do Colégio de São Paulo, em São Vicente. Considerado o "Santo do Brasil", dedicou toda a sua vida à catequese do silvícola, aprendendo a língua dos índios — que foi primeiramente estudada pelo padre Aspicuelta Navarro — dela deixando pequena gramática. Recorreu, sobretudo, aos autos de catequese, para a conversão do gentio. Em 1563, ao lado do Padre Manuel da Nóbrega, foi refém dos Tamoios em Iperoig, onde se afirma ter composto, na areia da praia, o seu monumental poema dedicado à Virgem Santíssima. Em 1567, tomou parte ativa na expulsão dos franceses do Rio de Janeiro, tendo exercido vários cargos administrativos, em São Vicente, até o ano de 1577. Foi elevado a provincial, na Bahia, em 1578. Da Bahia foi a Pernambuco, voltou a São Vicente, e passou a residir no Rio de Janeiro. Em 1585, já bem doente, deixou o cargo de provincial, voltando ao Rio de Janeiro em 1586. Logo depois, seria enviado ao Espírito Santo, fixando-se em Reritiba, hoje Anchieta, onde faleceu, no dia 9 de junho de 1597, com 63 anos de idade. Viveu, portanto, 44 anos no Brasil, incorporando-se definitivamente às raízes de nossa civilização cristã.
Por fim, cumpre-nos dizer que o Serviço Nacional de Teatro, tão bem dirigido por D. Bárbara Heliodora, está de parabéns pela ideia de representar o Auto na "Festa de São Lourenço", sendo incumbido da atualização do texto o escritor Walmir Ayala, que soube pôr amor e dedicação no trabalho, nem sempre fácil, em virtude dos arcaísmos da língua literária do poeta que fundou a nossa literatura. E a "Ediouro", por sua vez, difundindo o teatro anchietano. presta inestimável serviço à cultura brasileira.


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Fonte:
O Auto de São Lourenço, por: José de Anchieta. Prefácio de: Leodegário A. de Azevedo Filho. Ediouro. Rio de Janeiro, 1981.

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