Eros
Dou
naturalmente o nome de Eros àquele estado que chamamos de "estar
amando"; ou, se preferir, àquela espécie de amor em que os amantes estão
"envolvidos". Alguns leitores devem ter-se surpreendido quando num
capítulo anterior descreve a Afeição como o amor em que nossa experiência
parece aproximar-se mais daquela dos animais. Alguém poderia então perguntar:
"Não é certo que nossas funções sexuais nos aproximam igualmente
deles?" Isto é verdadeiro no que se refere à sexualidade humana de modo geral.
Não vou
porém ocupar-me da sexualidade humana em si, pois ela faz parte de nosso
assunto somente quando se torna um ingrediente do sentimento complexo de
"estar amando". Que a experiência sexual pode ocorrer sem Eros, sem
estar "amando", e que Eros inclui outros aspectos além da atividade
sexual, tenho como certo. Se quiser colocar a questão assim, não estou
pesquisando a sexualidade comum a nós e aos animais ou mesmo comum a todos os
homens, mas uma variação humana singular da mesma que se desenvolve dentro do "amor"
— a qual chamo de Eros. O elemento carnal ou sexualidade animal contido em
Eros, pretendo chamar de Vênus (seguindo um uso antigo). Chamo de Vênus aquilo
que é sexual, não num sentido obscuro e refinado, como os psicólogos poderiam
explorar, mas num sentido perfeitamente óbvio. O que é tido como sexual por
aqueles que experimentam a sensação, o que poderia ser provado como sexual
mediante as mais simples observações.
A
sexualidade pode operar sem Eros ou como parte de Eros. Apresso-me a
acrescentar que faço a distinção apenas para limitar nossa pesquisa e sem
quaisquer implicações morais. Não estou de forma alguma adotando a ideia
popular de que é a ausência ou presença de Eros que torna o ato sexual
"impuro" ou "puro", degradado ou belo, legal ou ilegal. Se
todos os que se deitarem juntos sem estar no estado de Eros fossem abomináveis,
nós todos viemos de uma linhagem espúria. As épocas e lugares em que o
casamento depende de Eros são uma minoria. A maior parte de nossos ancestrais
se casaram cedo com parceiros escolhidos por seus pais por razões que nada
tinham a ver com Eros. Prestavam-se ao ato sem qualquer outro estímulo além do
simples desejo animal. E agiram bem; maridos e mulheres cristãos honestos,
obedecendo aos pais, cumprindo suas "obrigações conjugais", e
educando suas famílias no temor do Senhor.
Este mesmo
ato, porém, praticado sob a influência de um Eros ardente e sublime, que reduz
o papel dos sentidos a uma consideração menor, pode, de maneira oposta,
revelar-se como simples adultério, envolvendo a traição da esposa, do marido,
ou de um amigo, profanando a hospitalidade e resultando no abandono, dos
filhos.
Deus não se
agrada do fato de a distinção entre um pecado e um dever depender de
sentimentos nobres. Este ato, como qualquer outro, é justificado ou não por
critérios bem mais prosaicos e explicáveis: pelo cumprimento ou quebra de
promessas, pela justiça ou injustiça, pela bondade ou egoísmo, pela obediência
ou desobediência. O meu tratamento exclui a simples sexualidade — sexualidade
sem Eros — com bases que nada têm a ver com a moral, por ser irrelevante ao
nosso propósito.
Eros (a
variação humana) constitui para o evolucionista algo que surgiu de Vênus, uma
complicação e desenvolvimentos tardios do impulso biológico imemorial. Não
devemos supor, entretanto, que isto aconteça necessariamente na consciência do
indivíduo. Uns provavelmente irão sentir a princípio um mero apetite sexual por
uma mulher e depois passam, num estágio posterior, a "sentir amor por
ela". Mas duvido que isto seja comum. No geral, o que acontece primeiro é
simplesmente uma deliciosa preocupação com o ser amado — uma preocupação geral,
inespecífica, com a mulher total. O homem nestas condições na verdade não tem
tempo para pensar em sexo, pois está muito ocupado pensando numa pessoa. O fato
de ela ser uma mulher é muito menos importante do que ser ela mesma. Ele está
cheio de desejo, embora este não tenha uma tonalidade sexual. Se lhe
perguntasse o que quer, sua resposta sincera geralmente seria: "Continuar
pensando nela". É o amor contemplativo. E quando mais tarde desperta o
desejo explicitamente sexual, não irá sentir (a não ser que teorias científicas
estejam a influenciá-lo) que desde o princípio fora essa a razão de tudo. Ele
irá sentir com muito maior probabilidade que a maré enchente de Eros, tendo
demolido muitos castelos na areia e ilhado muitas rochas, encheu agora esta
parte de sua natureza com uma sétima onda triunfante — a pequena poça de
sexualidade comum que se encontrava na praia antes de chegar a maré. Eros se
introduz nele como um invasor, dominando e reorganizando, uma a uma, as
instituições de um país conquistado. Pode ter tomado muitas outras antes de
chegar ao sexo nele; e irá reorganizá-lo também.
Ninguém
indicou tão concisa e corretamente a natureza dessa reorganização do que George
Orwell, que a rejeitava e preferia a sexualidade em sua condição primitiva,
incontaminada por Eros. No livro 1984
o seu terrível herói (muito menos humano do que os heróis de quatro patas de
seu excelente Animal Farm!), antes de
penetrar a heroína, exige uma certeza: "Você gosta de fazer isso?"
pergunta, "Não simplesmente de mim, mas da coisa em si?" Não fica
satisfeito enquanto não obtém a resposta: "Adoro". Este pequeno
diálogo define a reorganização. O desejo sexual, sem Eros, deseja a coisa em
si; Eros deseja o ser amado.
A coisa é um prazer transitório; isto é,
um acontecimento que ocorre no interior de nosso próprio corpo. Usamos uma
expressão idiomática infeliz quando dizemos a respeito de um homem sensual
rondando as ruas que ele "quer uma mulher". Num sentido rigoroso da
ideia, uma mulher é justamente o que ele não quer. Ele deseja um prazer em que
a mulher acontece ser a peça necessária. O quanto ele se preocupa com a mulher
como tal pode ser medido pela sua atitude cinco minutos depois do prazer
(ninguém guarda o maço de cigarros depois de tê-los fumado). Eros, por sua vez,
faz com que o homem não deseje uma simples mulher, mas uma mulher especial. De
algum modo misterioso mas indiscutível, o amante deseja a amada, ela mesma, e
não o prazer que lhe pode proporcionar. Amante nenhum no mundo jamais procurou
os abraços da mulher amada como resultado de um cálculo, embora inconsciente,
de que seriam mais agradáveis do que os de qualquer outra.
Se ele tivesse
pensado no assunto, sem dúvida esperaria que fosse assim, mas levantar a
questão seria sair por completo do mundo de Eros. O único homem que, segundo
sei, fez essa pergunta foi Lucrécio, mas ele não se achava certamente
apaixonado na ocasião.
Sua resposta
é digna de interesse. Aquele austero sibarita era de opinião que o amor na
verdade prejudica o prazer sexual. A emoção era uma distração. Ela prejudicava
a receptividade fria e crítica de seu paladar. (Um grande poeta; mas
"Senhor, que grandessíssimos animais foram os romanos!")
[...]
---
Fonte:
Os Quatro Amores, por: C. S. Lewis. Tradução: Neyd Siqueira. Editora Mundo Cristão. São Paulo, 1986, págs. 72-75.
---
Fonte:
Os Quatro Amores, por: C. S. Lewis. Tradução: Neyd Siqueira. Editora Mundo Cristão. São Paulo, 1986, págs. 72-75.
Nenhum comentário:
Postar um comentário