O que é religião?
Consideremos
o alcance e o significado da palavra "religião". O que pensam as
pessoas quando falam sobre religião, ou sobre os religiosos?
Você acha
que a religião é "uma falsa crença persistente, mantida mesmo em face de
fortes provas em contrário". Eu tenho certeza de que você percebe que isso
dificilmente esgota o tema do significado para a maioria das pessoas, e muito
menos para os que o estudam academicamente — teólogos, filósofos, historiadores
e antropólogos. Religião, por certo, só em parte se envolve com crenças ou
doutrinas reais, e é raro que tais crenças, se verdadeiramente religiosas,
sejam consideradas (exceto por fundamentalistas) como explicações literais do
mundo.
No início de
seu livro, você insiste que a religião deve ser científica ou empiricamente
comprovável. No entanto, para a maioria dos que a têm estudado ao longo dos
tempos, ela é um produto da imaginação, tanto quanto a arte, a poesia e a
música. As atividades da religião, seus rituais, mitologias, hinos, meditações,
orações, cânticos, poesia, imagens, parábolas, lendas, tabus e itens
sacramentais (ou seja, os objetos do culto, como velas, incenso, óleos, vestes,
água benta) são principalmente simbólicos, muitas vezes apelando a níveis
profundos da memória popular. Símbolos poderiam ser descritos como fortes ou
fracos, em lugar de verdadeiros ou falsos, na medida em que participam daquilo
que tentam tornar inteligível. Se eu digo, por exemplo, que o pão é o sustento
da vida, duvido que você afirme que isso é "uma falsa crença, mantida
mesmo em face de fortes provas em contrário". Mas é provável que use esse
argumento contra o ritual do pão da Eucaristia, que envolve um simbolismo
dinâmico semelhante de presença real.
O poeta
Samuel Taylor Coleridge, ao contemplar, um dia, as fontes da praça de São
Pedro, em Roma, se viu dominado pela força da tangível metáfora natural, a
permanência da forma, a matéria em constante mutação — que ele percebeu como um
símbolo vivo do infinito contido no finito: e ali estava a fonte, sua forma
estável e seu fluxo permanente, e a imagem dela ele levou consigo. Muitos dos
símbolos e rituais da religião são versões formalizadas daquela percepção de
Coleridge: do fogo da Páscoa às águas do batismo, do incenso às libações dos
ritos fúnebres.
É
interessante que um dos grandes sociólogos da religião, Emile Durkheim, afirme
corajosamente em seu livro The Elementary
Forms ofthe Religious Life (As formas
elementares da vida religiosa) que "na realidade, não existem
religiões que sejam falsas. Todas são verdadeiras a seu próprio modo: todas
respondem, embora de diferentes formas, às condições determinadas da existência
humana." O mesmo poderia ser dito, é claro, acerca da arte. Rituais e
símbolos religiosos, desde a aurora da história humana, registravam e
celebravam nascimento, crescimento, velhice, morte e sepultamento, a formação
de famílias e comunidades, os encontros para festas, para o trabalho na
lavoura, para caçadas e viagens, os ciclos de vida de plantas, animais e seres
humanos, as mudanças de estações, as rotações diurnas, lunares e anuais, o
mistério da existência. As grandes religiões do mundo, provadas e testadas,
como fontes de florescimento ao longo de três milênios, continuam a desempenhar
e celebrar essas experiências cíclicas e os mistérios subjacentes. É excitante
pensar no aprofundamento de nossa percepção do mundo através da dimensão
científica, em especial da cosmologia e biologia; todavia, a ciência não
consegue abranger os símbolos multidimensionais da religião que, por sua
natureza, resistem à explicação e ao controle.
Talvez lhe
interesse, ademais, que uma longa tradição da filosofia vê a religião como uma
espécie de "virtude". Tomás de Aquino, o filósofo medieval da igreja,
localiza essa virtude na área da justiça. Justiça é, certamente, uma questão de
dar às pessoas e às coisas o que lhes é devido; religião é uma questão de dar a
Deus o que Lhe é devido. Como no caso de todas as virtudes (de acordo com
Aristóteles, o grande filósofo da Grécia antiga), é possível cair da corda
bamba da conduta virtuosa de duas formas. A conduta que não apresenta a virtude
da religião é a que ou trata Deus como uma criatura, ou trata uma criatura como
Deus — idolatria.
Foi somente
após o Iluminismo que a palavra "religião" passou a significar
principalmente um aspecto da conduta ou cultura humana. E nos conflitos entre o
trono e o altar, estado e igreja, políticos e clero, emergiu um esforço planejado
e determinado para descrever a religião como atividade particular, puramente
pessoal. A batalha para banir a religião para a esfera privada continua até
hoje. Você desejaria vê-la banida da esfera privada também.
---
Fonte:
O Anjo de Darwin: uma resposta seráfica a Deus um Delírio, por: John Cornwell. Imago Editora. São Paulo, 2007, págs. 41-43
Fonte:
O Anjo de Darwin: uma resposta seráfica a Deus um Delírio, por: John Cornwell. Imago Editora. São Paulo, 2007, págs. 41-43
Nenhum comentário:
Postar um comentário