Racionalidade e mais Além
Porém será
justo comparar-se o homem e os animais.na base de um ato tão relativamente
simples como o de achar uma saída ou encontrar um objeto perdido? Poderemos
generalizar entre achar a moeda e ler um livro? (Nenhum outro animal, senão o
homem, será capaz de ler.) Alguns psicologistas acharam que se pode. Os behavioristas,
dos quais o americano John Broadus Watson foi o mais proeminente, tendem a
considerar toda a aprendizagem à luz dos reflexos condicionados.
Um reflexo
condicionado difere de um reflexo comum porque, no condicionado, o cérebro
entra em ação. Não que o cérebro seja inteiramente essencial, pois um animal
com o cérebro alterado poderá ainda assim ser condicionado. Mas um animal de
cérebro intacto será melhor condicionado especificamente. Se um animal levar um
leve choque elétrico numa perna no momento em que uma campainha soar, o animal
intacto poderá ser condicionado a levantar a perna toda vez em que a campainha
soar, mesmo sem levar o choque elétrico. O animal descerebralizado responderá com
tentativas generalizadas de fuga.
Se o cérebro
acha-se envolvido no processo, então é razoável supor-se que quanto maior for
sua massa e complexidade, também aumentar-se-à a complexidade dos reflexos
condicionados. Mais e mais neurônios podem ir se engatando e formando
"circuitos" que representarão combinações de condicionamentos. Mais e
mais depósitos de unidades de memória poderão armazernar-se, de modo que
experiência-e-êrro pode processar-se nestes armazenamentos de lembranças em vez
de no mundo físico.
Considerado
o armazenamento de unidades para a memória e bastante lugar para o
condicionamento, nada mais é necessário para explicar o comportamento humano.
Uma criança olha para a letra b e põe-se a associá-la com um determinado som.
Olha depois para a combinação de letras "bolo" e começa a associá-la
com uma determinada palavra que já tinha anteriormente associado a uma
determinada coisa. Falar e ler transformam-se numa complexa série de respostas
condicionadas, do mesmo modo como escrever a máquina, ou esculpir, ou uma
infinidade de outras habilidades mecânicas. E o homem está apto a realizá-las
não porque possua alguma coisa que os animais inferiores não possuem, mas por
ter o que todos eles têm, — apenas muito mais do que eles.
Alguém poderá
insistir em que os mais elevados atributos da mente humana — dedução lógica e
mesmo a criatividade científica ou artística — podem reduzir-se à
experiência-e-erro e condicionamento. O poema Kubla Khan, escrito por Samuel Taylor Coleridge, foi cuidadosamente
analisado num livro de John Livingston Lowes chamado "O Caminho para Xanadu". Lowes conseguiu provar que cada
palavra ou frase do poema originava-se de algum item nas antigas leituras ou
experiências de Coleridge. Podemos focalizar Coleridge juntando todos os
fragmentos de palavras e ideias em sua mente (automática e inconscientemente),
como se fosse um gigantesco caleidoscópio mental, escolhendo as combinações por
ele preferidas e com estas construindo o poema. Ainda o método de
experiência-e-erro. Aliás, como o próprio Coleridge testemunhou, o poema
surgiu-lhe na mente, linha por linha, num sonho. É presumível que, durante o
sono, sua mente não perturbada pelas sensações da vigília e dos pensamentos,
pudesse entrar mais livremente neste jogo de experiência-e-erro.
Se
imaginarmos uma coisa destas se efetuando no cérebro humano, também temos de
esperar que haja no cérebro humano vastas áreas que não recebem diretamente as
sensações e nem dirigem respostas, porém se dedicam às associações, associações
e mais associações. É exatamente assim.
Assim, a
região perto da área auditiva no lobo temporal é a área de associação auditiva. Ali, certos sons são associados com os
fenômenos físicos à luz de experiências passadas. Um ruído surdo e prolongado
poderá trazer à mente a ideia de um caminhão, de um trovão distante ou então —
se não houver associação nenhuma — ideia nenhuma. (Geralmente a associação
"nenhuma" é a que mais nos atemoriza.) Há também uma área de associação visual no lobo
occipital rodeando a atual área visual e uma área de associação somestética atrás da área somestética.
As
diferentes áreas de associações sensoriais coordenam seu funcionamento numa
parte do cérebro na proximidade do começo do sulco lateral, no hemisfério
cerebral esquerdo. Neste ponto, as áreas de associação auditiva, visual
somestética juntam-se todas. A este ponto de reunião dá-se o nome de área gnóstica ("conhecimento"
G). Esta reunião de associações ativa-se na área logo em frente, a área ideomotora que as traduz numa
resposta adequada. Esta informação é desviada para a área premotora (que fica bem antes da área motora, no lobo frontal)
que coordena a atividade muscular necessária para produzir a desejada resposta. É a área motora que realiza esta atividade.
Mesmo quando
todas as áreas de associação, as áreas sensoriais e as áreas motoras são
levadas em conta, ainda sobra uma área do cérebro sem uma função específica e
facilmente ou capaz de ser medida. É a área do lobo frontal que fica logo antes
das áreas motora e premotora e por isso se chama lobo pré-frontal. O desconhecimento de suas funções fez com que
seja designada como "área silenciosa". Houve casos de tumores que
exigiram a remoção de grandes áreas do lobo pré-frontal sem que houvesse
consequências de monta, porém, é certamente um tecido nervoso que deve ter
alguma utilidade.
Manifesta-se
uma tendência para considerá-la como a mais significativa dentre todas as
seções do cérebro. De um modo geral, a trama evolutiva no desenvolvimento do
sistema nervoso humano baseou-se em empilhar complicações na extremidade
dianteira do cordão. Passando pelos cordatos primitivos, como o anfioxo, para o
subfilo dos vertebrados, vai-se de um cordão nervoso não-especializado para um
no qual a extremidade anterior se transformou num cérebro. Também, quando se
sobe na escala dos vertebrados, passando dos peixes aos mamíferos, a parte
fronteiriça do encéfalo é que sofre maior desenvolvimento e o cérebro torna-se
dominante. Passando dos insetívoros aos primatas e, dentro da ordem dos
primatas, do macaco ao homem, nota-se desenvolvimento sucessivo no lobo frontal
do cérebro.
Nos
primeiros hominídeos, mesmo depois que o encéfalo atingiu o seu completo
tamanho humano, os lobos frontais continuaram se desenvolvendo. O homem de Neandertal
tinha um cérebro do tamanho do nosso, porém nosso lobo frontal ganhou em
detrimento do lobo occipital. O peso total é o mesmo, mas a distribuição do
peso é outra. Pode-se, pois, presumir que os lobos pré-frontais, longe de
ficarem sem uso, são uma espécie de volume extra para depósito de associações,
representando a verdadeira condensação do cérebro.
Lá por 1930,
um cirurgião português, António Egas Moniz achou que, quando um doente mental
estava no fim de suas possibilidades de cura, quando os métodos comuns na
psiquiatria e na terapêutica não adiantavam mais nada, poder-se-ia recorrer à
medida extrema se operar os lobos pré-frontais, separando-os do cérebro. O
cirurgião português imaginava que, desta forma, o doente se libertaria das
associações que criara. Em se tratando de um doente mental, tais associações
deveriam ser mais nocivas do que desejáveis e, portanto, havia vantagem em
suprimi-las. Esta operação, lobotonua
prefrontal, foi realizada pela primeira vez em 1935 e numa porção de casos
deu certo. Em 1949, o Dr. Egas Moniz recebeu o Premio Nobel por este feito. Mas
esta operação nunca se tornou muito popular e nem se tornará, decerto. Leva a
modificações na personalidade, quase tão indesejáveis como a própria doença que
se pretende curar.
Mesmo se
admitindo que o ponto de vista dos behavioristas é correto em princípio e que
todo o comportamento humano, por mais complexo que seja, possa reduzir-se a um
plano mecânico de células nervosas (e hormônios) resta-nos saber se convém
deixar as especulações ficarem por aqui.
Suponha-se
que nos satisfaz a ideia de que Coleridge compôs seu poema Kubla Khan por experiência-e-erro. Isso nos ajudaria? Se assim foi,
porque nós não compomos poemas do porte do Kubla
Khan? Como foi que Coleridge escolheu justamente este plano de poema no
meio da infinidade de outros existentes no seu caleidoscópio mental? Como foi
que saiu um poema tão admiravelmente belo? E como pôde ser escrito num prazo
tão curto de tempo?
Evidentemente
temos muito mais que procurar, além da simples "experiência-e-erro"
ao nosso alcance. Em resumo, quando uma transformação vai se efetuando
progressivamente chega-se a um ponto (por vezes um ponto bem agudo) em que é
preciso mudar-se de perspectiva, quando uma diferença em grau subitamente se
equivale a uma diferença em espécie. Por analogia no mundo das ciências
físicas, consideremos o gelo. Sua estrutura está muito bem conhecida no nível
molecular. Se se aquecer o gelo, as moléculas irão vibrando cada vez mais até
que, a uma certa temperatura, as vibrações tornam-se bastante enérgicas para
dominar as atrações intermoleculares. As moléculas então se desordenam e passam
a distribuir-se caprichosamente, de um modo que, com o tempo, produz uma
modificação também caprichosa. Deu-se uma "fase de mutação"; o gelo derreteu-se
e transformou-se em água. As moléculas da água líquida são as mesmas do gelo.
Podem-se estabelecer regras para o comportamento destas moléculas, tanto no
gelo como na água. Mas a fase de mudança é tão aguda que nos faz descrever água
e gelo em termos bem diferentes, relacionando a água com outros líquidos e o
gelo com outros sólidos.
Da mesma
forma, quando o processo de sublimação de experiência-e-êrro torna-se tão
intricado como acontece na mente humana, poderá ser inútil a tentativa de
interpretar-se a atividade mental em termos de behaviorismo. Entretanto ninguém
sabe qual a forma de interpretação que será mais útil!
O conceito
da fase de mudança pode também ser usado em resposta à questão de o que é que
fixa o abismo separando o homem de todas as outras criaturas. Visto como não é
apenas a razão, deve haver mais alguma coisa. Uma fase de mutação precisa
realizar-se não apenas no momento em que a razão é introduzida, mas quando a
razão atinge um determinado ponto de intensidade. É de supor-se que o ponto seja
quando a razão se torna suficientemente complexa para permitir abstrações,
quando permite o estabelecimento de símbolos para estatuir conceitos, quando em
troca prepara colações de coisas ou ações ou qualidades. O som da palavra
"mesa" representa não esta ou aquela mesa, mas um conceito de
"todas as coisas parecidas com mesa", um conceito que não existe
fisicamente. O som "mesa" é, pois, uma abstração de uma abstração.
Desde que
seja possível conceber-se uma abstração e representá-la por meio de sons, torna-se
possível a comunicação de um nível de complexidade e compreensão muito além do
que se conseguiria sem isso. As áreas motoras do cérebro desenvolveram-se a
ponto de tornar possível a existência de centro da palavra. Vão se emitindo
diferentes sons, de um modo fácil e seguro, para que os conceitos se revistam
na forma de palavras faladas. No cérebro há bastante lugar para as unidades da
memória, — um cérebro cuja complexidade permite todas as necessárias
associações de sons e conceito, firmando-as na mente humana.
A palavra
falada, mais do que a razão em si, marca a fase de mutação, fixando o abismo
que separa o homem do não-homem. Como já frisei à página 238, a existência da
palavra significa que a reunião da experiência e o delineamento de conclusões
não é mais uma função simplesmente individual. A experiência é compartilhada. A
tribo torna-se menos ignorante e mais apta a aprender que qualquer indivíduo
nela. Ainda mais: a experiência vai unificando a tribo no decorrer do tempo
como através do espaço. Cada geração que surge não precisa começar do
comecinho, como sucede a todas as outras criaturas. Os pais humanos podem
transmitir sua experiência e conhecimentos aos filhos, não apenas pela
demonstração, mas pela palavra que explica os conceitos. Não apenas fatos e
técnicas mas ainda pensamentos e deduções vão sendo transmitidos.
Talvez que o
abismo que nos separa das outras criaturas vivas não nos parecesse tão grande
se soubéssemos mais sobre os vários hominídeos pré-humanos que nos mostrariam
os vários estágios que devem ter enchido o abismo. Infelizmente quase nada
sabemos. Ignoramos completamente em que estágio de desenvolvimento ou em que
espécie de hominídeos deu-se a fase de mutação.
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Fonte:
O Cérebro Humano: suas capacidades e funções, por: Isaac Asimov. Tradução: Virgínia Lefevre. Hemus Editora. São Paulo, s/d, 307-312.
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