A obra de Vinícius de Moraes
Examinando a
trajetória poética de Vinícius de Moraes, é possível apontar o misticismo
religioso do primeiro momento que, aos poucos, vai cedendo lugar à incorporação
do cotidiano que rodeia o poeta. Entre esses dois polos, aparecem os poemas que
enfatizam sobretudo a figura feminina.
A
religiosidade aparece nos dois primeiros livros, sobretudo em O caminho para a distância (1933). A
melancólica expressão da preocupação religiosa é o tom dominante. O amor físico
aparece com conotação de pecado. O primeiro livro de Vinícius acabaria sendo
eliminado pelo próprio autor de sua antologia poética, por ter sido julgado uma
obra imatura.
Veja um fragmento de
um poema desse livro:
A ti, Senhor, gritei
que estava puro
E na natureza ouvi a
tua voz.
Pássaros cantaram no
céu.
Eu olhei para o céu e
cantei e cantei.
A MULHER QUE PASSA
Meu Deus, eu quero a mulher que passa.
Seu dorso frio é um campo de lírios
em sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
Oh! como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.
Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . .
O cotidiano
incorpora-se definitivamente em Poemas,
sonetos e baladas (1946). A linguagem também se modifica, tornando-se mais
coloquial:
A UM PASSARINHO
Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
e é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.
Deixa-te de histórias
Some-te daqui.
EPITÁFIO
Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde.
O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.
Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que
Possui a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.
A poesia de
Vinícius adquire conotação sociopolítica em poemas como "A bomba atômica",
"A rosa de Hiroxima" e o conhecidíssimo "O operário em
construção", do qual transcrevemos um fragmento:
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, panela, janela
Casa, cidade; nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
É necessário lembrar ainda que Vinícius retoma o soneto na melhor tradição camoniana. Seus sonetos, que se encontram dispersos ao longo de toda a obra, são considerados pela crítica como a melhor parte da produção poética desse autor. São bastante conhecidos: "Soneto de separação", "Soneto do amor total", "Soneto do maior amor" e "Soneto de fidelidade", que transcrevemos a seguir:
SONETO DE FIDELIDADE
De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer de amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
O que marcou
o final de sua trajetória poética foi a escolha da música popular como veículo
para uma poesia cada vez mais comunicativa:
SERENATA DO ADEUS
(Música e letra de Vinícius de Moraes)
Ai, a lua que no céu surgiu
Não é a mesma que te viu
Nascer nos braços meus...
Cai a noite sobre o nosso amor
E agora só restou do amor
Uma palavra: adeus...
Ah, vontade de ficar
Mas tendo de ir embora...
Ai, que amar é se ir morrendo
Pela vida afora
É refletir na lágrima
O momento breve
De uma estrela pura
Cuja luz morreu...
Ó mulher, estrela a refulgir
Parte, mas antes de partir
Rasga o meu coração...
Crava as garras no meu peito em dor
E esvai em sangue todo o amor
Toda a desilusão...
Ah, vontade de ficar
Mas tendo de ir embora
Ai, que amar é se ir morrendo
Pela vida afora
É refletir na lágrima
O momento breve
De uma estrela pura
cuja luz morreu
Numa noite escura
Triste como eu...
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Fonte:
Língua Portuguesa: Volume 3, de Carlos Emílio Faraco e Francisco Marto de Moura. Editora Ática. São Paulo, 20ª Edição, 1993, págs. 218-220.
Fonte:
Língua Portuguesa: Volume 3, de Carlos Emílio Faraco e Francisco Marto de Moura. Editora Ática. São Paulo, 20ª Edição, 1993, págs. 218-220.
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